domingo, 19 de agosto de 2018

ROTEIRO DE NEIL SIMON COMPLICA A SITUAÇÃO DA FÓRMULA ‘WHODUNIT’

A história é conhecida por embatucar um dos mais renomados nomes da literatura policial. Howard Hawks preparava a produção de À beira do abismo (The big sleep, 1946), baseado em obra de Raymond Chandler. Durante a adaptação, os roteiristas William Faulkner, Leigh Brackett e Jules Furthman ficaram confusos quanto à identificação de um assassino. Pediram esclarecimentos ao escritor. Este também se viu perdido. Se isso acontece com um autor — geralmente atento na elaboração de obras intrincadas —, pode-se imaginar o que se passa com desavisados leitores diante da quantidade de pistas e personagens envolvidos na solução de mistérios. O brincalhão roteirista e teatrólogo Neil Simon imaginou situação parecida. Tomado pela fúria, um atento leitor de novelas policiais resolve se vingar das peças e armadilhas preparadas por Agatha Christie, Dashiell Hammett e Earl Derr Biggers. Desafia os cinco mais proeminentes investigadores, cujas identidades se baseiam nas criações daqueles escritores: Sidney Wang (Peter Sellers), Dick Charleston (David Niven), Jessica Marbles (Elsa Lanchester), Milo Perrier (James Coco) e Sam Diamond (Peter Falk). São trancados pelo irado anfitrião Lionel Twain — vivido por Truman Capote — no cenário de misteriosos assassinatos. Oferece um milhão de dólares ao primeiro que resolvê-los. Um mordomo cego (Alec Guinness) de curioso nome e uma cozinheira surda-muda e analfabeta (Nancy Walker) acompanham o perplexo time. Quase toda a encenação transcorre em ambiente fechado. Roteiro, diálogos e interpretações são primorosos. O espectador deve redobrar a atenção diante de muitos cacos, pegadinhas e diálogos de duplo sentido. Infelizmente, a direção não se valeu da sutileza e do dinamismo para conduzir a narrativa. É de 1992 esta apreciação para Assassinato por morte (Murder by death, 1976), de Robert Moore.






Assassinato por morte

Murder by death

Direção:
Robert Moore
Produção:
Ray Stark
Rastar Pictures, Columbia Pictures Corporation
EUA — 1976
Elenco:
Eileen Brennan, Truman Capote, James Coco, Peter Falk, Alec Guinness, Elsa Lanchester, Peter Sellers, Maggie Smith, Nancy Walker, David Niven, Estele Winwood, James Cromwell, Ricard Narita e os não creditados Cão Myron, Fay Wray (voz).



O diretor Robert Moore e o roteirista Neil Simon


Esta sátira é a primeira das três realizações cinematográficas de Robert Moore, precocemente falecido em 1984 aos 56 anos. Seguiram-se O detetive desastrado (The cheap detective, 1978) e Capítulo dois: em busca da felicidade (Chapter two, 1979). Era mais conhecido no meio teatral. Mereceu prêmios por peças encenadas na Broadway. Também se aventurou na direção de episódios de séries e filmes para a televisão.


Assassinato por morte tem roteiro inteligente de Neil Simon. No elenco estelar há lugar para o escritor e jornalista Truman Capote. O alienígena não faz feio. Até mereceu indicação ao Globo de Ouro. O tema do filme remete de imediato a um dos casos mais intrincados e cômicos da elaboração de roteiros. Envolve o autor Raymond Chandler mais os roteiristas William Faulkner, Leigh Brackett e Jules Furthman.


Em 1945, Howard Hawks preparava as filmagens de À beira do abismo (The big sleep, 1946). O ponto de partida é o conto Killer in the rain, de Chandler, expandido para o romance The big sleep — publicado em 1939 e protagonizado pelo detetive particular Philip Marlowe. Durante a adaptação, Faulkner, Brackett e Furthman ficaram confusos e com razão: não souberam identificar o assassino de determinado personagem. Para matar a charada, contataram o autor. Este estranhou. Alegou, furioso, que a história era suficientemente clara para abrigar confusões e questões mal respondidas. Logo se desculpou. Conferiu o texto e se percebeu perdido.


Assassinato por morte brinca com a fórmula whodunit, redução da pergunta inglesa Who has done it? Em português: Quem fez isto? ou, mais especificamente, Quem é o culpado? Tornou-se a base das literaturas policial e de mistério a partir da introdução por Edgar Allan Poe no conto Assassinatos na Rua Morgue (The murders in the Rue Morgue), de 1841. Usaram-na à larga Arthur Conan Doyle, Agatha Christie, Chandler, Dashiell Hammett, Earl Derr Biggers e outros. Em geral, os autores apresentam situações misteriosas sobre desaparecimentos ou assassinatos. Enquanto a trama avança, introduzem os personagens e lançam sucessivas pistas falsas com a intenção de provocar o leitor e gerar suspense. Não raro, tudo se mistura e nem sempre o desenvolvimento é cristalino. Daí surgem as famosas forçações de barra e contrariedades da parte dos leitores mais exigentes. A clareza para a resolução dos casos dependerá, sempre, do talento dos autores quanto à escrita e utilização da lógica narrativa.


Truman Capote como Lionel Twain, o irado anfitrião de Assassinato por morte

Alec Guinness como Jamesir Bensonmadame, impagável mordomo cego

Peter Sellers como o sagaz Sidney Wang


Um leitor contrariado está na origem da trama satírica de Assassinato por morte. Prepara uma peça indireta para renomados autores por meio dos perspicazes personagens que conceberam. Fãs da literatura policial e cinéfilos atentos logo percebem a quem remetem. Sidney Wang (Sellers) e seu adotivo filho japonês Willie Wang (Narita) correspondem à criação de Earl Derr Biggers: Charlie Chan. É pai de inúmeros filhos que o auxiliam na resolução de casos os mais rocambolescos. Se bem que há traços de Fu Manchu — o sagaz criminoso chinês bolado por Sax Rohmer —, segundo o figurino cinematográfico, na caracterização de Sellers. Também comparece o elegante e requintado casal britânico Dick Charleston (Niven) e Dora Charleston (Smith), alusivo a Nick Charles e Nora Charles criados em 1933 por Dashiell Hammett para The thin man. Agatha Christie se faz presente pela inusitada troca de posição das criações Jane Marple e enfermeira Withers. Ambas se convertem em Jessica Marbles (Lanchester) e na idosa entrevada e Winters (Winwood). Esta pouco fala durante todo o filme. Agora é a bondosa e agradecida detetive que toma para si o trabalho de cuidar da enfermeira em idade avançada. Não poderia faltar o mais referencial personagem de Christie: Hercule Poirot, representado por Milo Perrier (Coco) auxiliado pelo diligente motorista Marcel Cassete (James Cromwell). Por fim, há o cínico e duro investigador estadunidense Sam Diamond, junção de Sam Spade — concebido por Dashiell Hammett para a novela The Maltese Falcon, de 1930 — e Richard Diamond — detetive idealizado pelo cineasta Blake Edwards para a série de TV Richard Diamond, Private Detective, lançada em 1957. Acompanha-o a secretária Tess Skeffington (Brennan), uma faz tudo com capacidade para suportar humilhações e a sinceridade sem papas na língua do chefe.


Todos esses maravilhosos investigadores recebem misteriosos e irrecusáveis convites do recluso e sistemático bilionário Lionel Twain (Capote), um idoso bem conservado de 76 anos e expert em inventos, disfarces, truques e eletrônica. Habita uma espécie de fortaleza medieval modernizada erguida em local afastado e à qual convergem os convocados. Chegam relativamente intactos, apesar de alguns contratempos perigosos espalhados pelo caminho. São recebidos por um profissional fundamental nas novelas policiais e de mistério: o mordomo (Guinness). Além de cego, atende pelo curioso e sugestivo nome de Jamesir Bensonmadame. Para o preparo da refeição, é auxiliado pela não menos inusitada Yetta (Walker) — cozinheira surda-muda e analfabeta, contratada especialmente para a ocasião. Perto da meia-noite, os visitantes poderão degustar a sobremesa com sabor de prato principal: um assassinato. Deverão resolvê-lo, com a advertência de que um dos presentes é o culpado. Evidentemente, prepara-se o terreno para uma competição. O vencedor receberá a tentadora quantia de um milhão de dólares. Porém, Lionel Twain adianta: é mais brilhante que os ilustres comensais. Afinal, passou muito tempo na minuciosa leitura exegética de muitos casos complicados que resolveram.


Dora Charleston (Maggie Smith) e Dick Charleston (David Niven)

Sam Diamond (Peter Falk), Lionel Twain (Truman Capote) e Dick Charleston (David Niven)


Pontualmente, no horário combinado, as portas e janelas da sala de jantar e dependências contíguas são automaticamente trancadas. O assassinato acontece. Comunica-o a cozinheira, com o mais espantoso grito jamais emitido — dada a condição da mulher. O mordomo é a vítima. A agitação é geral. Confusões e equívocos se instalam. Os investigadores examinam o corpo, deduzem, levantam pistas e suspeitas. Revelam-se brilhantes, incisivos, certeiros, provocativos e irritadiços. Para complicar, o próprio Lionel Twain também é morto ou assim permanece até segunda ordem, tal qual o mordomo. Nem a senhora Yetta se apresenta em boas condições.


Assassinato por morte é um festival de tiradas, piadas de duplo sentido, boas atuações e nonsense. Os atores parecem se divertir mais que os espectadores. Os personagens vivem situações além das barreiras do absurdo. Não há duvidas de que o roteiro é um primor de sagacidade. Porém, com o andar da carruagem é fácil perceber que a condução de Robert Moore não é lá essas coisas. O filme prometedor de tanta diversão inteligente logo se torna uma grande chacota esticada. A encenação em ambiente fechado e reduzido mais se parece a um estático exemplar de teatro filmado. Conforme o esperado, cansa. Ao fim, os pobres investigadores apalermados se vêem incapacitados para solucionar os mistérios. Constrangidos com a situação na qual se inseriram com a maior boa vontade, ainda tiveram que ouvir uma advertência endereçada não exatamente a eles, mas aos reais autores dos personagens que representam: “Vocês foram tão espertos durante certo tempo que se esqueceram de ser humildes. Mentiram e enganaram seus leitores durante anos. Torturaram-nos com finais surpresa que não faziam sentido. Introduziram personagens, ao final, que não estavam antes no livro. Esconderam pistas e informações que tornaram impossível adivinhar ‘quem foi’. Mas, agora, as coisas mudaram. Milhões de zangados leitores de livros de suspense terão a hora da vingança. (...) Os seus livros de um dólar e 95 centavos serão vendidos por 12 centavos. É hora de irem embora, senhores e senhoras”. Os sagazes detetives partem com os rabos entre as pernas. No entanto, como acontece nos livros tão criticados por Lionel Twain, as surpresas estão longe de terminar.


O mordomo (Alec Guinness), Willie Wang (Richard Narita) e Sidney Wang (Peter Sellers)

Jessica Marbles (Elsa Lanchester), Sidney Wang (Peter Sellers), o mordomo (Alec Guinness) e Milo Perrier (James Coco)

  
As atuações são excelentes. Os atores estão à altura das exigências dos personagens. Certamente, David Niven e Maggie Smith são pouco exigidos em razão da contenção britânica de Dick e Dora Charleston. Alec Guinness é insuperável como o mordomo tão inusitado. É incrível como lhe parece natural a representação de um cego. Porém, se houvesse a necessidade de eleger um desempenho como o melhor, seria o de Peter Falk — pela capacidade de conjugar os clichês característicos dos principais detetives da literatura conforme a recriação cinematográfica desde os tempos de Humphrey Bogart. A interpretação do ator pode até ser exagerada, mas não cai na afetação ou canastrice. Peter Sellers é ótimo, como sempre. Só que oferece mais do mesmo. O corpo estranho Truman Capote não decepciona. Entrega o esperado a um personagem frustrado, furioso e possuído pela vanglória. Infelizmente, a incrível cozinheira vivida por Nancy Walker aparece pouco. Teria muitas e ótimas contribuições se interagisse mais com os investigadores. Ao menos é o que parece. As opções do roteiro foram outras e não cabem reclamações. A direção, infelizmente, deixou a desejar.


No elenco está Fay Wray, intérprete de Ann Darrow em King Kong (King Kong, 1933), de Merian C. Cooper e Ernest B. Schoedsack. Entretanto, não aparece em cena, ao menos de forma visível. Participa por meio de um dos atributos que a tornaram memorável graças ao título referenciado: os gritos da personagem. Servem ao som emitido pela campainha da entrada principal do castelo de Lionel Twain.


Maggie Smith no papel de Dora Charleston


Merecem destaque os divertidos e funcionais comentários musicais de Dave Grusin, a evocativa direção de fotografia de David Walsh e a combinação entre direção de arte e decoração de interiores por conta dos profissionais Harry Kemm e Marvin March.





Roteiro: Neil Simon. Produção associada: Roger M. Rothstein. Música: Dave Grusin. Direção de fotografia (Metrocolor, Panavision): David M. Walsh. Montagem: John F. Burnett. Supervisão de montagem: Margaret Booth. Aprendiz de montagem: John Brice. Assistente de montagem: Michael A. Stevenson. Produção de elenco: Jennifer Shull. Desenho de produção: Stephen Grimes. Direção de arte: Harry Kemm. Decoração: Marvin March. Figurinos: Ann Roth. Maquiagem: Joseph Di Bella. Supervisão de maquiagem: Charles Schram. Penteados: Vivienne Walker. Assistência de direção: Fred T. Gallo. Segunda assistência de direção: David O. Sosna. Contrarregra: Terry E. Lewis. Carpintaria: Ron Frazier (não creditado). Mixagem sonora: Jerry Jost. Operador de boom: Joseph Kite. Regravação de som: Tex Rudloff. Edição de efeitos sonoros: Frank Warner. Efeitos especiais: Augie Lohman. Dublê: Maurice Marks (não creditado). Assistência de câmera: Robert Edesa, Richard Moran. Eletricista-chefe: Norman Harris. Operador de câmera: Roger Shearman Jr. Fotografia de cena: Mel Traxel. Confecção de vestuário: Tony Faso (masculino), Agnes G. Henry (feminino). Joias: Joan Joseff (não creditada). Edição musical: George Probert. Planejamento de créditos: Charles Addams, Wayne Fitzgerald. Assistência para a produção: Frank Bueno. Assistência para a gerência de produção: Shari Leibowitz. Assistência para Ann Roth: Mary Malin. Auditoria da produção: Vince Martinez. Instrutor de diálogos: George Rondo. Publicidade: Carol Shapiro. Continuidade: Julia Tucker. Firma de serviços de produção: Benmil & Associates. Jurisdição da produção: International Alliance of Theatrical Stage Employees (IATSE). Tempo de exibição: 94 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1992)