domingo, 6 de outubro de 2013

PASSADO, PRESENTE E CONTRADIÇÕES MAL RESOLVIDAS DO ESTADO NACIONAL ITALIANO EM ABORDAGEM INTIMISTA

Os irmãos Giuranna se reencontram para o velório da mãe em pequena cidade de feições rurais ao sul da Itália. O juiz Raffaele (Phillipe Noiret), o professor e tutor Rocco (Vittorio Mezzogiorno) e o operário Nicola (Michele Placido) reúnem diferentes e divergentes visões dos conflitos sociais e políticos que punham em xeque o Estado nacional italiano ao longo da década de 70. Posicionamentos tingidos de radicalismo, idealismo, formalismo e legalismo pontuam em Três irmãos (Tre fratelli, 1981), de Francesco Rosi, um dos expoentes do vigoroso cinema político que floresceu na Itália dos anos 60 aos 80. De olho no futuro, o diretor propõe um diálogo entre o tenso presente e o passado de contradições mal resolvidas. É um filme oportuno, apesar de parecer estranho à filmografia de Rosi, devido à abordagem em tom menor, francamente intimista e carregada de simbologia. A apreciação a seguir é de 1981.






Três irmãos
Tre fratelli

Direção:
Francesco Rosi
Produção:
Antonio Macri, Giorgio Nocella
Iter Films (Roma), Gaumont (Paris)
Itália, França — 1980
Elenco:
Phillipe Noiret, Charles Vanel, Andréa Ferréol, Michele Placido, Vittorio Mezzogiorno, Maddalena Crippa, Sara Tafuri, Accursio di Leo, Luigi Infantino, Girolamo Marzamo, Gina Pontrelli, Ferdiando Greco, Cosimo Milone, Ferdinando Murolo, Maria Antonia Capotorto, Francesco Capotorto, Cristofaro Chiapparino, Marta Zoffoli, Tino Schirinzi, Simonetta Stefanelli, Pietro Bondi.



O diretor Francesco Rosi


Raffaele Giuranna (Noiret), juiz em Roma; Nicola Giuranna (Placido), operário e sindicalista em Turim; Rocco Giuranna (Mezzogiorno), professor de menores e tutor de delinquentes juvenis em Nápoles: são os personagens do título. Cada qual representa uma classe social. Afastados há algum tempo, reencontram-se para o velório da mãe em cidadezinha de feições rurais ao sul da Itália. Francesco Rosi ― o mais vigoroso e rigoroso mentor do cinema político italiano ― aproveita a ocasião para prosseguir na temática que movimenta alguns de seus melhores filmes a exemplo de O bandido Giuliano (Salvatore Giuliano, 1962), Le mani sulla cittá (1963), O caso Mattei (Il caso Mattei, 1971) e Cadáveres ilustres (Cadaveri eccelenti, 1976): a discussão de questões concernentes à legitimidade do poder e ao contrato social firmado pela Itália a partir de sua constituição em moderno Estado nacional. A democracia e os problemas que a fragilizam ocupam o centro das preocupações do cineasta. Francesco Rosi avança na trilha aberta pelas indagações gramscianas pertinentes à hegemonia em crise.


O juiz Raffaele Giuranna (Phillipe Noiret) com o irmão, o operário Nicola (Michele Placido)

O professor e tutor Rocco Giuranna (Vittorio Mezzogiorno) com o pai Donato Giuranna (Charles Vanel)

Simonetta Stefanelli como a jovem e futura mãe dos irmãos Giuranna 


Na filmografia de Francesco Rosi, Três irmãos ― indicado ao Oscar de Melhor Filme em Língua Não Inglesa ― segue a Cristo se è fermato a Eboli (1978), inédito nos cinemas brasileiros, por sua vez posterior ao seco, objetivo, corajoso e documental Cadáveres ilustres. O filme de agora não repete o impacto das melhores realizações do diretor. Porém, não deixa de ser oportuno. A maneira de narrar é, ao que parece, a causa das principais dificuldades de Três irmãos. Mas os problemas podem decorrer, também, da livre adaptação por Francesco Rosi e Tonino Guerra do conto O terceiro filho, do russo Andrei Platonov: resultou numa abordagem em tom menor, expondo um intimismo e uma simbologia até o momento incomuns ao cinema do diretor. Diante disso, o espectador que há algum tempo testemunha com relativa atenção o processo criativo de Rosi não deixa de sentir certo desconforto.


 O pai Donato Giuranna (Charles Vanel)

À direita, o professor e tutor Rocco Giuranna (Vittorio Mezzogiorno)


Velando a mãe não estão apenas os irmãos, mas três visões diferentes e divergentes da realidade italiana. O juiz Raffaele ― mais velho ― teme um atentado das Brigadas Vermelhas. Demasiadamente formalista e legalista, está, de certo modo, desconectado dos aspectos mais concretos da sociedade na qual vive. Rocco ― adepto intransigente da não violência― é praticamente um prisioneiro do seu próprio idealismo. O operário Nicola é favorável às alternativas radicais para levar adiante as bandeiras do setor que representa. O retorno do trio às origens natais favorece a renovação de reminiscências individuais ― que explicam aspectos idiossincráticos ― e coletivas ― estimuladoras da confraternização e da emergência de contradições latentes. Mas é a realidade do presente a causa dos mais diversos conflitos de opinião. Cada qual emite seus pontos de vista em discussões acaloradas e tensas. O denominador comum, facilitador do consenso, é uma miragem distante. Donato (Vanel), o pai idoso e solitário, vive o presente atado ao passado que confere sentido à sua existência. Está imerso no aparente imobilismo do mundo agrário, de tensões mal resolvidas, sobre o qual se formou o moderno Estado italiano. É a impotência dessa organização política que Donato representa enquanto vaga qual entidade etérea, surda aos problemas que preocupam os seus filhos. Estes também se mostram perdidos e perplexos diante da recente situação de orfandade. A mãe defunta é a própria Itália imobilizada nas cadeias de suas próprias contradições, prestes a se deteriorar.


 Raffaele Giuranna (Phillipe Noiret)

Raffaele Giuranna (Phillipe Noiret) com a ex-esposa, interpretada por Andréa Ferréol


A esperança de recomposição reside em Marta (Zoffoli), filha criança de Nicola. Passa boa parte do filme ao lado do avô ou se aventurando nas descobertas de galpões e corredores antigos da vivenda familiar. Com ela Rosi se propõe ao redescobrir da História, ao restabelecimento de um diálogo entre o novo e o velho do qual poderá emergir outro pacto. O sobrevivente Donato adianta essa possibilidade na derradeira cena do filme, no gesto em que une sua aliança com a da esposa.


Futuro, presente e passado: Marta (Marta Zoffoli), Nicola (Michele Placido) e Donato (Charles Vanel)


Três irmãos é um filme plasticamente bonito. Não naufraga sob o peso de personagens esquemáticos. Porém, como explicar coerentemente uma ação de tão longo alcance de Raffaele? Ao se ausentar do velório para comprar cigarros, ele reencontra um amor do passado e ainda viaja a Turim ― extremo norte da Itália ― em busca da ex-esposa (Ferréol), com a qual vem a passar a noite. O mais espantoso é seu retorno ao ponto de partida, o sul, na manhã seguinte, onde continua a confabular com os irmãos. Será que Francesco Rosi tomou liberdades excessivas com o tempo e as distâncias? Ou o comentarista se distraiu excessivamente em algum ponto da história? Somente a revisão de Três irmãos para esclarecer as dúvidas.






Roteiro: Francesco Rosi, Tonino Guerra, com base no conto O terceiro filho, de Andrei Platonov. Direção de fotografia (Technicolor, Technovision): Pasqualino De Santis. Música: Piero Piccioni. Execução musical: Orchestra dell’Unione Musicisti, Roma. Canção: Je so passo, de Pino Daniele. Inspetor de produção: Lynn Kamera. Secretaria de montagem: Renata Franceschi. Admistração: Vincenzo Lucarini. Secretaria de produção: Lorenzo Errico. Auxiliar de secretaria de produção: Matteo von Normann. Fotografia de cena: Sergio Strizzi. Assistentes de câmera: Roberto Gengarelli, Massimo Riccioli. Microfone: Giusepe Muratori. Maquiagem: Francesco Freda. Penteados: Adalgisa Favella. Auxiliar de costumes: Onelio Millenotti. Efeitos especiais: Renato Agostini. Assistentes de montagem: Lea Mazzocchi, Bruno Sarandrea. Mixagem: Romano Checcacci. Sincronização: Cooperativa di Lavoro Fono Roma. Efeitos sonoros: Studio Sound, Renato Marinelli. Eletricistas: Fiorangelo Plocc, Franco Boccini, Sergio Marra, Ettore Zampagni. Gerente de produção: Franco Ballati. Assistente de direção: Gianni Arduin. Operador de câmera: Mario Cimini. Som direto: Mario Bramonti. Cenografia: Andrea Crisanti. Figurinos: Gabriella Pescucci. Montagem: Ruggero Mastroianni. Organização geral: Alessandro von Normann. Tempo de exibição: 111 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1981)