domingo, 24 de abril de 2016

MARILYN MONROE É A COMICHÃO DE TOM EWELL NO CALOR DE NOVA YORK

Nova York em pleno verão: a temperatura elevada não permite refresco. Ainda mais para o editor Richard Sherman (Tom Ewell) — lobo de meia idade momentaneamente solitário na metrópole —, escalado pelo diretor Billy Wilder para atualizar ancestral hábito dos índios da ilha de Manhattan. Julgando-se imune às tentações que acometem os homens casados de sua faixa etária, põe-se diante da fragilidade de suas convicções morais ao se perceber vizinho da tentadora garota interpretada por Marilyn Monroe em O pecado mora ao lado (The seven year itch, 1955). É a primeira parceria entre o diretor e a atriz. A segunda, quatro anos após, resultará em Quanto mais quente melhor (Some like it hot, 1959), para muitos a melhor das comédias cinematográficas. Coordenados pela inspirada batuta de Billy Wilder, Monroe e Ewell estão afinadíssimos. Como um espírito livre, a atriz representa com rara felicidade a ingênua garota tentação da estabilidade burguesa masculina. O filme certamente mexeu com os pruridos morais das puritanas plateias estadunidenses de meados dos anos 50, ainda sob efeito das cruzadas macarthistas. Mas a direção disfarçou tudo muito bem, com toques sublimes de humor em cenas e diálogos de significados implícitos e dúbios. Além de ser uma delícia, a realização recebe a antológica contribuição de uma das mais benfazejas correntes de ar do cinema. A apreciação a seguir é de 1983.






O pecado mora ao lado
The seven year itch

Direção:
Billy Wilder
Produção:
Charles K. Feldman, Billy Wilder
20th. Century-Fox, Charles K. Feldman Group
EUA — 1955
Elenco:
Marilyn Monroe, Tom Ewell, Sonny Tufts, Roberts Strauss, Oscar Homolka, Marguerite Chapman, Dolores "Roxanne" Rosedale, Evelyn Keyes, Victor Moore, Roxanne, Donald MacBride, Carolyn Jones e os não creditados Doro Merande, Butch Bernard, Dorothy Ford, Ron Nyman, Ralph Sanford, Mary Young, Steven Benson, Kathleen Freeman, Ralph Littlefield, Tom Nolan.



O diretor Billy Wilder com Marilyn Monroe e Tom Ewell nos bastidores da sequência da corrente de ar expelida pelo sistema de ventilação do metrô de Nova York



O pecado mora ao lado é o primeiro filme de Billy Wilder fora da Paramount — companhia que o abrigou desde que chegou aos Estados Unidos após fugir da Europa assombrada por Hitler. Também é sua primeira parceria com Marilyn Monroe e um dos principais trabalhos da atriz. Quatro anos mais tarde ambos voltariam a se ver na antológica e definitiva comédia Quanto mais quente melhor (Some like it hot).


O pecado mora ao lado está entre as melhores peças de humor do cinema. Evidencia com clareza o “toque de Wilder” — misto de malícia e sensualidade respaldada por imagens e diálogos sutis, impregnados de ambiguidade. Segundo revelam as divertidas cenas iniciais, a temática que aborda — se não for universal ou ocidental — é tipicamente americana. Um rápido prólogo introduz o espectador no assunto: leva-o ao passado, quando a ilha de Manhattan, Nova York, era habitada exclusivamente por índios. Os nativos, especialmente os homens casados, cultivavam hábito muito “estranho”: atiravam-se loucamente à caça de mulheres assim que enviavam esposas e filhos às estações de férias.


O prólogo: Dorothy Ford faz a jovem índia


Logo o narrador esclarece: não é um filme sobre índios. No entanto, frisa: os atuais moradores de Manhattan ainda atualizam a tradição indígena tão logo começam as férias de verão. Daí, O pecado mora ao lado acompanha por 48 horas a vida de Richard Sherman (Ewell) — sujeito de meia idade prestes a sentir os sintomas típicos de sua faixa etária, que despertam o lobo adormecido: a “comichão dos sete anos” (de casamento) do título original, tal qual os índios do começo. Funcionário de uma editora, Richard é responsável pela seleção e lançamento de publicações da literatura de bolso. Do casamento com Helen (Keyes) nasceu o garoto Richy (Bernard). Logo fica evidente: é exemplar como marido e pai — o típico e estável homem médio estadunidense.


Após o prólogo, Richard Sherman é visto na estação ferroviária. Despede-se da família, de partida a uma estação de férias. O calor é insuportável em Nova York. Ele não viajará por motivos profissionais. Jura para a esposa que se comportará em todos os sentidos. Inclusive evitará a bebida e o fumo. Já em casa, esforça-se para examinar os originais de um livro sobre problemas conjugais de homens de meia idade, com ênfase no “comichão dos sete anos”. A leitura é convite à imaginação, na qual dialoga com Helen e protagoniza improváveis escapulidas com a secretária, vizinha, melhor amiga da esposa — praticamente reproduzem o tórrido beijo na praia entre os personagens de Burt Lancaster e Deborah Kerr em A um passo da eternidade (From here to eternity, 1953), de Fred Zinnemann. É devolvido à realidade pelo toque do interfone. Uma voz feminina solicita-lhe a gentileza de abrir a portaria, pois não está de posse da chave. Trata-se da própria encarnação do pecado presente ao título brasileiro de The seven year itch: Marilyn Monroe no auge da forma como a garota sem nome. Ocupa provisoriamente o apartamento superior ao de Sherman.



Acima e abaixo: A Garota (Marilyn Monroe) entra em cena


Monroe em cena é conjugação sem precedentes de provocação, inocência, alegria, pureza, sensualidade, simplicidade e tentação. Abobalhado, Sherman quase desloca o pescoço para vê-la passar, tão logo entra e sobe as escadas. O "comichão" já o domina completamente. E pensar que recriminara, na estação, o assanhamento de maridos transformados em lobos famintos tão logo se livraram das famílias. Agora, excitado, esquece inclusive as recomendações médicas e juras feitas a Helen. Tenta se acalmar com drinks e cigarro. A imaginação está em acelerado e alto voo livre. Motivos há de sobra. Logo a tentação entrará em sua vida, fazendo-se tão próxima quanto inatingível.


Tenta voltar à normalidade. Acomoda-se na varanda. Quase é atingido na cabeça pelo vaso que despenca do andar superior — um descuido da vizinha. Ela, tão assustada quanto a eventual vítima, debruça-se no parapeito para se desculpar. À primeira vista parece que está nua. É o bastante para Sherman perder o senso de orientação. Ilumina-se! Assanha-se! Convida-a a descer. Poderá ouvir música e saborear alguns drinks. A garota aceita. Porém, informa com todas as letras: antes, vestirá a calcinha deixada na geladeira para refrescar por causa do excesso de calor. Os comentários melódicos de Concerto n. 2 para piano de Rachmaninoff não a comovem. Musicalmente, é partidária do gosto popular. Na verdade, queria apenas se refrescar no ar condicionado do anfitrião. De nada vale o ventilador que conseguiu. Literalmente, Sherman deseja "se molhar". Em transe, toma conhecimento das atividades às quais se dedica a vizinha: modelo de “fotos artísticas” e anúncios televisivos de creme dental. Coincidentemente, guarda um livro de fotografias ilustrado por imagem da garota estirada de bruços na areia da praia, entre pedras e plantas rasteiras, trajando generosos (para a época) soutien e short quadriculados. A pose lembra a foto de calendário que catapultou a nua Marilyn Monroe para a fama.


A Garota (Marilyn Monroe) no apartamento do vizinho Richard Sherman (Tom Ewell)

  
Os momentos de humor são sublimes. A atriz está deliciosa em seu papel de ingênua-esperta, a provocar os macaquinhos que infestam o sótão da moralidade do americano médio — seja quando faz usos do chuveiro e da cama do solícito vizinho; ao se desmanchar tentadoramente na poltrona do pobre coitado; na execução do bife ao piano; e ao lhe aplicar um par de beijos que confirmam a veracidade do frescor do creme dental que anuncia — cena que valoriza a força do mercado publicitário estadunidense na vida do cidadão comum. Por fim, uma das sequências mais famosas do cinema: num passeio noturno pela quente Nova York, a garota se refresca na lufada de ar do respiradouro do metrô. Para satisfação de Richard, a saia se eleva acima do quadril, revelando tudo o que era permitido naquele meado dos anos 50.


Marilyn Monroe é A Garota


Tom Ewell e Marilyn Monroe estão afinadíssimos. A parceria de ambos ocupa praticamente todos os tempos do filme. Sobra muito pouco para o elenco de apoio. Mesmo assim, seus integrantes defendem com garra os reduzidos papéis, sempre que surgem oportunidades. Principalmente Robert Strauss como o abobalhado e impertinente Mr. Kruhlik, zelador do prédio, também atacado pelo “comichão”. Sabiamente, despachou mulher e filho para um passeio.



Acima e abaixo: Richard Sherman (Tom Ewell) e A Garota (Marilyn Monroe)


O tema, sem dúvida, era cabeludo para as puritanas plateias dos Estados Unidos. O conservadorismo, guindado pela paranoia moralizante e anticomunista das campanhas do Senador Joseph McCarthy, falava alto. Mas Wilder soube suavizar os momentos de arrepio, inserindo cenas e diálogos de significados implícitos e dúbios, que não se revelavam de pronto à obtusidade da maioria dos espectadores estadunidenses.


A inesquecível cena de Marilyn no respiradouro do metrô, apesar de simples causou muita dor de cabeça. Wilder pretendia filmá-la em locação, próximo à esquina da Rua 54 com a Madison Avenue. Bem que tentou. Mas cerca de 5 mil curiosos, dentre os quais prováveis vítimas do “comichão”, compareceram ao local para testemunhar a generosa elevação do vestido da atriz. Sob a grade, eletricistas acionavam potente ventilador. Chegaram a ser subornados com congratulações e copos de vinho dos presentes, tão desejosos de um lugar privilegiado ou de ocupar até as funções da própria corrente de ar. Por perto, furioso, o boxeador Joe DiMaggio — à época marido de Marilyn — estava pronto para distribuir sopapos. O assédio excessivo prejudicou as filmagens. Incapaz de controlar a situação, Wilder voltou aos estúdios, onde reconstituiu a esquina tornada famosa por causa da atriz. Tranquilamente, filmou toda a sequência conforme o planejado.


A Garota (Marilyn Monroe) e Richard Sherman (Tom Ewell) em uma das mais antológicas sequências do cinema

  
Paradoxalmente, o humor e a vivacidade que Marilyn esbanja ao longo do filme não correspondiam à realidade. O conturbado relacionamento com DiMaggio era movido a agressões físicas, por causa do excessivo ciúme do consorte, sempre ampliado pelas atenções que ela a todo instante recebia. Segundo Tom Ewell, a parceira chegou a comparecer às filmagens com o corpo coberto de hematomas. Em depressão, atrasava-se constantemente, levando diretor, atores e técnicos ao desespero. Tais agruras, provavelmente, abalaram a autoestima da atriz, e contribuíram para o triste fim que a acometeu em 5 de agosto de 1962, aos 36 anos, descontadas aí as causas da morte alimentadas por teorias da conspiração.





Roteiro: Billy Wilder, George Axelrod, baseados na peça The seven year itch, de George Axelrod, encenada nos palcos por Courtney Burr e Elliott Nugent. Direção de fotografia (CinemaScope, Color DeLuxe): Milton R. Krasner. Música: Alfred Newman, Cyril J. Mockridge (música adicional/não creditado), Sergei Rachmaninoff (Concerto n. 2 para piano). Direção de arte: George W. Davies, Lyle R. Wheeler. Decoração: Walter M. Scott, Stuart A. Reiss. Figurinos: Travilla. Maquiagem: Bem Nye. Maquiagem de Marilyn Monroe: Allan Snyder (não creditado). Penteados: Helen Turpin, Gladys Rasmussen (não creditada), Gladys Witten (não creditada). Montagem: Hugh S. Fowler. Produção associada: Doane Harrison. Assistente de direção: Joseph E. Rickards. Som: Harry M. Leonard, E. Clayton Ward. Planejamento de créditos: Saul Bass. Consultor de cor: Leonard Doss. Efeitos fotográficos especiais: Ray Kellogg. Direção de guarda-roupa: Charles Le Maire. Orquestração: Edward B. Powell. Assistente de câmera: Felix Trimboli (não creditado). Efeitos do respiradouro do metrô e Gerente de unidade de produção em Nova York: Saul Wurtzel (não creditado). Gerente de unidade: A. F. Erickson (não creditado). Contrarregra (não creditada): Jack Stubbs, Tom Volpe. Edição de som (não creditada): Louis Hesse, Ray Raymond, Dolph Rudeen. Assistente de câmera: Walter Engels (não creditado). Fotografia de cena: Sam Shaw (não creditado). Assistente de câmera e operador de câmera da segunda unidade: Felix Trimboli (não creditado). Guarda-roupa masculino: Sam Benson (não creditado). Joalheria: Joan Joseff (não creditada). Guarda-roupa feminino: Ann Landers (não creditada). Assistentes de montagem (não creditados): Lyman Hallowell, Orven Schanzer. Direção musical: Alfred Newman (não creditado). Planejamento de créditos: Saul Bass. Fotografia de cena: Joe Coudert. Publicidade: S. Charles Einfeld (não creditado). Marcação de tomadas para Marilyn Monroe: Gloria Jones (não creditada). Instrutor de danças para Tom Ewell: Stephen Papich (não creditado). Auditor da produção: Tom Pryor (não creditado). Consultor de roteiro: Marshall Schlom (não creditado). Sistema de mixagem de som: Stéreo em quatro canais pela Western Electric Recording. Tempo de exibição: 105 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1983)