Anticlimático, estruturado como o avesso do western que é,
O
matador (The gunfighter, 1950) é brilhante em sua composição enganadoramente
simples. É um dos grandes momentos do diretor Henry King e de Gregory Peck. Magnificamente
fotografado em preto-e-branco por Arthur C. Miller e com discreto mas eficaz
acompanhamento musical de Alfred Newman e Dimitri Tiomkin, o filme une ao
western a inevitabilidade grega da tragédia. Peck interpreta o amargurado Jimmy
Ringo, pistoleiro de alma destruída e destituído de lugar no cenário dos
últimos dias do velho Oeste. Por força das circunstâncias e das próprias
escolhas perdeu o controle sobre os rumos de sua existência. Vive impulsionado
pela intervenção de variáveis alheias, esculpidas pelo destino. Erroneamente
classificado como o primeiro western psicológico, O matador é, entretanto,
um dos expoentes dessa vertente inaugurada por John Ford com o clássico e
modelar No tempo das diligências (Stagecoach, 1939). A apreciação a seguir é de
1986.
O matador
The gunfigther
Direção:
Henry King
Produção:
Nunnally
Johnson
20th. Century-Fox
EUA — 1950
Elenco:
Gregory
Peck, Helen Westcott, Jean Parker, Karl Malden, Richard Jaeckel, Skip Homeier,
Millard Mitchell, Anthony Ross, Verna Felton, Ellen Corby e os não creditados Archie
Twitchell, Larry Buchanan, Angela Clarke, Cliff Clarke, David Clarke, Eddie
Ehrhart, Jack Elam, Alan Hale Jr., Jean Inness, Mae Marsh, Harry B. Mendoza,
James Millican, Alberto Morin, Ed Mundy, B. G. Norman, Eddie Parks, Hank
Patterson, John Pickard, Harry Shannon, Kim Spalding, Houseley Stevenson,
Ferris Taylor, Kenneth Tobey, William Vedder, Anne Whitfield, Credda Zajac,
Victor Adamson, Murray Alper, Chet Brandenburg, Edmund Cobb, Dick Curtis, Harry
Harvey, Tommy Lee, Pierce Lyden, Warren Schannon, Jack Tornek, Dan White,
Blackie Whiteford, Michael Branden.
O diretor Henry King - o segundo da esquerda para a direita - na companhia dos seus pares: Frank Lloyd (primeiro à esquerda), John Ford e Frank Borzage (primeiro à direita) |
Gregory Peck
estrelou meia dúzia de filmes para Henry King. Desconheço o sexto, O
ídolo de cristal (Beloved infidel, 1959), sobre o
romance entre Francis Scott Fitzgerald e a colunista Sheilah Graham. Para
Rubens Ewald Filho é realização infeliz e, segundo a própria Sheilah, “tão ruim
e (...) mentiroso” que ela preferiu sair “da cidade (Hollywood) por uns tempos”[1].
O terceiro, David e Betsabá (David and Bathsheba, 1952), extraído
da Bíblia, é insatisfatório, o mesmo valendo para o quarto, As
neves do Kilimanjaro (The snows of Kilimanjaro, 1952),
baseado em livro homônimo de Ernest Hemingway. O primeiro, o intimista drama de
guerra Almas em chamas (Twelve O’clock high, 1949), indicou
Peck ao Oscar de Melhor Ator[2]
e concorreu na categoria de Melhor Filme. O quinto é o bom Estigma da crueldade (The
bravados, 1958), western de narrativa rápida e segura, um dos mais
eficientes sobre o batido tema da vingança. Mas nada se compara ao segundo
filme da dupla, o discreto, despojado e enganadoramente simples O
matador. Não ganhou prêmios, mas frequenta as listas dos melhores
westerns de todos os tempos.
1880: o velho
Oeste está próximo do fim. O “texano alto e magro” Jimmy Ringo (Peck) goza de
muita notoriedade e nenhuma tranquilidade. Pistoleiro, matou 12 homens. O
magnetismo da fama lhe credita mortes que não causou em cidades que sequer
conhece. O personagem faz, entre amargo e irônico, o balanço de uma existência chegada
aos 35 anos sem nada construir. Sequer possui a segurança de um lugar que possa
reconhecer como seu. “É uma bela vida, não é? Procurando continuar vivo. Sem
viver realmente. Sem apreciar nada. Só tentando evitar ser morto”. Onde quer
que vá encontra alguém, geralmente um jovem em busca de afirmação, querendo lhe
tomar o título de gatilho mais rápido que se conhece.
"O texano alto e magro" Jimmy Ringo (Gregory Peck) |
As primeiras
cenas de O matador exibem os créditos sobre o personagem cavalgando no
deserto. É simbólica essa imagem. A amplidão do espaço vazio e árido, distante
de tudo e todos, incapaz de sustentar a vida, traduz o mundo e a alma de Jimmy
Ringo. Revela a nulidade de uma trajetória feita de destruição. Ele tem ciência
do significado de seu papel. Sabe que seu tempo se aproxima do fim, como o
selvagem Oeste dos pistoleiros no qual foi formado. As cidades crescem,
impulsionadas pelos valores da civilização. Mas não abrem espaço para gente
como Ringo. É no deserto — distante dos laços da
sociabilidade e da ousadia dos fanfarrões que lhe pretendem o posto — que encontra paz
e segurança não permitidas pela má fama. Na primeira localidade em que chega é
obrigado a matar o arrogante Eddie (Jaeckel), rapazola que o desafiara.
Perseguido pelos irmãos da vítima (Hale Jr., Cliff Clarke e Pickard), ruma para
Cheyenne, Novo México, onde se haverá com Hunt Bromley (Homeier), outro jovem
candidato à fama.
Jimmy Ringo (Gregory Peck) |
Jimmy Ringo
lamenta a própria sorte ao manifestar pesar pela estúpida morte do amigo e
pistoleiro Buck, encontrado num beco, estirado, com um tiro na nuca. Para a
desamparada viúva Molly (Parker) deixou apenas dois revólveres, um cavalo, uma
sela e 15 dólares. Silenciosamente, inveja o ordeiro e pacato Johnny (Twitchell),
casado e dono de propriedade adquirida com o trabalho. Sente o mesmo por Mark
Strett (Mitchell), atual delegado (marshal) de Cheyenne, outrora celerado como ele, mas que
teve a sorte de saber o momento de parar e mudar de vida. Mark é o exemplo de
homem que ele oferece a Jimmie (Norman) — o filho de 8 anos que teve com a
professora Peggy Walsh (Westcott).
Gregory Peck é o torturado Jimmy Ringo. |
São 7h50min
quando Johnny Ringo chega ao Palace Bar, em Cheyenne. Daí em
diante o filme conta as pouco mais de duas horas de vida que lhe restam. Não
parece perigoso — notam alguns personagens. Na descrição do delegado está “um
pouco mais velho, mais cansado, menos atrevido do que costumava ser”. Ou,
segundo Molly, “Não está mais selvagem, apenas triste”. Na verdade, encontra-se
esgotado. Veio a Cheyenne revirar o passado e arriscar a construção de um
futuro alternativo, se possível em algum lugar distante (América do Sul, por
exemplo) onde não o conheçam e possa ter paz. Deseja pendurar as pistolas e
levar vida normal. Mas há muito perdeu o controle sobre a própria história.
Vive impulsionado pela intervenção de variáveis alheias à própria vontade. Tem
existência moldada pelo destino, como um personagem de tragédia. Mark sabe
disso. Apesar da amizade a Ringo, pede-lhe para não se demorar em Cheyenne. Teme que sua
presença traga consequências nefastas para a cidade.
Ringo deseja
rever Peggy e conhecer o filho. Ela, em luta contra o passado, resiste à ideia.
É professora em Cheyenne; uma agente da civilização, portanto. Faz parte de um
mundo gregário e estável. Divulga ideias e valores diametralmente opostos aos
representados pelo pistoleiro errante. Na cidade ninguém sabe de seu
envolvimento com Jimmy Ringo, exceto o delegado. Jamais revelou a Jimmie que ele
é filho do homem mais famoso daquelas bandas.
Gregory Peck no papel de Jimmy Ringo |
Jimmy Ringo, por
recomendação de Mark, passa quase todo o tempo acomodado no Palace Bar,
esperando a oportunidade de se avistar com Peggy. Mesmo assim, praticamente
oculto, tumultua Cheyenne. Não demora para toda a cidade saber de sua presença
— principalmente os garotos, que montam plantão na porta do estabelecimento.
Discutem quem, no Oeste, é mais rápido. Ringo se incomoda com a algazarra. Não
pretendia servir de mau exemplo. Fica sabendo que Jimmie faz parte da turma.
Pensa na própria infância, nas oportunidades que desperdiçou ou não teve. Questiona
Mark: “Que bela maneira de educar um menino! Fazendo confusão na porta de um
bar. Não há uma escola nessa cidade?” É informado que a meninada cabulou aula
para vê-lo.
As representantes
da liga da decência de Cheyenne — Mrs.
Pennyfeather (Felton), Mrs. Devlin (Corby), a esposa (Angela Clarke) do barman (Malden) e Mrs. O'Brien (Marsh) — se mobilizam
contra a presença do pistoleiro e pedem providências ao delegado. O idoso Sr.
Jerry Marlow (David Clarke) se arma para emboscar Ringo, acreditando
erroneamente que se trata do assassino de seu filho. O candidato a pistoleiro
Hunt Bromley, enciumado com a repercussão da presença do personagem de Peck na
cidade, resolve provocá-lo, na tentativa de provar que é o melhor. É regiamente
escorraçado. Peggy afasta Jimmie da frente do bar. Tranca-o em casa. Mas o garoto foge
pelo telhado e volta ao Palace. Os irmãos de Eddie chegam à cidade.
Molly (Jean Parker) e Jimmy Ringo (Gregory Peck) |
Com a intervenção
de Molly, Ringo encontra Peggy ao se esgotar o tempo de sua permanência em Cheyenne. Tenta
convencê-la a participar de seu projeto de mudança de vida. Ela, a princípio,
reluta, mas lhe dá uma chance. Porém, mais importante, apresenta-o a Jimmie.
Ringo não revela ao garoto que é seu pai. Mesmo assim, conversam demoradamente
sobre o futuro. Está pronto para partir. Charlie (Ross), auxiliar do delegado, aprisiona
os irmãos de Eddie quando preparavam uma emboscada. O problema é o ressentido
Hunt Bromley: atira pelas costas quando Ringo iniciava a cavalgada. Os
ferimentos são mortais. Antes de expirar, Ringo convence Mark a não prender o
assassino. Diz a ele: “Faria um favor se o deixasse ser enforcado e acabasse
logo com isso. Mas quero que viva. Seja um matador durão. Mais tarde entenderá.
Espere e verá”. Ringo lançou sobre Hunt a marca da maldição, que todos os
pistoleiros carregam. “Há muitos esperando pela chance de matar o homem que
matou Jimmy Ringo” — completa Mark, antes de expulsar de Cheyenne o novo
matador.
Jimmy Ringo (Gregory Peck) e Peggy Walsh (Helen Westcott) |
O matador é magnificamente
fotografado em preto-e-branco por Arthur C. Miller e traz discreto mas
eficiente acompanhamento musical de Alfred Newman e Dimitri Tiomkin. O sisudo
Gregory Peck oferece como o lacônico e amargo personagem do título um dos
melhores desempenhos de sua carreira. O papel se encaixa maravilhosamente ao
fenótipo do ator, que teve a chance de repetir a proeza ao interpretar Jim
Douglas, o vingador de poucas palavras de Estigma da crueldade.
Jimmy Ringo (Gregory Peck) com o filho Jimmie (B. G. Norman) |
Pela forma da
narração O matador se assemelha mais a um antiwestern. Isso quer dizer:
Henry King construiu um drama intimista, sobre alguém que amarga uma vida
dominada pela falta de sentido. Quase não há tomadas exteriores. O filme se
passa praticamente em ambiente fechado. Os portentosos, expansivos e marcantes
horizontes dos westerns são exibidos somente na abertura, durante a
apresentação dos créditos, e na evocativa e crepuscular cena final. Cumprem
função de reforçar os aspectos mítico e lendário da vida de Jimmy Ringo, que
ele nunca controlou. Mas o principal bloco narrativo é todo anticlimático.
Mostra um homem fechado em estoicismo, manifestando sincera vontade de romper
com o próprio mito, desejando a prosaica tranquilidade do cidadão comum,
ansioso para reordenar em sentido contrário a trajetória em que se firmou.
Henry King carrega de austeridade e concisão essa antiepopeia crepuscular. O
filme conduz a conclusões acres e melancólicas. Por um lado há o indivíduo Jimmy
Ringo, impotente diante dos ordenamentos da vida. De outro há uma sociedade
incapaz de reajustar os próprios valores ao pretender incorporar os mores do
mundo civilizado; conservando atuantes os fatores que favorecem o surgimento
dos pistoleiros. O cioso delegado Mark Strett, representante da lei e da ordem,
não consegue evitar a tragédia final. Como mães, as moralistas senhoras de
Cheyenne se revelam incompetentes para impedir o surgimento de negações sociais
como Hunt Bromley. A escola é ineficaz para incutir novos valores nas crianças em
formação.
Jimmy Ringo (Gregory Peck) com 0 delegado Mark Strett (Millard Mitchell) e sendo desafiado por Hunt Bromley (Skip Homeier) |
Para muitos, O
matador é o primeiro western psicológico. Ora, não é mesmo! Antes dele
há Sangue
na lua (Blood on the moon, 1948), de Robert Wise, e, principalmente, No
tempo das diligências (Stagecoach, 1939), de John Ford,
precursor de todos os westerns modernos, inclusive os psicológicos.
Roteiro: William Bowers, William Sellers (não creditado), Roger
Corman (não creditado), André De Toth (não creditado), baseados em história de William
Bowers e André de Toth. Música:
Alfred Newman, Dimitri Tiomkin (não creditado). Direção de fotografia (preto-e-branco): Arthur C. Miller. Direção de arte: Lyle R. Wheeler, Richard
Irvine. Decoração: Thomas Little,
Walter M. Scott. Montagem:
Barbara McLean. Direção de guarda-roupa:
Charles Le Maire. Figurinos:
Travilla. Orquestração: Edward B.
Powell. Maquiagem: Ben Nye. Efeitos fotográficos especiais: Fred
Sersen. Som: Alfred Bruzlin, Roger
Herman. Penteados: Myrtle Ford (não
creditada). Gerente de produção:
Joseph C. Behm (não creditado). Assistente
de diretor: F. E. 'Johnny' Johnston (não creditado). Dublês: Ted Mapes (não creditado), Duke York (não creditado). Operador de câmera: Paul Lockwood (não
creditado). Fotografia de cena: Cliff
Maupin (não creditado). Guarda-roupa:
Sam Benson (não creditado), Ed Wynigear (não creditado). Direção musical: Alfred Newman (não creditado). Continuidade: Teresa Brachetto (não
creditado). Edição do roteiro: Roger
Corman (não creditado). Sistema de mixagem
de som: Western Electric Recording. Tempo
de exibição: 85 minutos.
(José Eugenio Guimarães, 1986)
[1] EWALD FILHO, Rubens. Os filmes de hoje na TV.
São Paulo: Global, 1977. p. 101. Parênteses de José Eugenio Guimarães.
[2] Peck ganhou a estatueta de Melhor Ator por O sol
é para todos (To kill a mockingbird, 1962), de
Robert Mullingan. Além de Almas em chamas recebeu indicações
por As
chaves do reino (The keys of the kingdom, 1944), de
John M. Stall; Virtude selvagem (The yearling, 1946), de Clarence Brown;
e A
luz é para todos (Gentleman’s agreement, 1947), de
Elia Kazan.