domingo, 9 de abril de 2017

O ANTECIPADO CANTO DE CISNE CINEMATOGRÁFICO DE GRACE KELLY

Talvez Alfred Hitchcock se sentisse culpado por perder, com o cinema, a atriz de sua inteira predileção. Poderia ter permanecido em Hollywood, no confortável e controlado ambiente dos estúdios. Porém, resolveu filmar na França as externas de Ladrão de casaca (To catch a thief, 1955). Assim, acabou propiciando o encontro de Grace Kelly com Rainier Louis Henri Mexence Bertrand de Grimaldi — o Príncipe Rainier, de Mônaco. Logo ficaram noivos e se casaram. Como resultado disso, "adeus cinema". A atriz, transformada em princesa, precisava honrar os rituais e compromissos da realeza. O "mestre do suspense" até tentou convencê-la a voltar atrás, inutilmente. Ela ainda faria dois filmes em 1956. O derradeiro é o aprazível Alta sociedade (High society), de Charles Walters. Entretanto, possuidor de maiores significados é o penúltimo: O cisne (The swan), sobre as prerrogativas que pairam sobre a princesa Alexandra (Kelly), obrigada a calar a vontade do coração e contrair matrimônio com o príncipe-herdeiro Albert (Alec Guinness). A realização de Charles Vidor, misto de comédia de equívocos e drama romântico, é amargo conto de fadas às avessas. Guarda muita e irônica semelhança com os últimos movimentos de Grace Kelly, prestes a se tornar princesa e a honrar os imperativos de uma tradição firmada à sua revelia. Não chega a ser um filme extraordinário devido ao andamento burocrático e por apresentar a protagonista em papel no qual se encontra compreensivelmente — dados os compromissos futuros — pouco à vontade. Segue apreciação escrita em 1976.






O cisne
The swan

Direção:
Charles Vidor
Produção:
Dore Schary
Metro-Goldwyn-Mayer
EUA — 1956
Elenco:
Grace Kelly, Louis Jourdan, Alec Guinness, Agnes Moorehead, Jessie Royce Landis, Brian Aherne, Leo G. Carroll, Estelle Winwood, Van Dyke Parks, Christopher Cook, Robert Coote, Doris Lloyd, Edith Barrett e os não creditados Giuseppe Addobbati, Don Anderson, Joe Canutt, Gene Coogan, Leslie Denison, Michael Ferris, Bess Flowers, Stanley Fraser, Raoul Freeman, Jean Heremans, Arthur Lovejoy, Edith Motridge, Ottola Nesmith, Jennifer Raine, Dawn Richard, John Sheffield, Lou Smith, David Thursby.



O diretor Charles Vidor com os intérpretes de Alexandra (Grace Kelly) e Nicholas Agi (Louis Jourdan)



É meteórica a carreira cinematográfica de Grace Kelly. Durou apenas cinco anos e onze filmes. O último, Alta sociedade (High society), realizado por Charles Walters em 1956, é deliciosa refilmagem do não menos aprazível Núpcias de escândalo (The Philadelphia story, 1940), de George Cukor. Um pouco antes, no mesmo ano, Kelly protagoniza O cisne, refilmagem de Noite de idílio (One romantic night, 1930), de Paul L. Stein, sucesso estrelado por Lillian Gish.


Grace Kelly como a princesa Alexandra 


A atriz estreia no cinema em 1951, no pequeno papel de Louise Ann Fuller em Horas intermináveis (Fourteen hours), de Henry Hathaway. A seguir faz Amy Fowler, esposa do marshal Will Kane (Gary Cooper) em Matar ou morrer (High noon, 1952), de Fred Zinnemann. Em 1953, sob as ordens de John Ford, vai à África para viver Linda Nordley em Mogambo (Mogambo) — refilmagem de Terra de paixões (Red dust, 1932), de Victor Fleming —, que a candidata ao Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante. Em 1954 encontra Alfred Hitchcock e faz Margot Wendice em Disque M para matar (Dial M for murder). Devido à sensualidade extravasada do fenótipo louro e olhar azulado-gélido, é transformada no protótipo da femme fatale que o “mestre do suspense” jamais pensara encontrar. Nesse mesmo ano retorna como Lisa Carol Fremont na obra mestra Janela indiscreta (Rear window), de Hitchcock. Grace Kelly encontra muita atividade em 1954: aparece no papel de Nancy Brubaker em As pontes de Toko-Ri (The bridges at Toko-Ri), drama de guerra de Mark Robson; Catherine Knowland em Tentação verde (Green fire) — seu pior filme —, de Andrew Marton; e tem a interpretação que lhe possibilita o Oscar de Melhor Atriz por viver Georgia Elgin em Amar é sofrer (The country girl), de George Seaton. Decisivo será 1955: Hitchcock e o cinema começam a perdê-la. Novamente às voltas com o “mestre do suspense”, interpreta Frances Stevens em Ladrão de casaca (To catch a thief), na França. Na ocasião, conhece Rainier Louis Henri Mexence Bertrand de Grimaldi — o Príncipe Rainier, de Mônaco —, de quem fica noiva. Casam-se em 18 de abril de 1956. Agora Grace Kelly é parte da realeza. O protocolo da nova posição exige o abandono das telas. Porém, antes de se consagrar princesa atua em O cisne; a seguir, Alta sociedade, no qual vive a socialite Tracy Lord.


Os melhores filmes com Grace Kelly são Matar ou morrer e Janela indiscreta. Na comparação, O cisne está anos-luz atrás dessas realizações excepcionais. Sequer contém atuação convincente da atriz. Está apagada, quase sonambúlica. Entretanto, devido às tramas do destino a realização de Charles Vidor será lembrada por apresentar história algo semelhante à biografia da futura Princesa de Mônaco.


Kelly interpreta Alexandra, princesa de família outrora real, apeada do poder por Napoleão Bonaparte. O letreiro de abertura não informa com exatidão onde se desenrola a história. Apenas adianta que é em algum lugar da Europa Central, em 1910.


A princesa Alexandra (Grace Kelly) e o príncipe Albert (Alec Guinness)

As pequenas altezas George (Van Dyke Parks) e Arsene (Christopher Cook), Beatrix (Jessie Royce Landis), Alexandra (Grace Kelly) e o padre Carl Hyacinth (Brian Aherne)


É manhã no palácio da princesa-mãe Beatrix (Landis). Um telegrama provoca rebuliço. Comunica a chegada de um primo, o príncipe real Albert (Guinness), para estadia de apenas quatro dias. O visitante, solteiro, tem a obrigação de prolongar a dinastia. Afinal, é herdeiro ao trono e precisa arranjar esposa. Não há pretendente melhor que a recatada Alexandra — acredita Beatrix, que logo traça um plano com vistas ao sucesso. Se tudo der certo, o casamento possibilitará o retorno da família ao centro da realeza. Encontra aliados na prima Symphorosa (Winwood) e no irmão sacerdote Carle Hyacinth (Aherne). A opinião de Alexandra não conta. Que a natureza siga seu curso.


A família real: Symphorosa (Estelle Winwood), padre Carl Hyacinth (Brian Aherne),  príncipe Albert (Alec Guinness) e rainha Maria Dominika (Agnes Moorehead)


Porém, surgem complicações. Os hábitos pouco ortodoxos de Albert aumentam a insegurança e inibição de Alexandra, mulher com luz própria. Não quer um casamento de conveniência, com o simples objetivo de atender ao apelo da tradição. Prefere considerar questões como o amor. Logo um problema de comunicação se instala com o príncipe-herdeiro, agravado por um elemento estranho à nobreza: Nicholas Agi (Jourdan), plebeu e professor de George (Parks) e Arsene (Cooke) — filhos mais novos de Beatrix —, está apaixonado pela princesa.


Nicholas não tem importância para a princesa-mãe. Ela apenas percebe a proximidade entre o rapaz e a filha. Assim, comete a "imprudência" de incluí-lo entre os convidados ao baile em homenagem a Albert. Instruída pela mãe e sabedora de seus propósitos, a própria Alexandra faz o convite. Despudoradamente, o professor será usado como peão na trama de aproximação das duas altezas.


Alexandra (Grace Kelly) e Albert (Alec Guinness)

Nicholas Agi (Louis Jourdan) e Alexandra (Grace Kelly)


Durante o baile, para provocar ciúme em Albert, Beatrix orienta a filha a dançar com Nicholas. O príncipe não liga. Demonstra tranquilidade, bom humor e autoconfiança. Sabe que o destino trama em seu favor e, portanto, basta dar tempo ao tempo. Assim, dirige-se à orquestra e se põe a tocar com os músicos. Aparentemente, dispensa Alexandra pelo contrabaixo. A cena frustra a todos e deixa a pretendente mais insegura. Ela interrompe a dança e abandona o salão. Tenta se acalmar em um passeio noturno de carruagem. Nicholas se oferece como companhia — algo que não estava nos planos. É a oportunidade para se declarar. De certa forma é correspondido pela titubeante Alexandra.


No palácio, instala-se o alvoroço. Uma pequena provocação sobre a princesa e o professor, da parte do Capitão Wunderlich (Coote) — ordenança de Albert —, deixa o herdeiro enciumado. Apoiado pelo restante da família, à exceção do compreensivo Hyacinth, questiona o comportamento da prima. Pressionada, Alexandra magoa o professor ao revelar que fora convidado apenas para servir de peça a um estratagema. Segue-se discussão sobre o lugar de cada qual no mundo hierarquizado da nobreza. É o melhor momento do filme. No íntimo, Alexandra deseja Nicholas, mas tem compromissos com o papel que o destino traçou à sua revelia. Casará com Albert. Resta a Nicholas, moralmente ferido, a opção de deixar o palácio. No momento da despedida Albert conforta a consorte. Explica porque Alexandra recebeu do pai o apelido de Cisne. A ave só preserva o garbo, a elegância e a independência na água. Fora, é totalmente desajeitada. Também reprime o canto e o libera apenas no momento da morte. Alexandra, princesa, tem a vida predeterminada como o cisne. Para ser o que é, necessita cumprir rituais que a impedem de se expressar com autonomia e se aproximar das "margens da água".


Alexandra (Grace Kelly) e Nicholas Agi (Jouis Jourdan)


O cisne é conto de fadas amargo. A princípio, engana o espectador. Leva-o a crer que a história seguiria a trilha das fábulas tradicionais, rumo ao indefectível final feliz. Mas a princesa cala a voz do desejo. Abre mão do plebeu dos sonhos, que tão bem sabia dos movimentos das estrelas. Conforma-se à condição real — como fez Grace Kelly ao ser alçada ao posto de alteza. Pior para o cinema, Hitchcock e os espectadores lançados à "margem".


Princesa Alexandra (Grace Kelly)


A estreia de O cisne aconteceu uma semana antes do casamento de Kelly com Rainier. A Metro-Goldwyn-Mayer utilizou o acontecimento como peça publicitária. Mas o filme nada tem de extraordinário. Charles Vidor conseguiu apenas uma realização morna. A direção é convencional e displicente. Porém, dentro da estreiteza formal em que se enquadra, soube equilibrar a contento elementos da comédia de equívocos com o drama romântico.





Roteiro: John Dighton, baseado na peça A hattyú, de Ferenc Molnár. Direção de fotografia (Cinemascope, Eastmancolor): Joseph Ruttenberg, Robert Surtees. Música: Bronislau Kaper. Figurinos femininos: Helen Rose. Montagem: John D. Dunning. Assistente de direção: Ridgeway Callow, Herb Hirst (não creditado), Robert E. Relyea (não creditado). Direção de arte: Randall Duell, Cedric Gibbons. Decoração: Henry Grace, Edwin B. Willis. Penteados: Sydney Guilaroff. Consultor de cor: Charles K. Hagedon. Supervisão de gravação: Dr. Wesley C. Miller. Maquiagem: William Tuttle. Gerente de unidade: Jay Marchant (não creditado). Ilustrador da produção: Mentor Huebner (não creditado). Mixagem da regravação de som: Ryan Davis. Som: James Brock (não creditado). Operadores de câmeras (não creditados): Ned Belford, Eric Carpenter, Hubert Jansen, John Pasternak, Jack Swain. Joias: Joan Joseff (não creditado). Orquestração: Robert Franklyn (não creditado). Direção musical: Johnny Green (não creditado). Músicos (não creditados): Alex Alexander (viola), Virginia Majewski (cello), Jack Marshall (guitarra), Max Rabinowitz (piano), Uan Rasey (trompete), Si Zentner (trombone). Coreografia: Angela Blue (não creditada). Continuidade: E. Darrell Hallenbeck (não creditado). Instrutor de esgrimas: Jean Heremans (não creditado). Consultoria técnica: Carl Lonyay (não creditado). Sistema de mixagem de som: mono pela Western Electric Sound System. Tempo de exibição: 104 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1976)