domingo, 19 de junho de 2016

O SOM, A FÚRIA E AS CORES DO MELODRAMA EM "PALAVRAS AO VENTO"

Esta apreciação, escrita em 2004, destaca a importância do alemão Douglas Sirk para o melodrama cinematográfico made in USA. Houve época em que o cineasta e o gênero faziam estremecer os defensores do mal definido bom gosto. Tudo começa a mudar quando cronistas da prestigiada publicação Cahiers du Cinéma, como François Truffaut e Jean-Luc Godard, perceberam o quão personalizados e próprios eram os filmes do diretor, além da familiaridade que guardavam com os andamentos da ópera e da tragédia. Mais contemporaneamente, Sirk se tornou referência para cineastas tão diferentes como o alemão Rainer Werner Fassbinder e o espanhol Pedro Almodóvar. Ambos estão unidos na preferência que concedem a Palavras ao vento (Written on the wind, 1956). Repleto de exageros expressos em som, cor, fúria e simbolismos, é um dos momentos supremos do cinema melodramático. Provavelmente, conforme Sirk, é o exemplar de sua filmografia que melhor define o melodrama como a perfeita tradução da violência psíquica, principalmente por mirar os problemas básicos de indivíduos incompletos, disfuncionais, atormentados e frustrados. Como nas melhores tragédias, a família é o campo de batalha para o extravasamento das dores que engessam ou maculam as almas. Rock Hudson e Lauren Bacall protagonizam a história. Mas a centralidade do drama está com os irmãos representados pelos coadjuvantes Robert Stack e Dorothy Malone, ambos em desempenhos surpreendentes.






Palavras ao vento
Written on the wind

Direção:
Douglas Sirk
Produção:
Albert Zugsmith
Universal International Pictures
EUA — 1956
Elenco:
Rock Hudson, Lauren Bacall, Robert Stack, Dorothy Malone, Robert Keith, Grant Williams, Robert J. Wilke, Edward C. Platt, Harry Shannon, John Larch, Joseph Granby, Roy Glenn, Maidie Norman, William Schallert, Joanne Jordan, Dani Crayne, Dorothy Porter e os não creditados Gail Bonney, Paul Bradley, Robert Brubaker, Carl Christian, Kevin Corcoran, George DeNormand, Don C. Harvey, Phil Harvey, Bert Holland, Jane Howard, Carlene King Johnson, Chester Jones, Glen Kramer, Robert Lyden, Robert Malcolm, Coleen McClatchey, Susan Odin, Cynthia Patrick, Floyd Simmons, Robert Winans, Bess Flowers, Chuck Hamilton, Harold Miller, Ralph Moratz, Barry Norton, Hal Taggart, Robert Winans.



Bastidores de Tudo o que o céu permite (All that heaven allows, 1955): o diretor Douglas Sirk com os protagonistas Jane Wyman e Rock Hudson 


Durante muito tempo qualquer menção ao alemão Douglas Sirk (1897-1987) — Hans Detlef Sierck é o verdadeiro nome — provocava repulsa no seio de cinéfilos autoproclamados conscientes, principalmente entre partidários do sempre mal definido bom gosto. Hoje, tudo mudou; ou quase. Provavelmente, a reavaliação começou por François Truffaut, já nos anos 50. O realizador de Os incompreendidos (Les quatre cents coups, 1959) ainda era cronista em tempo quase integral para a prestigiada revista Cahiers du Cinéma. Conforme parafraseado de Os filmes de minha vida, Douglas Sirk e seus melodramas representam o que há de mais eminente, pois equivalem, em termos cinematográficos, às melhores fotonovelas coloridas[1]. Pronto! Truffaut foi ao essencial. Ao elevar o status do vilipendiado realizador, responsável por obras fundamentais do melodrama — Desejo atroz (All I desire, 1953), Sublime obsessão (Magnificent obsession, 1954), Tudo o que o céu permite (All that heaven allows, 1955), Chamas que não se apagam (There's always tomorrow, 1956), Almas maculadas (The tarnished angels, 1957), Imitação da vida (Imitation of life, 1959) —, incluiu-o no seleto rol de cineastas estadunidenses valorizados como autores pelo periódico francês. Assim, Sirk deixava de ser percebido meramente pelo prisma do artesão competente, mas evitável. Impregnava os filmes com marca específica, pela qual se percebia uma visão-de-mundo própria — repleta de personalidade, portanto, intransferível. Entre os títulos mencionados, tão poderosamente representativos do universo sirkeano, Palavras ao vento merece especial destaque. É um dos momentos supremos do melodrama cinematográfico made in USA. Apesar das abissais diferenças que os separam, perde apenas[2] para Amar foi minha ruína (Leave her to heaven, 1945), de John M. Stahl, do qual Sirk é discípulo e continuador.


Melodramas, grosso modo, são histórias repletas de som e fúria. Abusam do drama e da música altissonante em suas vertentes mais emotivas e sentimentais. Para muitos, são novelas que apelam de forma despudorada aos baixos instintos das massas carentes de razão e ilustração. Estas, supostamente, apreendem a vida exclusivamente pela recorrência aos sentidos, carregando o esforço de absorção com o que há de mais sanguíneo e visceral. Choro, grito, lágrimas e sensações elevadas ao ponto da ebulição compõem a matéria prima melodramática. Os gestos carregados, em tom maior, ampliam-se com as consequências do fracasso e da frustração de seres desgovernados, tangidos por forças irracionais, desprovidas de sentido terreno, conforme o melhor espírito das tragédias. São realizações marcadas por cores fortes — mesmo que alguns dos mais prestigiados melodramas cinematográficos sejam em preto e branco —, impregnadas de simbolismo. Sirk jamais escondeu a adesão ao gênero. Definiu-o como a melhor tradução da violência psíquica. Assim, necessita da complementação de aparatos capazes de sugerir e transmitir impulsividade, compulsões, traumas, complexos, muitas vezes ocultos no âmago de subjetividades acuadas, carentes e feridas. Tanto extravasamento de aspectos recônditos da individualidade fez do melodrama um gênero menor, a ser evitado por quem valoriza o controle da vida nos planos lógico-racionais. No cinema, a potência do melodrama foi elevada pela música — quase sempre desenvolvida como sucessão de crescendos e atenuações, capaz de conduzir o espectador a uma situação de montanha russa em cujo ápice melódico está também o ponto culminante da história. Em realidade, melodramas conduzidos sem os devidos cuidados podem resultar em produções da mais pura perversão e gratuita manipulação de instintos.


No cinema de Douglas Sirk a estrutura básica do melodrama vai muito além. Suas realizações, mesmo as mais dramaticamente tingidas, são narrativas construídas como exercícios analíticos — por mais paradoxal que isso possa parecer —, nas quais o som e a fúria jamais escamoteiam os elementos lúcidos e enfáticos fundamentais à compreensão e contextualização das histórias encenadas. Seus filmes são metafóricos e, como tais, constituem os melhores esforços para apreender uma realidade que, como bem sabia o diretor, não pode ser abarcada de forma plena e objetiva, diante dos muitos elementos, inclusive anímicos, que a percorrem. A realidade inalcançável é absorvida como reflexo projetado nas almas e consciências individuais a partir de determinadas construções sociais. Diante de algo poderosamente inatingível, que escapa ao pleno controle, o melodrama sirkeano apresenta simulacros da vida — artifícios que se valem de todos os poderes permitidos pela ilusão cinematográfica para apreender e comentar fragmentos de uma dada realidade. Talvez, por isso, um filme como Palavras ao vento tenha tantos espelhos nos cenários. É como se Sirk ousasse dizer: aquele que tentar desvendar a realidade em sua pureza e crueza esbarrará em vidro espelhado, pelos quais nos contentamos ou não — a depender de capacidades de ajustamentos — com reflexos e ilusões de nós mesmos. Além disso, podemos nos ferir nos cacos produzidos pelas nossas ousadias ou incapacidades de lidar com desejos e frustrações.


Em Palavras ao vento Lauren Bacall interpreta a contida Lucy Moore Hadley, casada com Robert Kyle Hadley (Stack), rico herdeiro de um complexo da exploração texana de petróleo. Humphrey Bogart, marido da atriz, já próximo do fim da vida — faleceu em 1957 —, assistiu ao filme e sua reação corresponde à má vontade ou desprezo à época devotado aos carregados melodramas de procedência sirkeana. Segundo consta, pediu encarecidamente à esposa que evitasse novos papéis em produções de gosto tão duvidoso — conselho que Bacall, pelo visto, seguiu à risca. Felizmente, na Europa — independente das apreciações positivas de Truffaut e outros redatores do Cahiers du Cinéma, como Jean-Luc Godard — a história era outra. Nessa parte do mundo Sirk sempre foi mais bem compreendido. Provavelmente por causa da maior familiaridade dos europeus com as encenações operísticas e o andamento da tragédia. O próprio diretor confessou: “Meu ideal (...) é a tragédia grega, em que tudo se passa em família, num mesmo lugar. E essa família é idêntica ao mundo, é o símbolo desse mundo”[3]. A família como microcosmo, um reduzido campo de batalha existencial que expande pela humanidade os problemas básicos dos indivíduos, principalmente seus tormentos e frustrações.


Lucy Moore —  interpretada por Lauren Bacall — conhece Mitch Wayne — representado por Rock Hudson 

Por outro lado, mesmo acrescentando pontos a seu favor, Douglas Sirk não deixa de conceder certa dose de razão aos seus detratores quando admitiu extrair do lixo a matéria prima dos seus melodramas. Mas, no arremate, frisou que há uma distância ínfima entre a obra de arte e o descartável. Mas quando se tem em mãos a escória decorrente das insanidades e angústias humanas, pode-se estar certo de que há aí matéria de muita qualidade para o melhor da arte. Cineastas como o alemão Rainer Werner Fassbinder e Pedro Almodóvar compreenderam muito bem as razões de Sirk, mesmo que nunca tenham feito algo próximo da alta voltagem melodramática de Palavras ao vento — o favorito de ambos. O alemão, por exemplo, é tributário de Sirk com As lágrimas amargas de Petra von Kant (Die bitteren Tränen der Petra von Kant, 1972), O casamento de Maria Braun (Die Ehe der Maria Braun, 1979), Lili Marlene (Lili Marleen, 1981) e O desepero de Verônica Voss (Die Sehnsucht der Veronika Voss, 1982) — para ficar apenas com esses títulos. Referências sirkeanas são percebidas no espanhol em Má educação (La mala educación, 2004), Fale com ela (Hable con ella, 2002), Tudo sobre minha mãe (Todo sobre mi madre, 1999) e A flor do meu segredo (La flor de mi secreto, 1995). Nos Estados Unidos, Todd Haynes com Longe do paraíso (Far from heaven, 2002) bebe explicitamente na fonte de Sirk nessa realização que referencia diretamente o seu universo.


Sirk abandonou a Alemanha natal próximo da "vigésima quinta hora", em 1938. Hitler, consolidado no poder, há anos revelava suas reais intenções. A carreira do cineasta contava, nesta altura, com 14 títulos entre curtas e longas. O recomeço nos Estados Unidos não foi fácil. Demorou aproximados 12 anos até encontrar condições seguras para redefinir temas e estilos. Enquanto aguardava dias melhores, foi pau para toda obra em realizações aventuradas pelos mais diversos gêneros. O renascimento, seguido de algumas quedas, começa, pode-se dizer, em 1952, com Sinfonia prateada (Has anybody seen my gal), protagonizado por seu ator fetiche: Rock Hudson. Aos poucos se consolida na Universal e encontra no melodrama o porto seguro. Daí ao encerramento da carreira realiza consistente conjunto de filmes que o definirão como autor personalizado.


Passados quase 50 anos de sua realização[4], Palavras ao vento só ampliou as características hipnóticas, principalmente pelo fato de que filmes assim são cada vez mais raros. A encenação é forte, poderosamente exagerada. A história é perpassada por sordidez, ninfomania, impotência, carência sexual, chantagem, materialismo, alcoolismo, ciúme e assassinato. O roteiro de George Zuckerman, extraído da novela homônima de Robert Wilder, tem antecedentes reais. A texana família Hadley foi moldada a partir dos incidentes que marcaram a trajetória dos poderosos Reynolds — exploradores de tabaco na Carolina do Norte[5]. O herdeiro Zachary Reynolds, na casa dos 20 anos, sustentado pela fortuna da família, leva a vida na flauta, sem interesse pelos negócios. Aparentemente, aquieta-se ao contrair matrimônio com Lybby Holman — comediante da Broadway e cerca de sete anos mais velha. Passado algum tempo, apresenta-se grávida. A partir daí tudo se descontrola. O filho esperado não seria de Zachary, mas de Ab Walker — amigo da família e suposto amante da esposa. O imbróglio evolui para o assassinato do marido. O julgamento dos supostos envolvidos nunca aconteceu. Temerosos com a extensão do escândalo, os Reynolds retiraram as acusações e defenderam a hipótese de suicídio.


Em Palavras ao vento o problema reside nos filhos. A trama é contemporânea da segunda metade da década de 50, época da realização. Os Estados Unidos atravessam o dourado período Eisenhower. A nação respira uma paradoxal mistura de medo, otimismo, moralismo, hipocrisia e cabotinismo. O temor ao comunismo e os efeitos da “caça às bruxas” empesteiam os ambientes. Sinais de afluência estão em toda parte. O boom econômico do pós-guerra gerou novos ricos, logo incorporados ao sistema. Por outro lado, a estabilização permitiu que poderosas famílias mais tradicionais se fechassem no interior de seus próprios núcleos, como os Hadley. O patriarca Jasper (Keith) é pioneiro da velha estirpe. Imbuído pela "ética protestante", perseverou na consolidação da fortuna como o melhor cowboy empreendedor. Edificou um império petrolífero em constante expansão. O tempo despendido nos negócios não deixou brechas para a dedicação à família. Os filhos Kyle (Stack) e Marylee (Malone) disso se ressentem. Passaram a infância na carência dos afetos. Tornaram-se adultos incompletos e disfuncionais. Nunca experimentaram o valor do trabalho e sempre tiveram tudo ao alcance das mãos. São moralmente frágeis, desprovidos de autoestima e pouco respeito guardam pelos demais. Alimentam débeis redes de relações, azeitadas por sexo, poder e dinheiro. O velho Jasper sabe que falhou com a família. Porém, agora é tarde para tentar mudanças de rumo.


Dorothy Malone como Marylee Hadley

Sob as cores berrantes, gestos largos, lágrimas, explosões de histeria, impotência e ninfomania Douglas Sirk também revela um rico mundo de facilidades sustentadas pela exploração de despossuídos: os negros mal emancipados da escravidão, a deslizar silenciosamente, tão discretos e educados, quase invisíveis, pelas dependências dos lares luxuosos; ou os assalariados desprovidos de horizontes, empregados dos empreendimentos capitalistas manipulados ao bel prazer por carentes e pouco sociáveis herdeiros dos extratos dominantes.


Kyle Hadley é literalmente um playboy inútil. Jamais levou adiante qualquer projeto. Inseguro, vive à sombra do pai e do amigo Mitch Wayne — praticamente um irmão de criação e geólogo dos empreendimentos da família. Centrado, pragmático e ciente do lugar que ocupa na estrutura Hadley, Mitch tem ascendência pobre. Progrediu graças aos laços de amizade firmados entre Hoak Wayne (Shannon), o pai fazendeiro, com Jasper. Qual criado solícito, mas incomodado, satisfaz os desejos do amigo milionário. Inclusive, apaga-lhe as pegadas que deixa nos ambientes, em virtude do comportamento desregrado e das relações escusas que alimenta. Kyle afoga as frustrações na bebida ou ao volante do carro esporte amarelo extremado. Apesar das características irresponsáveis, tenta aparentar o oposto, disfarçando-se em roupas sóbrias e formais, de corte tradicional. Quando entediado, pilota o jato da família até Nova York, simplesmente para saborear um famoso sanduíche local. Numa dessas aventuras conhece Lucy Moore, por quem se apaixona.


Lucy Moore (Lauren Bacall) começa a conhecer Kyle Hadley (Robert Stack)

Marylee é uma força da natureza. Descontrolada, é impelida pelos hormônios. Equilibra a carência com baixa autoestima e exibicionismo. Ama Mitch, desde que eram crianças, mas não é correspondida. Dela o personagem de Hudson guarda segura distância, ou trata-a com o afeto e cuidado de um irmão mais velho. Está sempre pronto para limpar as trapalhadas decorrentes das ações desvairadas da garota. A impulsiva Marylee externa o caráter no vermelho explosivo do vestuário ou ao volante do conversível de igual cor — instrumento de desenfreada caça sexual aos jovens desesperançados das cercanias. Perspicaz, logo percebe que o coração contido de Mitch pulsa pela cunhada Lucy. Aproveita a situação para agir vingativamente, em proveito próprio. Alimenta intrigas para tumultuar os relacionamentos, que ultrapassam os limites no aparente assassinato do possesso Kyle, em 6 de novembro de 1956. Nesse dia a história ensaiou o começo ao compasso dos ventos de outono. O alcoolizado e tenso personagem vivido por Robert Stack conduz a toda velocidade o conversível amarelo. As torres de exploração de petróleo enfeitam monotonamente a paisagem, quais portentosos símbolos fálicos a tocar o céu escuro — como se zombassem do personagem de semblante constrangido. Chega à residência. A câmera o acompanha ao entrar. Mas logo retorna ao exterior da mansão, de onde observa, em tensa expectativa, as folhas esvoaçantes ao som da canção-tema Written on the wind, de Victor Young (música) e Sammy Cahn (letra), interpretada por The Four Aces. Ouve-se um tiro. A seguir, Kyle atravessa a porta empunhado um revólver. Cambaleia e tomba morto. É a senha para o flashback que reconstituirá os antecedentes da tragédia, a partir de 24 de outubro de 1955.


Mitch Wayne (Rock Hudson) e Marylee Hadley (Dorothy Malone)

Acompanha-se a vida desregrada de Marylee e a luta do irmão para se aprumar após o casamento que encheu o velho Jasper de esperanças. Os esforços de Kyle por uma vida estável e responsável logo desmoronam no poço da insegurança. Segundo informações médicas preliminares, é estéril. Não poderá se provar socialmente como homem e pai. A impossibilidade de ter filhos foi a alternativa encontrada pelo roteiro — e permitida pelo código de produção — para encobrir a homossexualidade do herdeiro dos Hadley. No filme — como apenas Lucy virá a saber —, o problema é menos grave e provocado por baixa contagem de espermatozóides. Mas o que sobra para Kyle é o humilhante fantasma da falta de masculinidade devido à incapacidade de gerar herdeiro de sangue para os empreendimentos da família. Logo volta à bebida e aos rompantes de violência. Ainda mais quando Lucy comunica a gravidez. Envenenado por Marylee, acredita na traição e possibilidade de Mitch ser o pai da criança. Desespera-se. Agride Lucy e provoca o aborto. O personagem de Hudson corre para defendê-la, furioso. A partir daí os eventos se descontrolam com consequências fatais. Pouco antes, a lascívia de Marylee causou acidentalmente o falecimento do pai. Irada após sofrer uma admoestação, deixa-se dominar por desenfreado êxtase. Trancada no quarto, troca a roupa por folgada camisola vermelho vivo e inicia bailado tão louco como provocante ao som do mambo Temptation[6], em alto volume. Os movimentos sensuais que executa são como a dança da morte. Ao subir as escadas para repreendê-la, o desgostoso Jasper falece de fulminante ataque cardíaco.


É um dos melhores momentos do filme, não simplesmente por causa da montagem e da encenação. Os movimentos do pai e da dança se alternam em sequência rápida, mas poderosa, com duração de aproximados 20 segundos.


Marylee Hadley (Dorothy Malone), prestes a evoluir sob alto volume ao ritmo do mambo  Temptation

Em pouco tempo Marylee experimenta o desespero da solidão. Perdeu pai e irmão. Inteiramente trajada de negro e coberta por chamativo chapéu de abas largas — que mal cabe nos limites da tela panorâmica —, é a sensação no tribunal reunido para apurar as circunstâncias da morte de Kyle, da qual Mitch é o principal suspeito. Mas o testemunho da personagem interpretada por Malone — agora obrigada a se posicionar à frente dos empreendimentos Hadley — revela as entranhas da família e leva à conclusão de que o tiro fatal decorreu de uma trágica e acidental conjunção de fatores. Resolvidas as questões judiciais, Mitch parte com Lucy. Marylee, solitária, está junto à mesa utilizada pelo pai na direção dos negócios. Atrás, o simbólico retrato do velho Jasper segurando a miniatura de uma torre de petróleo antecipa o gesto que a desolada herdeira repetirá no momento final. No auge da irresponsabilidade comportamental — quando o pai ainda vivia —, ela afirmava sobre si mesma, carregando na ênfase: "Eu sou imunda". No epílogo, com o corpo contido, parece prisioneira de uma peça escrita pelo destino, ou pelo fantasma paterno. Está imobilizada nas estranhas da estrutura Hadley, atada às malhas que dão sentido ao nome consolidado pela família. A indomável e descontrolada Messalina que era Marylee foi domesticada da pior forma, como se recebesse um duro castigo que a reposicionará num patamar de respeitabilidade que sempre teve como impossibilidade. Ironicamente, qual fatídica lembrança das desregradas aventuras sexuais que protagonizava, resta em suas mãos a representação fálica, miniaturizada e impotente da torre de petróleo.


Mitch Wayne (Rock Hudson) no tribunal do júri

No epílogo, Marylee (Dorothy Malone) tendo às costas o retrato do pai Jasper Hadley (Robert Keith)

Lauren Bacall e Rock Hudson encabeçam o elenco. Mas os personagens ajustados e de perfis convencionais que defendem são pouco exigidos. O mesmo não se pode dizer de Dorohty Malone e Robert Stack. Estão surpreendentemente bons. Ela, tão sexy, violenta, selvagem, loura e trajada de vermelho fatal é puro movimento. Muito acertadamente, ganhou o Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante. Stack também foi merecidamente indicado à estatueta de ator de apoio. Para seu desconsolo, o vencedor foi Anthony Quinn pelo desempenho de apenas 12 minutos como Paul Gauguin em Sede de viver (Lust for life, 1956), de Vincent Minnelli. Se Malone atinge o ápice quando executa o furioso mambo da morte, Stack vai ao máximo ao convencer o espectador de que está literalmente possuído por um misto de frustração e fúria ao tomar satisfações com Lucy, levando-a a perder o filho.


No plano formal, a composição pictórica possibilitada pelo direção de fotografia de Russell Metty é um dos trunfos da produção. Poucas vezes o esplendor do Technicolor esteve tão umbilicalmente conectado ao sentido da trama. As cores fortes se sucedem, justapõem-se ou se combinam a depender da movimentação ou interação dos personagens, principalmente Kyle e Marylee em seus instantes de pico. Expressam com contundência os significados que lhes foram psicológica e socialmente atribuídos: o amarelo a conotar frouxidão e pusilanimidade; o vermelho com sua sanguínea e furiosa visceralidade.


Os diálogos metafóricos, carregados de duplo sentido, são outra atração. Afinal, por causa do tema desenvolvido, nem tudo podia ser explicitado nos contidos anos 50. Podem passar de uma construção apenas ferina e bem humorada — "Perdão se estou escovando você para fora do meu cabelo", dispara Lucy, para se livrar da intriguenta presença de Marylee — ao absolutamente ferino, ainda mais quando pronunciados por Kyle em julgamentos que faz de si mesmo, ressentido com a frustrante notícia de que não poderia ser pai: "Não posso. Alguém roubou meus sapatos mágicos de dançarino", ao recusar o convite de Lucy para dançar; e "Não sirvo o vermute, apenas finjo", dito para a esposa e Mitch. Ou são palavras que revelam o poder do veneno destilado por Marylee para minar a frágil estabilidade emocional do irmão: "Ele viu o fim de um casamento e o começo de um caso de amor" — dito a Kyle a respeito de Mitch.


O constrangido Kyle Hadley (Robert Stack) com a esposa Lucy Moore (Lauren Bacall)

Palavras ao vento concorreu aos oscars de Melhor Música para Victor Young e Melhor Canção Original: Written on the wind. Dorothy Malone também foi indicada ao Globo de Ouro de Melhor Atriz Coadjuvante de 1957.





Roteiro: George Zuckerman, a partir de novela de Robert Wilder. Música: Frank Skinner. Canções: Written on the wind, de Victor Young (música) e Sammy Cahn (letra), interpretada por The Four Aces; Temptation (não creditada), de Nacio Herb Brown (música) e Arthur Freed (letra). Direção de fotografia (Technicolor): Russell Metty. Montagem: Russell F. Schoengarth. Direção de arte: Robert Clatworthy, Alexander Golitzen. Decoração: Russell A. Gausman, Julia Heron. Figurinos: Bill Thomas (vestidos), Jay A. Morley Jr. (não creditado). Penteados: Joan St. Oegger. Maquiagem: Bud Westmore. Assistentes de direção: William Holland, Wilson Shyer (não creditado). Som: Leslie I. Carey, Robert Pritchard. Consultor de Technicolor: William Fritzsche. Supervisão musical: Joseph Gershenson. Efeitos fotográficos: Clifford Stine. Continuidade: Betty A. Griffin (não creditada). Instrutor de diálogos: Richard Mayer (não creditado). Gerente de unidade: Norman Deming (não creditado). Gravação de som (não creditada): William Lambert, Edward L. Sandlin. Sistema de mixagem de som: Westrex Recording System. Tempo de exibição: 100 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 2004)


[1] Cf. TRUFFAUT, François. Os filmes de minha vida. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. p. 185.
[2] Segundo critérios do autor — José Eugenio Guimarães —, evidentemente.
[3] Douglas Sirk citado por TULARD, Jean. Dicionário de cinema: os diretores. Porto Alegre: L&PM, 1996. p. 592.
[4] Considerando-se o ano de 2004, quando esta apreciação foi escrita.
[5] Os Reynolds exploram a firma R. J. Reynolds Tobacco Company, responsável pela fabricação de cigarros das famosas marcas Winston, Salem e, principalmene, Camel, muito popular nos filmes bélicos sobre a Segunda Guerra Mundial.
[6] Música de Nacio Herb Brown e letra de Arthur Freed.