domingo, 24 de julho de 2016

A TRADIÇÃO E A RESISTÊNCIA NO APAGAR DAS LUZES DE HENRY HATHAWAY

O discreto e eficaz diretor Henry Hathaway faleceu em 1985, aos 86 anos. Ao longo da carreira, de 1930 a 1974, assinou 67 títulos — uma das mais diversificadas filmografias do cinema estadunidense. Enquanto pôde, continuou filmando. Estava em franca atividade na primeira metade dos anos 70, quando muitos colegas de geração já haviam falecido ou reivindicado a aposentadoria. A última realização, de 1974, é o obscuro Hangup, que sequer mereceu lançamento comercial no Brasil. Mas assinou, três anos antes, um eficaz e pouco visto western de atmosfera crepuscular: O parceiro do diabo (Shoot out). Gregory Peck faz Clay Lomax, frustrado assaltante de bancos posto em liberdade após sete anos de prisão. Agora, é um anjo vingador. As histórias ambientadas no velho Oeste sempre marcaram presença na trajetória de Hathaway. Nos últimos anos da carreira, a partir de 1965, filmou, além do título em apreço, Os filhos de Katie Elder (The sons of Katie Elder, 1965), Nevada Smith (Nevada Smith, 1966), Pôquer de sangue (Five card stud, 1968) e Bravura indômita (True grit, 1969). As sensações da velhice e do encerramento de um tempo, com a consequente busca da estabilidade, marcam acentuada presença em O parceiro do diabo. Porém, o título também revela o vigor de um cineasta que não entrega os pontos. Mantém-se, até os limites do fim, fiel à tradição na qual foi formado. Está, de certo modo, espelhado na estampa de Clay Lomax, o vingador cansado, de pouca convicção, prestes a começar uma trajetória mais estável desde que uma pequena órfã foi providencialmente deixada em seu caminho. A apreciação a seguir é de 1993. 







O parceiro do diabo
Shoot out

Direção:
Henry Hathaway
Produção:
Hal B. Wallis
Universal Pictures
EUA — 1971
Elenco:
Gregory Peck, Patricia “Pat” Quinn, Jeff Corey, Robert F. Lyons, Susan Tyrrell, James Gregory, Rita Gam, Pepe Serna, Dawn Lyn, John Davis Chandler, Paul Fix, Arthur Hunnicutt, Nicholas Beauvy e os não creditados Willis Bouchey, Lane Bradford, Shaun Bryant, Elizabeth Harrower, Karen Klett, Arthur Space.



O diretor Henry Hathaway



A frondosa árvore do western clássico já estava em avançado estágio de envelhecimento. Consequentemente, produzia pouquíssimos frutos. No entanto, o longevo diretor da velha tradição do cinema estadunidense, Henry Hathaway, continuava a fecundá-la. De 1965 a 1971 — ano de O parceiro do diabo , com exceção de O último safári (The last safari, 1967) e Os comandos atacam Rommell (Raid on Rommel, 1971), assinou basicamente westerns, quase um por ano: Os filhos de Katie Elder (The sons of Katie Elder, 1965), Nevada Smith (Nevada Smith, 1966), Pôquer de sangue (Five card stud, 1968) e Bravura indômita (True grit, 1969). Este proporcionou a John Wayne o tão demorado e merecido Oscar.


José Carlos Monteiro ressaltou na crítica endereçada a O parceiro do diabo: o filme permitia que Hathaway continuasse a exercitar um "Tema que lhe tem sido caro nos últimos tempos: a velhice. (...) Os heróis são homens idosos que valorizam acima de tudo a moral e a coragem"[1]. Isto é particularmente sentido em O último safári — no qual Stewart Granger faz Miles Gilchrist, um caçador aposentado — e em Bravura indômita — com John Wayne no papel do decadente e boquirroto delegado federal Rooster Cogburn. Apesar da idade, não jogam a toalha. Continuam a encarar a vida como sucessão de desafios a vencer. Infelizmente, o cronista não se aprofundou nessa particularidade. Preferiu acrescentar: "É parte de um estilo, que, com o passar dos tempos, vai se consolidando e amadurecendo"[2]. Ora, muito mais que isso: o tema do herói que não se entrega ao peso da idade representa, em parte, a confirmação de um valor moral na visão de mundo do cineasta. Hathaway se formou numa geração que cultuava a tradição, na qual heroísmo, coragem, solidariedade, princípios éticos e abnegação falavam mais alto. De outro modo, isso explica sua adesão ao western que continuou a cultivar no inverno de sua carreira. Nenhum outro gênero valorizou tanto aquelas determinações fundamentais. Mantendo-se nesse campo, o septuagenário diretor[3] — tal qual seus heróis idosos e inquebrantáveis —, marcava posição e não admitia rendição aos novos tempos impregnados de cinismo e desilusões. Fazia questão de frisar: estava vivo e bem, com coragem e disposição para se posicionar como outsider na contracorrente determinada por Hollywood e pelo front europeu — com seus mocinhos de fancaria, fanfarrões e amorais do western spagheti.


Gregory Peck interpreta o ex-presidiário Clay Lomax


Esse Henry Hathaway da resistência está presente por completo na composição de Gregory Peck para Clay Lomax. O personagem é um ex-presidiário que cumpriu sete anos de reclusão depois de traído num assalto a banco pelo parceiro Sam Foley (Gregory)[4] — agora respeitável e rico cidadão de Gun Hill. Pretende se vingar. De imediato, enfrenta os pistoleiros contratados para vigiá-lo, liderados pelo demente Bobby (Lyons). Estes, ao contrário de Lomax, não se orientam por qualquer código de princípios. O eixo central de O parceiro do diabo reside na oposição da sólida formação "tradicional" de Lomax com o "mundo novo" e vazio dos bandidos; entre a ação com sentido de um e a falta de normas dos outros; a vontade de estabilidade e criação de raízes do vingador e o caráter errante das armas de aluguel. São dois tempos e estilos; duas linguagens em luta por afirmação.


Em primeiro plano o demente Bobby, interpretado por Robert F. Lions

Clay Lomax (Gregory Peck)


No caminho para Gun Hill, Lomax é melhor delineado. Meio a contragosto, recolhe e ampara a menina Decky (Lyn) — órfã que lhe foi confiada após a morte da mãe. Ambos são solitários em busca de afeição e complementação. Durante a jornada, hospedam-se no rancho da viúva Juliana (Quinn), acompanhada de Dutch (Beauvy), o filho menor. É outra complementação a caminho: a formação de uma família, equacionada pela adição de Lomax e Decky a Juliana e Dutch. Nessa soma há a promessa de estabilidade — a terra e o lar — para o ex-presidiário, algo que é bem acentuado quando o lugar é profanado ao ser invadido por Bobby e seu bando. Os facínoras trazem uma prisioneira: a prostituta Alma (Tyrrel) — testemunha de assassinato que cometeram. Ela falece em troca de tiros decorrente do acirramento das tensões. Após o conflito, Bobby escapa levando Decky como refém. Parte ao encontro do patrão. Na perseguição, Lomax a reencontra na estrada. Após deixá-la a salvo, segue para Gun Hill, onde elimina o pistoleiro. Este, desesperado, já havia abatido Foley para lhe tomar o dinheiro. O personagem de Peck retorna ao rancho de Juliana. Decky o aguardava, sentada à cerca — como uma filha à espera do pai após um dia de trabalho cumprido.


À esquerda, Clay Lomax (Gregory Peck) com a pequena Decky (Dawn Lyn)

Emma (Rita Gam) e Clay Lomax (Gregory Peck)

Clay Lomax (Gregory Peck), Alma (Susan Tyrrell) e Bobby (Robert F. Lyons)


O parceiro do diabo tem roteiro de Marguerite Roberts, a mesma de Bravura indômita. Apesar de lhe ser ligeiramente inferior, possui narrativa dinâmica, bastante fluida, bem humorada, pontuada de diálogos curtos e estritamente necessários, elementos essenciais ao western e ao cinema de Hathaway.


Decky (Dawn Lyn)

  
De certa forma, é um filme cruel, ao menos pela forma como o mal — representado pelo psicopata Bobby (excelente desempenho de Robert F. Lyons) — é mostrado. Nesse mesmo diapasão também há Juliana Farrell, a mãe viciada em álcool e com um filho para cuidar. Tanto o pistoleiro como a mulher se apresentam a Lomax como seres antissociais. Porém, mais que isso: ambos servem à complementação e à reflexão do protagonista. Bobby, o pistoleiro violento e infantilizado, está irremediavelmente perdido devido às brutais e desmedidas ações tomadas, decorrentes de uma personalidade doente e desviante. Juliana, por sua vez, será regenerada pela providencial intervenção do anjo vingador. Este, de certo modo, foi aos poucos reabilitado de toda e qualquer transgressão pela ação do imponderável que deixou a pequena Decky em seu caminho.


Decky (Dawn Lyn) e Clay Lomax (Gregory Peck)

  
A composição de Gregory Peck é adequada. O ator sempre ofereceu boa estampa para vingadores, a exemplo do Jim Douglas de Estigma da crueldade (The bravados, 1958), de Henry King. Clay Lomax é basicamente uma extensão desse personagem.






Roteiro: Marguerite Roberts, com base na novela The lone cowboy, de Will James. Direção de fotografia (Technicolor/Panavision 70mm): Earl Rath. Direção de arte: Alexander Golitzen, Walter H. Tyler. Decoração: John McCarthy Jr. Montagem: Archie Marshek. Música: David Grusin. Produtor associado: Paul Nathan. Sistema de mixagem de som: Westrex Recording System. Penteados: Larry Germain. Maquiagem: Frank Prehoda, Bud Westmore. Gerente de unidade de produção: Frank Beetson. Assistentes de direção: Milton Feldman, Kenny Williams. Som: James R. Alexander, Ronald Pierce, Waldon O. Watson. Gravação de som: Bill Stuart (não creditado). Dublês (não creditados): Gary Combs, Richard Farnsworth, Jerry Gatlin, Leroy Johnson, Ben Miller, Carl Pitti, Chuck Roberson, Dave Rodgers, Neil Summers, Henry Wills. Técnico de iluminação: Calvin Maehl (não creditado). Eletricista-chefe: Ross A. Maehl (não creditado). Operador de câmera: Bill Mendenhall (não creditado). Assistentes de câmera (não creditados): Dominic Palmieri, Jack Tandberg. Cosméticos: Cinematique. Créditos e efeitos óticos: Universal Title. Tempo de exibição: 95 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1993)



[1] MONTEIRO, José Carlos. O parceiro do diabo. Guia de Filmes. Rio de Janeiro: INC, n. 36, nov.-dez./1971. p. 245.
[2] Ibidem.
[3] Henry Hathaway estava com 74 anos quando dirigiu O parceiro do diabo.
[4] Há, neste ponto, alguma semelhança com a história contada por Marlon Brando em A face oculta (One-eyed jacks, 1961).