domingo, 30 de julho de 2017

OS HORMÔNIOS DO DESEJO EXPLODEM NA TENSÃO DA BUSCA ÀS LENDÁRIAS MINAS DE SALOMÃO

Esqueçam todas as demais adaptações cinematográficas do clássico romance juvenil da época de ouro do moderno colonialismo europeu, As minas do Rei Salomão (King Solomon’s mines), de Henry Rider Haggard. Os filmes de Horace Lisle Lucoque — King Solomon’s mines (1919) —, Robert Stevenson — As minas de Salomão (King Solomon’s mines, 1937) —, Alvin Rakoff — King Solomon’s treasure (1979) — e J. Lee Thompson — As minas do Rei Salomão (King Solomon’s mines, 1985) — são desvitalizados se comparados ao empreendimento de 1950, por conta dos diretores Compton Bennett e Andrew Marton. Traz no elenco o inglês Stewart Granger no papel do aventureiro e guia de safáris Allan Quatermain e a escocesa Deborah Kerr como personagem inexistente no texto original: Elizabeth Curtis, determinada e carente esposa do explorador Henry Curtis — desaparecido no norte da África quando tentava encontrar as míticas minas do título. Atualmente, filmes assim foram praticamente retirados da agenda hollywoodiana, principalmente por força da correção política. O herói é um europeu generoso e paternalista, supostamente superior às gentes e aos costumes africanos. Apesar dos senões reafirmados pela passagem dos anos, é uma aventura de primeira grandeza. Resistiu inclusive à traumática substituição de diretores quando as filmagens se encontravam razoavelmente avançadas. A fotografia, por conta do expert Robert Surtees, é um deleite. O principal atrativo são as alusões implícitas ao sexo, decorrentes acima de tudo das carências da voluntariosa Elizabeth Curtis — há muito afastada do marido e tão próxima do decidido Allan Quatermain. Subjugada pelo desejo, a personagem praticamente se derrete sob o calor e a umidade da África. O elenco é composto por imponentes integrantes das tribos Watusi e Kipsigi. A apreciação a seguir é de 1996.






As minas do Rei Salomão
King Solomon’s mines

Direção:
Compton Bennett, Andrew Marton
Produção:
Sam Zimbalist
Metro-Goldwyn-Mayer
EUA — 1950
Elenco:
Stewart Granger, Deborah Kerr, Richard Carlson, Hugo Haas, Lowell Gilmore, Kimursi (da tribo Kipsigi), Siriaque (da tribo Watusi), Sekaryongo (da tribo Watusi), Baziga (da tribo Watusi) e os não creditados Munto Anampio, John Banner, Benempinga, Gutare, Ivargwema, Henry Rowland.



Os diretores Compton Bennett e Andrew Marton



O inglês Compton Bennett se lançou no cinema como montador, em 1940. Entre os filmes que dirigiu está O sétimo véu (The seventh veil, 1945), obra mestra para muitos.


O húngaro Andrew Marton estreou na realização cinematográfica em 1929, nos Estados Unidos, com o pouco conhecido Às duas horas da madrugada (Two o'clock in the morning). A seguir, na Alemanha, rodou Die nacht ohne pause em parceria com Franz Wenzler. Também assinou produções na Áustria, Hungria e Suíça. Em decorrência do avanço nazista, abandonou a Europa Central e se estabeleceu na Inglaterra. Em 1940 atendeu ao convite do também expatriado Ernst Lubitsch e voltou para os Estados Unidos — onde se fixou —, dedicando-se inicialmente à montagem. Retornou à direção no mesmo ano com Um pedacinho do céu (A little bit of heaven). Seguiram-se Uma estranha amizade (Gentle Annie, 1944) e Presente do destino (Gallant Bess, 1946). Porém, é na direção de segunda unidade que adquiriu notoriedade, principalmente em superproduções como Adeus às armas (A farewell to arms, 1957), de Charles Vidor; Ben-Hur (Ben-Hur, 1959), de William Wyler; O mais longo dos dias (The longest day, 1963) — do qual também é diretor junto com Ken Annakin, Elmo Williams, Bernard Wicki e Gerd Oswald —; 55 dias em Pequim (55 days at Peking, 1963), de Nicholas Ray; A queda do Império Romano (The fall of the Roman Empire, 1963), de Anthony Mann; e Ardil 22 (Catch 22, 1970), de Mike Nichols[1]. Durante muitos anos mereceu louvores pela sequência mais espetacular de Ben-Hur: a corrida de quadrigas. Hoje, sabe-se, foi idealizada, planejada e executada por Yakima Cannut — expert em lutas, movimentos e instrução de vários cowboys da tela, dentre os quais John Wayne. Em 1967 assinou Jim, um cowboy na África (África: Texas style), retorno à temática e ao cenário de As minas do Rei Salomão em época contemporânea.


Ambos os diretores não formam propriamente uma parceria em As minas do Rei Salomão. Na verdade, Compton Bennett foi demitido por pressão de Stewart Granger com as filmagens já em estágio avançado. Ambos se desentenderam, o que terminou inviabilizando a continuidade dos trabalhos. Convocado como substituto, Andrew Marton devolveu o empreendimento aos trilhos. Apesar desse grave acidente de percurso, a realização não peca pela falta de unidade. É uma das melhores aventuras cinematográficas ambientadas na África. Produções como essa Hollywood não faz mais, principalmente em virtude da pressão proveniente da correção política. A fórmula foi perdida, excetuando-se, evidentemente, Steven Spielberg com a trilogia dedicada a Indiana Jones: Os caçadores da arca perdida (Raiders of the lost ark, 1981); Indiana Jones e o Templo da Perdição (Indiana Jones and the Temple of Doom, 1984); e Indiana Jones e a última cruzada (Indiana Jones and the last crusade, 1989).


O irregular J. Lee Thompson, em 1985, levou às telas uma esquecível refilmagem de As minas do Rei Salomão, protagonizada por Richard Chamberlain no papel do guia de safáris e aventureiro Allan Quatermain e a então desconhecida Sharon Stone como Jesse Huston. Se houvesse a necessidade de optar entre os canastrões que melhor estampa cinematográfica ofereceram ao personagem criado pelo escritor vitoriano Henry Rider Haggard no livro King Solomon’s mines, de 1885, Chamberlain perderia feio para Stewart Granger[2]. Por sua vez, Sharon Stone não faria sombra à classuda e excelente Deborah Kerr.


O canastrão Stewart Granger faz o melhor Allan Quatermain do cinema

Deborah Kerr como Elizabeth Curtis e Stewart Granger no papel de Allan Quatermain

John Goode (Richard Carlson), Elizabeth Curtis (Deborah Kerr) e Allan Quatermain (Stewart Granger)


Quando veio ao mundo, na Inglaterra, o melhor intérprete de Allan Quatermain recebeu o nome de James Stewart. Porém, ao entrar para o cinema percebeu a existência de ator mais famoso e muito melhor com igual denominação. Assim nasceu Stewart Granger, hoje reconhecido, com toda a justiça, como um dos melhores “não atores” do cinema. Protagonizou ótimas e inconsequentes aventuras de capa e espada que fizeram a alegria da garotada no tempo das matinês: Sarabanda (Saraband for dead lovers, 1948), de Basil Dearden; O belo Brummell (Beau Brummell, 1954), de Curtis Bernhardt; Scaramouch (Scaramouch, 1952), de George Sidney; O prisioneiro de Zenda (The prisioner of Zenda, 1952), de Richard Thorpe; e O tesouro de Barba Rubra (Moonfleet, 1954), de Fritz Lang. Como cowboy estrelou o memorável western A última caçada (The last hunt, 1955), de Richard Brooks. Sofreu o dissabor de interpretar Claudius em Salomé (Salome, 1953), de William Dieterle — uma das mais ridículas produções de todos os tempos.


A tensão entre Elizabeth Curtis (Deborah Kerr) e Allan Quatermain (Stewart Granger) diante do testemunho de John Goode (Richard Carlson)

  
Stewart Granger vinha se consolidando no cinema inglês desde 1933, quando teve participação não creditada no elenco do filme de estreia: The song you gave me, de Paul L. Stein. Atuou em outras 23 realizações até estrear em Hollywood com As minas do Rei Salomão. É aventura desenrolada nas paragens africanas em 1897. Teve tomadas em locações na Tanganica, Uganda, Quênia e Congo Belga. Narra a busca pelo explorador inglês Henry Curtis, dado como desaparecido em área pouco conhecida — pelos europeus — do continente desde que se propôs a encontrar as lendárias minas do título. A esposa Elizabeth Curtis (Kerr) — acompanhada do irmão John Goode (Carlson) — oferece a Allan Quatermain cinco mil libras esterlinas para organizar operação de busca e salvamento pelo norte do continente. O original de Henry Rider Haggard privilegia somente a missão repleta de perigos e muitos imprevistos. O filme de Bennett e Marton, extraído do roteiro de Helen Deutsch, é recheado de conotações implícitas ao sexo graças à inserção de Elizabeth Curtis, estranha ao texto original. No calor e umidade da África, a voluntariosa mulher, há muito afastada do marido, exala carência e arde de desejo por Quatermain, de quem, a princípio, não alimentava a menor simpatia. Diálogos ambíguos, gestos, olhares enviesados e desviados traduzem de forma brilhantemente cômica, principalmente para o espectador de hoje, os sinais da mal disfarçada atração libidinosa extravasada pela personagem. O explorador logo compreende a mensagem e imediatamente corresponde, tornando o jogo mais complicado e constrangedor para a cliente. Afinal, internado naquelas lonjuras, o desinibido Quatermain também extravasa carências. Sua história, como o de muitos aventureiros da ficção, é desconhecida, assim como os motivos que o levaram a se internar no coração da África. Provavelmente, por desilusão amorosa ou para expiar alguma falta grave há muito cometida. Sabe-se apenas que tem um filho na Inglaterra, a quem periodicamente envia auxílio financeiro.



Acima e abaixo: John Goode (Richard Carlson), Elizabeth Curtis (Deborah Kerr) e Allan Quatermain (Stewart Granger)


As minas do Rei Salomão é aventura em tudo empolgante. Se o espectador desligar o senso crítico, fica ainda melhor. Como quase todas as miradas ocidentais sobre a África, ressalta a etnocêntrica superioridade do europeu concebido como protetor de um continente povoado de gente acossada por superstições e incessantes dissidências tribais. Quatermain é praticamente uma espécie de “grande pai branco”, generoso e cheio de si. Está ligado ao mesmo percurso trilhado por Tarzan, Jim das Selvas, Trader Horn e outras criações de autores ocidentais do período colonialista moderno. Uma fala do personagem traduz bem esse espírito. Quando a expedição é atacada por um feroz rinoceronte que provoca a fuga dos carregadores negros, Quatermain grita: “Eu não pedi que corressem; se o homem branco pode ficar parado vocês também podem!” Membros da realeza nativa atuam em As minas do Rei Salomão: Siriaque, chefe do clã Mashona da tribo Watusi, no papel de Umbopa príncipe destronado que se junta à expedição e, ao final, lutará por seus direitos; Kimursi, da tribo Kipsigi; além de Sekaryongo e Baziga, também integrantes dos Watusi.


Allan Quatermain (Stewart Granger), Elizabeth Curtis (Deborah Kerr), John Goode (Richard Carlson) e Umbopa (Siriaqui, chefe Watusi)

Umbopa (Siriaqui, chefe Watusi), à esquerda


O acabamento técnico-artístico da produção é de primeira. As cores, as paisagens africanas e a encenação do perigo se revelam com notável nitidez na fotografia de Robert Surtees, premiada com o Oscar. É digna de nota a arrojada e realista sequência do estouro dos animais em fuga pela savana em chamas, um assombro para a época. Também merece destaque a direção de arte, feliz em captar motivos da cultura africana: os trajes e, principalmente, as danças tribais executadas pelos gigantescos guerreiros Watusi.


As minas do Rei Salomão concorreu ao Oscar de Melhor Filme de 1950. Porém, a arrojada aventura de Compton Bennett e Andrew Marton não era páreo para o grande vencedor: A malvada (All about Eve), de Joseph L. Mankiewicz. Competia ainda com outros pesos-pesados: Nascida ontem (Born yesterday), de George Cukor e, principalmente, a cáustica radiografia de Billy Wilder sobre Hollywood: Crepúsculo dos deuses (Sunset Boulevard).


Em 1959, Kurt Newmann dirigiu Watusi — o gigante africano (Watusi), espécie de refilmagem em tom infinitamente menor de As minas do Rei Salomão, estrelada por George Montgomery como Harry Quatermain e a finlandesa Taina Elg no papel de Erica Neuler. É produção que lançou mão, sem a menor cerimônia, de várias cenas do filme de Compton Bennett e Andrew Marton.






Roteiro: Helen Deustch, com base na novela homônima de H. Ruder Haggard. Direção de fotografia (Technicolor): Robert Surtees. Consultores de Technicolor: Henri Jaffa, James Gooch. Direção de arte: Cedric Gibbons, Paul Groesse. Montagem: Ralph E. Winters, Conrad A. Nervig. Supervisão de gravação: Douglas Shearer. Decoração: Edwin B. Willis, associado a Keoch Gleason. Costumes: Walter Plunkett. Música: Mischa Spoliansky (não creditado). Segundo assistente de direção: Carl 'Major' Roup (não creditado). Construção do set: Donald P. Desmond (não creditado). Supervisão de gravação: Douglas Shearer. Dublês (não creditados): Michaela Denis (p/Deborah Kerr, Shep Houghton (p/Richard Carlson). Operadores de câmeras (não creditado): Frank V. Phillips, John Schmitz. Assistente de câmera pela Technicolor: Cliff Shirpser (não creditado). Consultor técnico: Bunny Allen (não creditado). Continuidade nas locações africanas: Eva Monley (não creditado). Agradecimentos da Metro-Goldwyn-Mayer aos: Funcionários governamentais da Colônia do Congo Belga, Funcionários governamentais da Colônia e Protetorado do Quênia; Funcionários governamentais de Tanganica; Funcionários governamentais do Protetorado da Uganda. Sistema de mixagem de som: Western Electric Sound System. Tempo de exibição: 103 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1996)



[1] EWALD FILHO, Rubens. Dicionário de cineastas. São Paulo: Global, 1977. p. 277.
[2] Dentre outras versões da obra de Henry Ryder Haggard, Allan Quatermain foi interpretado por Albert Lawrence em King Solomon’s mines (1919), de Horace Lisle Lucoque; Cedric Harwicke em As minas de Salomão (King Solomon’s mines, 1937), de Robert Stevenson; e David McCallun no obscuro King Solomon’s treasure (1979), de Alvin Rakoff.