Esqueçam todas as demais adaptações cinematográficas do
clássico romance juvenil da época de ouro do moderno colonialismo europeu, As
minas do Rei Salomão (King Solomon’s mines), de Henry
Rider Haggard. Os filmes de Horace Lisle Lucoque — King Solomon’s mines
(1919) —, Robert Stevenson — As minas de Salomão (King
Solomon’s mines, 1937) —, Alvin Rakoff — King Solomon’s treasure
(1979) — e J. Lee Thompson — As minas do Rei Salomão (King
Solomon’s mines, 1985) — são desvitalizados se comparados ao
empreendimento de 1950, por conta dos diretores Compton Bennett e Andrew Marton.
Traz no elenco o inglês Stewart Granger no papel do aventureiro e guia de
safáris Allan Quatermain e a escocesa Deborah Kerr como personagem inexistente
no texto original: Elizabeth Curtis, determinada e carente esposa do explorador
Henry Curtis — desaparecido no norte da África quando tentava encontrar as
míticas minas do título. Atualmente, filmes assim foram praticamente retirados
da agenda hollywoodiana, principalmente por força da correção política. O herói
é um europeu generoso e paternalista, supostamente superior às gentes e aos
costumes africanos. Apesar dos senões reafirmados pela passagem dos anos, é uma
aventura de primeira grandeza. Resistiu inclusive à traumática substituição de
diretores quando as filmagens se encontravam razoavelmente avançadas. A
fotografia, por conta do expert
Robert Surtees, é um deleite. O principal atrativo são as alusões implícitas ao
sexo, decorrentes acima de tudo das carências da voluntariosa Elizabeth Curtis
— há muito afastada do marido e tão próxima do decidido Allan Quatermain. Subjugada
pelo desejo, a personagem praticamente se derrete sob o calor e a umidade da
África. O elenco é composto por imponentes integrantes das tribos Watusi e
Kipsigi. A apreciação a seguir é de 1996.
As minas do Rei
Salomão
King
Solomon’s mines
Direção:
Produção:
Sam Zimbalist
Metro-Goldwyn-Mayer
EUA — 1950
Elenco:
Stewart Granger, Deborah Kerr,
Richard Carlson, Hugo Haas, Lowell Gilmore, Kimursi (da tribo Kipsigi),
Siriaque (da tribo Watusi), Sekaryongo (da tribo Watusi), Baziga (da tribo
Watusi) e os não creditados Munto Anampio, John Banner, Benempinga, Gutare,
Ivargwema, Henry Rowland.
Os diretores Compton Bennett e Andrew Marton |
O inglês Compton
Bennett se lançou no cinema como montador, em 1940. Entre os filmes que dirigiu
está O
sétimo véu (The seventh veil, 1945), obra mestra para muitos.
O húngaro Andrew
Marton estreou na realização cinematográfica em 1929, nos Estados Unidos, com o
pouco conhecido Às duas horas da madrugada (Two o'clock in the morning).
A seguir, na Alemanha, rodou Die nacht ohne pause em parceria com
Franz Wenzler. Também assinou produções na Áustria, Hungria e Suíça. Em
decorrência do avanço nazista, abandonou a Europa Central e se estabeleceu na
Inglaterra. Em 1940 atendeu ao convite do também expatriado Ernst Lubitsch e voltou para os Estados Unidos — onde se fixou —, dedicando-se inicialmente à montagem. Retornou
à direção no mesmo ano com Um pedacinho do céu (A
little bit of heaven). Seguiram-se Uma estranha amizade (Gentle
Annie, 1944) e Presente do destino (Gallant
Bess, 1946). Porém, é na direção de segunda unidade que adquiriu
notoriedade, principalmente em superproduções como Adeus às armas (A
farewell to arms, 1957), de Charles Vidor; Ben-Hur (Ben-Hur,
1959), de William Wyler; O mais longo dos dias (The
longest day, 1963) — do qual também é diretor junto com Ken Annakin,
Elmo Williams, Bernard Wicki e Gerd Oswald —; 55 dias em Pequim (55
days at Peking, 1963), de Nicholas Ray; A queda do Império Romano
(The
fall of the Roman Empire, 1963), de Anthony Mann; e Ardil
22 (Catch 22, 1970), de Mike Nichols[1].
Durante muitos anos mereceu louvores pela sequência mais espetacular de Ben-Hur:
a corrida de quadrigas. Hoje, sabe-se, foi idealizada, planejada e executada
por Yakima Cannut — expert em lutas, movimentos
e instrução de vários cowboys da tela, dentre os quais John Wayne. Em 1967 assinou
Jim,
um cowboy na África (África: Texas style), retorno à
temática e ao cenário de As minas do Rei Salomão em época contemporânea.
Ambos os
diretores não formam propriamente uma parceria em As minas do Rei Salomão.
Na verdade, Compton Bennett foi demitido por pressão de Stewart Granger com as
filmagens já em estágio avançado. Ambos se desentenderam, o que terminou inviabilizando
a continuidade dos trabalhos. Convocado como substituto, Andrew Marton devolveu
o empreendimento aos trilhos. Apesar desse grave acidente de percurso, a
realização não peca pela falta de unidade. É uma das melhores aventuras
cinematográficas ambientadas na África. Produções como essa Hollywood não faz
mais, principalmente em virtude da pressão proveniente da correção política. A
fórmula foi perdida, excetuando-se, evidentemente, Steven Spielberg com a
trilogia dedicada a Indiana Jones: Os caçadores da arca perdida (Raiders
of the lost ark, 1981); Indiana Jones e o Templo da Perdição (Indiana
Jones and the Temple of Doom, 1984); e Indiana Jones e a última cruzada
(Indiana
Jones and the last crusade, 1989).
O irregular J.
Lee Thompson, em 1985, levou às telas uma esquecível refilmagem de As
minas do Rei Salomão, protagonizada por Richard Chamberlain no papel do
guia de safáris e aventureiro Allan Quatermain e a então desconhecida Sharon
Stone como Jesse Huston. Se houvesse a necessidade de optar entre os canastrões
que melhor estampa cinematográfica ofereceram ao personagem criado pelo
escritor vitoriano Henry Rider Haggard no livro King Solomon’s mines, de
1885, Chamberlain perderia feio para Stewart Granger[2].
Por sua vez, Sharon Stone não faria sombra à classuda e excelente Deborah Kerr.
O canastrão Stewart Granger faz o melhor Allan Quatermain do cinema |
Deborah Kerr como Elizabeth Curtis e Stewart Granger no papel de Allan Quatermain |
John Goode (Richard Carlson), Elizabeth Curtis (Deborah Kerr) e Allan Quatermain (Stewart Granger) |
Quando veio ao
mundo, na Inglaterra, o melhor intérprete de Allan Quatermain recebeu o nome de
James Stewart. Porém, ao entrar para o cinema percebeu a existência de ator
mais famoso e muito melhor com igual denominação. Assim nasceu Stewart Granger,
hoje reconhecido, com toda a justiça, como um dos melhores “não atores” do
cinema. Protagonizou ótimas e inconsequentes aventuras de capa e espada que
fizeram a alegria da garotada no tempo das matinês: Sarabanda (Saraband
for dead lovers, 1948), de Basil Dearden; O belo Brummell (Beau
Brummell, 1954), de Curtis Bernhardt; Scaramouch (Scaramouch,
1952), de George Sidney; O prisioneiro de Zenda (The
prisioner of Zenda, 1952), de Richard Thorpe; e O tesouro de Barba Rubra
(Moonfleet,
1954), de Fritz Lang. Como cowboy estrelou o memorável western A
última caçada (The last hunt, 1955), de Richard
Brooks. Sofreu o dissabor de interpretar Claudius em Salomé (Salome,
1953), de William Dieterle — uma das mais ridículas produções de todos os
tempos.
A tensão entre Elizabeth Curtis (Deborah Kerr) e Allan Quatermain (Stewart Granger) diante do testemunho de John Goode (Richard Carlson) |
Stewart Granger vinha
se consolidando no cinema inglês desde 1933, quando teve participação não
creditada no elenco do filme de estreia: The song you gave me, de Paul L.
Stein. Atuou em outras 23 realizações até estrear em Hollywood com As
minas do Rei Salomão. É aventura desenrolada nas paragens africanas em 1897.
Teve tomadas em locações na Tanganica, Uganda, Quênia e Congo Belga. Narra a
busca pelo explorador inglês Henry Curtis, dado como desaparecido em área pouco
conhecida — pelos europeus — do continente desde que se propôs a encontrar as lendárias
minas do título. A esposa Elizabeth Curtis (Kerr) — acompanhada do irmão John
Goode (Carlson) — oferece a Allan Quatermain cinco mil libras esterlinas para
organizar operação de busca e salvamento pelo norte do continente. O original
de Henry Rider Haggard privilegia somente a missão repleta de perigos e muitos
imprevistos. O filme de Bennett e Marton, extraído do roteiro de Helen Deutsch,
é recheado de conotações implícitas ao sexo graças à inserção de Elizabeth
Curtis, estranha ao texto original. No calor e umidade da África, a voluntariosa
mulher, há muito afastada do marido, exala carência e arde de desejo por
Quatermain, de quem, a princípio, não alimentava a menor simpatia. Diálogos
ambíguos, gestos, olhares enviesados e desviados traduzem de forma brilhantemente
cômica, principalmente para o espectador de hoje, os sinais da mal disfarçada
atração libidinosa extravasada pela personagem. O explorador logo compreende a
mensagem e imediatamente corresponde, tornando o jogo mais complicado e
constrangedor para a cliente. Afinal, internado naquelas lonjuras, o desinibido
Quatermain também extravasa carências. Sua história, como o de muitos aventureiros
da ficção, é desconhecida, assim como os motivos que o levaram a se internar no
coração da África. Provavelmente, por desilusão amorosa ou para expiar alguma
falta grave há muito cometida. Sabe-se apenas que tem um filho na Inglaterra, a
quem periodicamente envia auxílio financeiro.
Acima e abaixo: John Goode (Richard Carlson), Elizabeth Curtis (Deborah Kerr) e Allan Quatermain (Stewart Granger) |
As minas do Rei
Salomão é aventura em tudo empolgante. Se o espectador desligar o
senso crítico, fica ainda melhor. Como quase todas as miradas ocidentais sobre
a África, ressalta a etnocêntrica superioridade do europeu concebido como
protetor de um continente povoado de gente acossada por superstições e incessantes
dissidências tribais. Quatermain é praticamente uma espécie de “grande pai
branco”, generoso e cheio de si. Está ligado ao mesmo percurso trilhado por
Tarzan, Jim das Selvas, Trader Horn e outras criações de autores ocidentais do
período colonialista moderno. Uma fala do personagem traduz bem esse espírito.
Quando a expedição é atacada por um feroz rinoceronte que provoca a fuga dos carregadores
negros, Quatermain grita: “Eu não pedi que corressem; se o homem branco pode
ficar parado vocês também podem!” Membros da realeza nativa atuam em As
minas do Rei Salomão: Siriaque, chefe do clã Mashona da tribo Watusi,
no papel de Umbopa príncipe destronado que se junta à expedição e, ao final,
lutará por seus direitos; Kimursi, da tribo Kipsigi; além de Sekaryongo e
Baziga, também integrantes dos Watusi.
Allan Quatermain (Stewart Granger), Elizabeth Curtis (Deborah Kerr), John Goode (Richard Carlson) e Umbopa (Siriaqui, chefe Watusi) |
Umbopa (Siriaqui, chefe Watusi), à esquerda |
O acabamento
técnico-artístico da produção é de primeira. As cores, as paisagens africanas e
a encenação do perigo se revelam com notável nitidez na fotografia de Robert
Surtees, premiada com o Oscar. É digna de nota a arrojada e realista sequência
do estouro dos animais em fuga pela savana em chamas, um assombro para a época.
Também merece destaque a direção de arte, feliz em captar motivos da cultura
africana: os trajes e, principalmente, as danças tribais executadas pelos
gigantescos guerreiros Watusi.
As minas do Rei
Salomão concorreu ao Oscar de Melhor Filme de 1950. Porém, a arrojada
aventura de Compton Bennett e Andrew Marton não era páreo para o grande
vencedor: A malvada (All about Eve), de Joseph L.
Mankiewicz. Competia ainda com outros pesos-pesados: Nascida ontem (Born
yesterday), de George Cukor e, principalmente, a cáustica radiografia
de Billy Wilder sobre Hollywood: Crepúsculo dos deuses (Sunset
Boulevard).
Em 1959, Kurt
Newmann dirigiu Watusi — o gigante africano (Watusi), espécie de
refilmagem em tom infinitamente menor de As minas do Rei Salomão, estrelada
por George Montgomery como Harry Quatermain e a finlandesa Taina Elg no papel de
Erica Neuler. É produção que lançou mão, sem a menor cerimônia, de várias cenas
do filme de Compton Bennett e Andrew Marton.
Roteiro: Helen Deustch, com base na novela homônima de H.
Ruder Haggard. Direção de fotografia (Technicolor):
Robert Surtees. Consultores de Technicolor:
Henri Jaffa, James Gooch. Direção de
arte: Cedric Gibbons, Paul Groesse. Montagem:
Ralph E. Winters, Conrad A. Nervig. Supervisão
de gravação: Douglas Shearer. Decoração:
Edwin B. Willis, associado a Keoch Gleason. Costumes: Walter Plunkett. Música: Mischa Spoliansky (não
creditado). Segundo assistente de
direção: Carl 'Major' Roup (não creditado). Construção do set: Donald P. Desmond (não creditado). Supervisão de gravação: Douglas Shearer.
Dublês (não creditados): Michaela
Denis (p/Deborah Kerr, Shep Houghton (p/Richard Carlson). Operadores de câmeras (não creditado): Frank V. Phillips, John
Schmitz. Assistente de câmera pela
Technicolor: Cliff Shirpser (não creditado). Consultor técnico: Bunny Allen (não creditado). Continuidade nas locações africanas:
Eva Monley (não creditado). Agradecimentos
da Metro-Goldwyn-Mayer aos: Funcionários governamentais da Colônia do Congo
Belga, Funcionários governamentais da Colônia e Protetorado do Quênia;
Funcionários governamentais de Tanganica; Funcionários governamentais do
Protetorado da Uganda. Sistema de
mixagem de som: Western Electric Sound System. Tempo de exibição: 103 minutos.
(José Eugenio Guimarães, 1996)
[1] EWALD FILHO, Rubens. Dicionário de cineastas.
São Paulo: Global, 1977. p. 277.
[2] Dentre outras versões da obra de Henry Ryder
Haggard, Allan Quatermain foi interpretado por Albert Lawrence em King Solomon ’s
mines (1919), de Horace Lisle Lucoque; Cedric Harwicke em As
minas de Salomão (King Solomon’s mines, 1937), de
Robert Stevenson; e David McCallun no obscuro King Solomon’s treasure
(1979), de Alvin Rakoff.
Hola Eugenio,
ResponderExcluirEmpezando por el final, destacaría de esta filmación, la espectacular fotografía y la dirección de arte que podrían entroncar de alguna manera, con el estilo que pudo inspirar a John Ford para realizar Mogambo, que es mi película preferida de la década de los 50 en referencia a las expediciones africanas. En todo caso, la película hoy analizada, concuerdo contigo que es la mejor sobre las minas del Rey Salomon. En mi opinión la peor de todas fue la protagonizada por Richard Chamberlain, que me pareció mala de solemnidad. En cuanto a las actuaciones, excelentes Stewart Granger y Deborah Kerr explotando su talento y su sensualidad física. Aunque creo que Groucho Marx hubiera puesto sus pegas, pues hay una cita en la que dice "Nunca voy a las películas donde el pecho del héroe es mayor que el de la heroína", ja,ja,ja, en todo caso los dos protagonistas van servidos de sobra de pecho. En fin, Eugenio, un placer como todos los domingos poderte leer y aprender de cine y me despido ya hasta septiembre, deseándote un muy feliz mes de agosto. Gracias y te envío un gran abrazo.
Caro Miguel,
ExcluirGracias pelo aporte. Esta é uma das melhores películas escapistas dentre as que conheço. Além do mais, há o subtexto erótico - muito bem arranjado em termos cinematográficos, tendo em vista as limitações da época das filmagens, particularmente as decorrentes do Código de Produção. Quanto ao mais, você já voltou das viagens de vacaciones e ainda estou aqui, atrasado com as respostas.
Abraços e saludos.
Olá, Eugênio!
ResponderExcluirNão assisti a este filme mas gostei da resenha. Parece uma aventura bem leve e sensual. As fotografias e, principalmente, o cartaz antigo do filme são o máximo!
Um forte abraço!
Pode estar certa de que apreciará a aventura, Sandra.
ExcluirBeijos e abraços.