Brian De Palma, no começo da carreira, ocupou espaços na
cena da contracultura. Passou aproximados 12 anos, desde 1960, na realização de
satíricas e originais produções baratas, geralmente em média metragem e
certeiramente direcionadas ao status quo
estadunidense. De início, não conseguiu muita visibilidade, inclusive pela
falta de interesse de distribuidores. Ainda assim, por suas mãos obscuras
atores como Robert De Niro e Jill Clayburgh estrearam no cinema. A sua sorte muda
favoravelmente em 1969. Quem anda cantando nossas mulheres (Greetings,
1968) — também conhecido por Saudações entre os cinéfilos
brasileiros — fura o bloqueio do anonimato para ser consagrado no Festival de
Berlim com o Urso de Prata e indicação ao Urso de Ouro. A partir daí começa a
ser notado com mais atenção por companhias distribuidoras e produtoras. Em 1972
é contratado pela minúscula American International Pictures, associada à Pressman-Williams
Enterprises, para dirigir uma barata produção de suspense típica do padrão 'B'.
Irmãs
diabólicas (Sisters) é um estranho e original drama psicológico e de
suspense sobre as trágicas consequências da cirurgia de separação de gêmeas
xifópagas já adultas, Danielle e Dominique Blanchion — interpretadas por Margot
Kidder. É também o começo declarado do namoro de De Palma com seu principal mestre
e fonte permanente de inspiração: Alfred Hitchcock. Percebem-se, no
desenvolvimento narrativo de Irmãs diabólicas, claras referências
e alusões a, no mínimo, seis títulos do Mestre do Suspense. Segue apreciação
escrita em 1997.
Irmãs diabólicas
Sisters
Direção:
Brian De Palma
Produção:
Edward R.
Pressman
American
International Pictures, Pressman-Williams Enterprises
EUA — 1972
Elenco:
Margot
Kidder, Jennifer Salt, Charles Durning, William “Bill” Finley, Lisle Wilson,
Barnard Hughes, Mary Davenport, Dolph Sweet e os não creditados Olympia Dukakis,
Bobby C. Collins, Cathy Berry, Catherine Gaffigan, Justine Johnston, James
Mapes, Bob Melvin, Burt Richards, Sealo.
Bastidores de Um tiro na noite (Blow out, 1981) O diretor Brian De Palma e John Travolta, intérprete de Jack Terry |
Após 12 anos
dedicados à contracultura, Brian De Palma adere ao mainstream com Irmãs diabólicas. Visita a velha,
boa e rica tradição do “filme B” para contar uma história escabrosa, repleta de
imprevistos e improbabilidades. Formalmente, alimenta-se da obra de Alfred
Hitchcock. Este é o primeiro filme do cineasta com trama, andamento e humor
claramente influenciados pelo realizador de Um corpo que cai (Vertigo,
1958). Contêm referências nítidas e descaradas de Psicose (Psycho,
1960), Janela indiscreta (Rear window, 1954), Disque
M para matar (Dial M for murder, 1954), O
terceiro tiro (The trouble with Harry, 1956), Festim
diabólico (Rope, 1948) e Marnie, confissões de uma ladra (Marnie,
1964). Entretanto — em contrariedade à má vontade de muitas críticas — não
plagia o “mestre do suspense”. Irmãs diabólicas é extremamente
original. Apenas alude ao cinema hitchcockiano, inclusive na recriação de
algumas passagens. Nada copia, em momento algum.
Egressso do média
metragem, De Palma passa com brilho pela cena underground. Na oportunidade, satiriza diversos aspectos da vida
estadunidense. Estreia em 1960 com os 40 minutos de Icarus. A seguir faz 660124:
the story of an IBM Card (1961). Com Wotan’s wake (1962) se
torna um dos cineastas com menos de 25 anos a receber incentivo da Rosenthal
Foundation[1].
Seguem-se os também pouco conhecidos Jennifer (1964), Bridge
that gap (1965), The responsive eye (1966) — documentário
sobre as reações do público à Pop Art
— e Show
me a strong town and I'll show you a strong bank (1966). Passa ao longa
metragem em 1968 com Murder à la mode — aclamado por uma
minoria e financiado pelo Departamento do Tesouro da Inglaterra em retribuição
a serviços prestados. A realização não encontra distribuidor, tal qual Quem
anda cantando nossas mulheres (Greetings, 1968) — influenciado por Masculino-feminino
(Masculin
féminin, 1965), de Jean-Luc Godard —, sátira ao amor livre, ao assassinato
de John Kennedy, à Guerra do Vietnã e ao cinema amador. Em 1969, com Cynthia
Munroe e Wilford Leach, dirige Festa de casamento (The
wedding party) e lança os atores Robert DeNiro e Jill Clayburgh. Também
não encontra interessados para lançá-lo comercialmente. Porém, a sorte começa a
mudar em 1969. Quem anda cantando nossas mulheres fura o bloqueio ao receber o
Urso Prata e indicação ao Urso de Ouro no Festival de Berlim. A partir daí atrai
a atenção de distribuidores e consegue boas arrecadações. Graças a esse
estímulo, De Palma se organiza para distribuir pessoalmente Festa
de casamento. Concretiza Dyonysius in 69 (1969). Olá,
mamãe! Hi, mom! (1970) — aclamado como uma das melhores sátiras do
período — tem Robert De Niro no papel de um neurótico veterano do Vietnã que
encontra distração na realização de filmes pornográficos e no atentado com
bombas a unidades residenciais. Orson Welles estrela o também satírico O
homem de duas vidas (Get to know your rabbit, 1972), trabalho
que encerra a fase alternativa do cineasta.
Irmãs diabólicas prega peças no
público. Leva-o ao enganoso mundo das aparências. Na primeira sequência uma
jovem cega e branca começa a se despir em um banheiro masculino. É observada
por um negro através do orifício da fechadura. A expectativa do público é quebrada com a pergunta de um locutor: “O que ele fará?” O que se vê são
imagens de um programa televisivo de auditório concebido segundo o consagrado
modelo “câmera indiscreta”. A jovem supostamente cega é Danielle Breton
(Kidder), modelo e aspirante a atriz. Seu parceiro é Phillip Wood (Wilson),
engenheiro. Pela participação no show ganham, respectivamente, um faqueiro e
convites para jantar em restaurante de classe. Na plateia, um indivíduo apreensivo
e parcialmente oculto chama a atenção.
Danielle brinca
com Phillip sobre o jantar. Comunica, entre sorrisos, que levará as próprias
facas. À mesa, sob efeito de álcool, derrama-se em incontinência verbal. O
misterioso e tenso espectador seguiu o casal e tomou assento nas proximidades.
Num relance, admoesta Danielle com rispidez, por causa do excesso de bebida. Quase
provoca briga com Phillip. Felizmente, os ânimos são apaziguados.
Danielle, em seu
apartamento, passa a noite com Phillip. Desperta sobressaltada tão logo
amanhece. No banheiro, ingere alguns comprimidos e deixa outros sobre a pia. Do
nada, responde à voz áspera de outra mulher. O companheiro desperta. Por
descuido e sem perceber, atira ao dreno as pílulas deixadas no lavatório enquanto
a parceira comunica a chegada da irmã gêmea Dominique, para a celebração de
aniversário. Visivelmente transtornada com o sumiço da medicação, provoca a ida
de Phillip à farmácia. Ao retornar, encontra-a adormecida. Resolve despertá-la
após desembalar o bolo comemorativo que adquiriu. Porém, é esfaqueado diversas
vezes por uma furiosa e catatônica Danielle. Gravemente ferido, Phillip encontra
forças para se arrastar até a janela. Na vidraça, com o próprio sangue, escreve
um grande pedido de “socorro”. Chama a atenção da vizinha, a jornalista freelancer Grace Collier (Salt). A
polícia é chamada.
Os últimos momentos do gentil a atencioso Phillip Wood (Lisle Wilson) |
Danielle Breton (Margot Kidder) desperta para matar |
Feliz aniversário, Danielle Breton (Margot Kidder) |
Grace Collier (Jennifer Salt) na "janela indiscreta" e diante do pedido de "socorro" |
Enquanto isso, o
sujeito misterioso chega ao apartamento. É Emil Breton (Finley), médico e
marido de Danielle. Calmamente ela o informa da presença de Dominique. Antes de
sair com a mulher, apaga rapidamente as evidências do assassinato e oculta o
cadáver de Phillip no interior de um sofá. Logo chega o detetive Kelly (Sweet).
Demonstra evidente má vontade devido às polêmicas reportagens de Grace Collier.
Nada encontra, somente o bolo com a inscrição “Feliz aniversário Danielle e Dominique”
e a embalagem com o endereço da confeitaria.
Danielle Breton (Margot Kidder) e Emil Breton (William Finley) |
Kelly considera
falso o alarme e encerra as investigações. A repórter, inconformada, age por conta
própria. Vai à confeitaria e levanta informações sobre o bolo. Contrata o
investigador particular Joseph Larch (Durning) para procurar pistas na cena do
crime. Por pouco não é surpreendido pela chegada de Danielle e Emil, acompanhados
de carregadores. Oculto, assiste à retirada do sofá excessivamente pesado.
Desconfia de algo oculto em seu interior. Resolve seguir os transportadores.
Também encaminha a Grace um dossiê médico achado no apartamento. Ao examiná-lo,
a jornalista se vê diante do triste passado de Danielle e Dominique, mais
conhecidas pela crônica médica como as xifópagas irmãs Banchion. Descobre, com
a ajuda do colega Arthur McLennen (Hughes) a trágica cirurgia de separação a
que foram submetidas, há muitos anos, pelo médico Emil Breton. A problemática
Dominique faleceu durante a intervenção. Esse dado deixa o espectador
desconfiado. Como explicar o diálogo entre as irmãs antes do assassinato de
Phillip?
Grace, cada vez
mais curiosa, descobre as instalações médicas da malfadada cirurgia e conhece novas
verdades sobre Danielle. Devido ao trauma provocado pela morte da irmã, assume
a personalidade de Dominique sempre que se relaciona com homens. Ingere
medicamentos para conter as reações violentas. A ação descuidada de Phillip, no
banheiro, resultou em sua própria morte quando provocou o sumiço dos demais
comprimidos. O próprio Emil teme o surgimento do irado fantasma de Dominique.
Por isso, evita relações sexuais com a esposa.
Grace Collier (Jennifer Salt) e o detetive particular Joseph Larch (Charles Durning) |
Durante a
investigação, Grace é surpreendida por Emil e submetida à hipnose para esquecer
as descobertas. Como se não bastasse, ainda é usada num experimento para tentar
a cura de Danielle, também posta em transe hipnótico e induzida a acreditar que
a repórter é a irmã ainda viva. Porém, uma variável não prevista intervém no
processo. Danielle rememora os incidentes da cirurgia. Retirada do transe, é imprudentemente
abraçada por Emil. O contato físico com o sexo oposto traz de volta, potencializado,
o fantasma da falecida. Danielle mata o marido com a mesma faca usada para
golpear Phillip. A polícia intervém, representada pelo detetive Kelly. Aprisiona
Danielle e atribui crédito às desconfianças de Grace. A repórter foi monitorada
secretamente por detetives durante todo o tempo. Infelizmente, é tarde para
ajudá-la. Teve as lembranças apagadas. Irmãs diabólicas tem final aberto,
bem-humorado e surpreendente: numa distante estação ferroviária do Canadá, o esquecido
detetive particular Joseph Larch vigia atentamente um sofá deixado na
plataforma.
A narrativa de Irmãs
diabólicas é dominada pela agilidade. Tudo acontece com rapidez. Essa característica
— somada às doses por vezes involuntárias de humor negro —, oculta aspectos
mais frágeis do roteiro e da direção um tanto descuidada. As cenas do banheiro
— principalmente quando Phillip provoca a perda da medicação — e da incursão de Larch
ao apartamento são dignas de cineasta amador de tão ruins. A sequência do
assassinato também é precária, principalmente quando a câmera mostra o rosto
possesso de Danielle em caracterização capaz de envergonhar qualquer produção
de horror barato. A direção consegue bons resultados ao dividir a tela em duas
perspectivas simultâneas. O recurso permite ao público testemunhar a mesma ação
a partir de locais diferentes e favorece à câmera suave e inteligente
transição, aparentemente sem cortes, de um centro de observação a outro. Assim,
o espectador é conduzido do ponto de vista do moribundo Phillip ao olhar da
testemunha Grace Collier.
Danielle Breton (Margot Kidder) |
Apesar de
premiada no Festival de Atlanta, a trilha musical de Bernard Herrmann foi
empregada indevidamente. O compositor criou temas eficientes, nem um pouco
óbvios. Mas a edição de som tomou a decisão de vulgarizá-los com inserções
exaustivas, a ponto de irritar os ouvintes.
Concretamente, em
quais cenas e sequências Irmãs diabólicas se comunica com
Alfred Hitchcock? O assassinato de Phillip a facadas, ao som de um tema estridente,
e o domínio de Danielle por Dominique remetem a Psicose. Há referências a
Janela
indiscreta em todas as cenas com janelas. O corpo escondido homenageia Festim
diabólico e a movimentação do sofá alude a O terceiro tiro. O clima
de Disque
M para matar é recriado nos momentos noturnos da dependência
hospitalar. O problema crônico de Danielle com o sexo oposto tem inspiração em Marnie,
confissões de uma ladra.
Inteligentemente,
Brian De Palma não responde a todas as dúvidas que assaltam o espectador. Emil
Breton causou propositalmente a morte de Dominique na mesa de operação? Quis se
livrar de um empecilho ao seu romance com Danielle? As lembranças da
sobrevivente, em transe, parecem responder afirmativamente a essas questões.
Emil seria também parte de gêmeos xifópagos? O que dizer da enorme e estranha
cicatriz vermelha estampada na testa, quase sempre coberta pela boina? Seria
resultado de uma cirurgia de separação, processo que deixou horrível e enorme
marca no corpo de Danielle? Surge aí outra dúvida: onde estavam as mãos de
Phillip quando fez amor com Danielle? Não sentiu os vestígios da cirurgia no
quadril da companheira, área tão susceptível ao toque?
Margot Kidder como Danielle Breton |
Há que se louvar
a ousadia de Brian De Palma ao encenar a relação entre uma branca e um negro,
algo difícil de se ver no cinema comercial estadunidense, apesar de todos os
avanços desde o tardio pioneirismo de Adivinhe quem vem para jantar? (Guess
who’s coming to dinner?, 1967) de Stanley Kramer. Mesmo assim, parece
que Phillip entrou na história somente para ser assassinado. Teria merecido fim
tão doloroso e inglório como castigo pela violação de um tabu?
Roteiro: Brian De Palma, Louisa Rose, com base em história
de Brian De Palma. Direção de fotografia
(Preto e branco/Movielab Color): Gregory Sandor, Lennart Nilsson (sequência
de créditos de abertura). Música:
Bernard Herrmann. Desenho de produção:
Gary Weist (não creditado). Montagem:
Paul Hirsch. Produção associada:
Lynn Pressman, Robert Rohdie, Louis A. Stroller. Produção de elenco: Sylvia Fay. Edição de som: John Fox. Gerente
de unidade: Jeffrey M. Hayes. Assistente
de direção: Alan Hopkins. Eletricista-chefe:
William W. Lister. Assistentes de câmera:
Rex North, Ed Hershberger (não creditado). Operador
de câmera: Bill Godsey. Supervisão
de produção: Louis A. Stroller. Maquiagem:
Jeanne Richmond (não creditado). Produção
executiva: David Sheldon (não creditada). Gravação de som: Russell Arthur. Mixagem de som: Dick Vorisek. Assistente
de montagem: Susan Braddon. Edição
musical: Robert Hathaway. Músicos
(não creditados): Howard Blake, Howard Blake. Documentário: Jay Cocks. Planejamento
de créditos: Richard Hess. Assistente
de produção: Amy Robinson (não creditado). Tempo de exibição: 93 minutos.
(José Eugenio Guimarães, 1997)
Hola Eugenio.
ResponderExcluirEs una película que desconocía hasta ahora mismo, pero con tu excelente y completa evaluación la doy por anotada en mi cerebro marciano. Además, en está ocasión me han dado ganas de verla y voy a tratar de encontrarla. Me gusta la trama, el reparto y el director. De todas maneras, si el titulo original entiendo que es Sisters así se tendría que haber quedado en mi opinión. Un gran abrazo y enhorabuena como siempre.
Olá, Miguel!
ExcluirEspero que tenha conseguido ver o filme. Apesar de haver passado tantos anos, ainda é um trabalho consistente, uma promissora estreia de Brian De Palma no cinema.
Abraços.
Não conhecia este filme, Eugênio.
ResponderExcluirAprecio suas resenhas e tenho vontade de assistir todos os indicados, mas, e o tempo? Talvez deva administrá-lo melhor...
Beijos!
Entendo o seu drama, Sandra! Também o enfrento. Aliás, acho que já desisti desta tentativa de administração do tempo. A esta altura da vida, o melhor, mesmo - inclusive por não ser estressante - é a anarquia. Ou acabaremos ficando doentes. Já nem uso mais a agenda. Rs.
ExcluirBeijos e abraços.
Fiquei muito curiosa e fui procurar no You Tube. Assisti ao trailler e gostei mas não está disponível lá, vou procurar nas Americanas.com
ResponderExcluirObrigada por nos indicar verdadeiras pérolas - Vou assistir por sugestão do seu blog, "Terra em Transe".
Forte abraço, Eugênio!
Olá, Sandra!
ExcluirConseguiu assistir a "Irmãs diabólicas"? Também viu "Terra em transe"? Este é, definitivamente, um dos meus filmes preferidos.
Abraços e beijos.