O diretor era praticamente um menino. Entretanto, trazia
alguma bagagem. Pode-se dizer que nasceu em berço esplêndido. Bruno Barreto,
filho mais velho dos veteranos produtores brasileiros Lucy e Luiz Carlos
Barreto, teve, desde criança, a sorte de acompanhar o pai por sets e locações
de muitos clássicos da cinematografia nacional surgidos nos anos 60. Além de
testemunhar os processos que originaram títulos diversos e tão significativos, iniciou
cedo o aprendizado prático de realizador. Em 1966, aos 11 anos, fez o primeiro
filme, um curta em 16 mm. Seguiram-se outros, nos anos seguintes, sempre em
regime amador. Já acumulava experiência em 35 mm quando decidiu adentrar
profissionalmente a cena da realização. Com a retaguarda dos pais, ajuda
financeira da avó Lucíola Villela, colaboração do cineasta Miguel Borges na
elaboração do roteiro, e o apoio de Murilo Salles no manuseio da câmera e na
direção de fotografia, Bruno Barreto, aos 17 anos, transformou em filme o conto
Tati,
a garota, de Aníbal Machado. O resultado é a realização de mesmo nome,
de 1973. Tive oportunidade de vê-la no ano seguinte, quando também registrei as
boas impressões deixadas pela obra na apreciação agora submetida aos leitores
deste blog. O adolescente Bruno Barreto fez um filme de gente grande. Soube
contar com sensibilidade, fluidez e clareza um drama familiar sobre a
trajetória pontuada de amargura, tristeza, ilusões e sonhos partidos de gente
simples e tão bem representada pela jovem costureira Manuela (Dina Sfat), mãe
solteira da frágil e carente garotinha Tati (Daniela Vasconcelos) — que
gostaria muito de contar com a presença de um pai. Atualmente, o título da
realização é registrado apenas como Tati.
Tati, a garota
Direção:
Bruno Barreto
Produção:
Luís Carlos Barreto, Lucy Barreto
Produções Cinematográficas Luís
Carlos Barreto Ltda., Embrafilme
Brasil — 1973
Elenco:
Dina Sfat, Hugo Carvana, Daniela
Vasconcelos, Marcelo Carvalho, Elizabeth Martins, Fábio Sabag, Wilson Grey, Wanda
Lacerda, Zezé Macedo, Paulo Neves, Noelza Guimarães, Geraldo Affonso Miranda, Jane
Silva, Ivone Gomes, José Bráulio, Odete Vasconcelos, Leila Carvalho, Rui
Telles, Noelza Guimarães, Mariana, Luiza, Paulo, Anselmo, Eliane, Marcelo,
Orlando.
O diretor Bruno Barreto em foto recente |
Tati, a garota é irregular,
sensível e surpreendente. Mereceu, em 1973, o Prêmio Adicional de Qualidade do
Instituto Nacional do Cinema e indicou o diretor Bruno Barreto ao Troféu
Dourado do Festival de Moscou.
Bruno nasceu em
1955. Teve introdução precoce no meio cinematográfico. É filho dos produtores
Lucy e Luiz Carlos Barreto. O pai também é roteirista e diretor de fotografia.
Dado não menos importante: o jovem realizador de Tati, a garota é dono do
canino mais famoso do cinema brasileiro, a cadela que sensibilizou meio mundo
como Baleia no clássico Vidas secas (1963), obra mestra de
Nelson Pereira dos Santos. Quando garoto, Bruno geralmente acompanhava o pai
por sets e locações. Testemunhou os nascimentos do referido título de Nelson e de
Terra
em transe (1967), de Glauber Rocha, produzidos e iluminados por Luiz
Carlos Barreto.
Manuela (Dina Sfat) com a filha Tati (Daniela Vasconcelos) |
Provavelmente, Bruno
também presenciou os processos que geraram outros modernos clássicos da
cinematografia nacional dos anos 60, produzidos pelo pai: Garrincha ― alegria do povo
(1963), de Joaquim Pedro de Andrade; A hora e a vez de Augusto Matraga
(1965), de Roberto Santos; O padre e a moça (1966), de Joaquim
Pedro de Andrade; A grande cidade (1966), de Carlos Diegues; Toda donzela tem um pai que é uma
fera (1966), de Roberto Farias; A vida provisória (1968), de
Maurício Gomes Leite; Brasil ano 2000 (1969), de Walter
Lima Jr.; e, entre outros, O dragão da maldade contra o santo guerreiro
(1969), de Glauber Rocha.
Não causa
estranhamento que um menino desde cedo envolvido pela atmosfera do melhor
cinema resolvesse seguir carreira de cineasta. Os incentivos e facilidades
estavam em casa, ao seu alcance. Estreou na realização em caráter amador aos 11
anos, em 1966, com o curta em 16 mm Três amigos não se separam. A
seguir, nas mesmas bitola e metragem, vieram Bahia à vista (1967), O
médico e o monstro ou Dr. Strangelove and Mr. Hyde (1968)
e Divina
maravilhosa (1969). Saltou para o 35 mm em 1970, com o curta Esse
silêncio pode significar muita coisa. A seguir vieram, em igual
metragem, A bolsa e a vida (1971) e A emboscada (1972).
Em 1973 sentiu segurança
para alçar voo mais elevado: estreou profissionalmente no longa com um pequeno
drama familiar extraído do universo do escritor mineiro Aníbal Machado. O conto
Tati,
a garota, livremente adaptado ao cinema pelo próprio Bruno em parceria
com o cineasta Miguel Borges. Com a inestimável ajuda da avó Lucíola Villela
como avalista e produtora associada, levantou os recursos necessários à realização.
É um trabalho bonito para alguém com apenas 17 anos. Não é perfeito e seria até
exageradamente descabido exigir que o fosse. Falha terrivelmente na direção de
atores, em particular na condução das crianças e de seus diálogos. Tati
(Daniela Vasconcelos) e amiguinhos poderiam se expressar com maior espontaneidade.
A produção tomou a descuidada decisão de dublá-las com vozes em tudo
discrepantes para petizes. É o único problema relevante do filme. O resto é
surpreendentemente bom. A narrativa flui levemente, como se decorresse do
trabalho de gente grande e experiente. Em nada se parece com realização de um
adolescente que sequer tinha idade para votar e fazer o serviço militar.
Tati, a garota dividiu as
apreciações. De um lado, os mais justos elogios: exaltaram a narrativa simples,
direta e o tratamento sensível do assunto. No campo oposto houve a proposital tentativa
de descaracterizar o diretor e a obra. Enquanto alguns perceberam falta de fluidez
à história; outros classificaram o roteiro de pouco claro, a ponto de deixar a
narrativa confusa. Francamente, tais problemas não se apresentam. Tati,
a garota é cristalinamente claro. Pode apresentar problemas, mas não de
estrutura e desenvolvimento. Porém, as piores avaliações foram externas à obra.
O jovem Bruno Barreto, aos 17 anos, foi tachado de imaturo, despersonalizado e
filhinho de papai, alguém que jamais enfrentou dificuldades. Ora, convenhamos!
Tati (Daniela Vasconcelos) com a mãe Manuela (Dina Sfat) |
Aos olhos e
sensações da personagem do título corre uma história de carências afetivas localizadas
em um mundinho habitado por gente simples e sem perspectivas. A menina, com aproximados
seis anos, é filha de mãe solteira — a jovem costureira Manuela (Sfat). Não
conheceu o pai, marinheiro que se aventurou pelos mares de Hong Kong e jamais
voltou ou enviou notícias. A presença materna, apesar de tudo, não lhe supre as
carências e mal serve de companhia. Para dar conta da sobrevivência, Manuela se
entrega em período quase integral aos moldes, agulhas, alfinetes e tecidos que
ganham forma em sua máquina de costura. Tati passa os dias fora de casa, na
companhia de amigos feitos na rua, praia e parquinhos. Geralmente é tratada com
crueldade pela impiedosa ingenuidade das outras crianças. "Ela não tem
pai", afirmam zombeteiramente. Defende-se como pode. Diz que muitos são os
seus pais, certamente os companheiros de saídas casuais de Manuela — afinal,
ninguém é de ferro, muito menos uma costureira na flor da mocidade.
A solidão de Tati (Daniela Vasconcelos) |
Manuela (Dina Sfat) passa dias e noites na máquina de costura |
Em busca de
melhores oportunidades, Manuela trocou o bairro suburbano da Penha, Zona Norte
do Rio de Janeiro, por uma quitinete alugada na cosmopolita e socialmente
diversificada Copacabana. Tati, a garota começa com a mudança.
Os créditos são apresentados enquanto o caminhão transporta o parco mobiliário rumo
ao novo endereço. Na banda sonora a cantora Claudia Regina interpreta a amarga
canção-título (música de Dori Caymmi e letra de Paulo César Pinheiro) a
respeito de uma criança solitária "à mercê de triste herança"
condenada "a viver a infância como nunca mais".
A relação de Tati
com a mãe não é simples. É tensa, marcada por contradições. A garota não dá
folga. Está em permanente busca de afeto e atenção. A toda hora pergunta pelo
pai, sentida ausência que a diferencia completamente dos companheiros de
folguedos. Manuela, geralmente atarefada, nem sempre apresenta disposição e
paciência para lidar com as exigências de Tati. Às vezes demonstra
arrependimento pela maternidade. Pensa em recomeçar a vida sobre outros fundamentos,
com a opção de deixar a filha aos cuidados de uma irmã em Vigário Geral. Ainda
mais quando a situação financeira começa a apertar e gera atrasos no pagamento
do aluguel com a consequente ameaça de despejo. Entre as novas preocupações há
uma gravidez fora de hora, drasticamente interrompida para tristeza e desespero
da menina, desejosa da companhia de um irmãozinho. Desde cedo Tati conheceu
situações de perda. Ressente-se disso em diversos momentos, principalmente ao
se mostrar insatisfeita com a boneca lançada fora durante a mudança, em plena Avenida
Brasil , ou quando resolve, na companhia da amiguinha Zuli
(Martins), matar o milho há pouco germinado após saber que não ganhará o
irmãozinho prometido: "O milho está muito feio. Não devia ter nascido.
Vamos matar ele".
Zuli (Elizabeth Martins) e Tati (Daniela Vasconcelos) |
Manuela (Dina Sfat) e Tati (Daniela Vasconcelos) |
Apesar de triste
e amargo, o filme não deixa de se abrir aos momentos de exceção que tornam
suportáveis dias tão parecidos em suas permanentes esperas e ausências. A
menina tem uma espécie de príncipe encantado ou herói que vem de longe: o
carinhoso e alegre Capitão Peixoto (Carvana), comandante de um navio cargueiro.
Toda vez que volta ao Brasil traz presentes e um pouco de alegria para o
mundinho cinzento de Tati e Manuela — pela qual é apaixonado. Infelizmente, é
visto apenas como bom amigo. Ainda assim, manifesta sincera preocupação e
caloroso carinho pela garota. De certo modo preenche, sempre que aparece, o vazio
deixado pela ausência paterna. Peixoto é um "autêntico lobo do mar",
em permanente movimento. Não tem pouso certo e hora para chegar ou partir. Para
Tati, sua presença é como a felicidade do pobre: dura pouco. Disso ela parece ter
plena ciência. É emblemática a sequência da festinha de aniversário que lhe prepara,
no navio, o personagem vivido por Hugo Carvana. No auge da celebração, a casinha
de brinquedo erguida entre as guloseimas é furiosamente destruída pela garota
com a ajuda dos amiguinhos. É como se não representasse a imagem do lar seguro
e estável, mas estação provisória no meio de uma existência pontuada por perdas
e recomeços, sempre ameaçada nas promessas e fundamentos. Por fim, Tati perderá
também a companhia de Paulinho (Carvalho), com o qual teve difícil início de amizade.
Depois que aprenderam a se gostar, ele parte com a família para São Paulo.
Hugo Carvana interpreta o Capitão Peixoto |
O epílogo é
aberto. Manuela resolve mais uma etapa de seu relacionamento com a filha.
Quanto a isso, a plateia respira aliviada. Sabe, porém — como acontece a muitas
outras crianças reais, tão parecidas a Tati —, que a história avança, incerta,
sem possibilidades de garantir a seres como elas um futuro promissor. Estarão
sempre na dependência de encontrar, se tiverem sorte, o apoio intermitente de
figuras como o Capitão Peixoto. Tati, certamente, será uma adulta como Manuela
— obrigada a tomar decisões em meio a incertezas e ilusões, em situações nem
sempre favoráveis, enquanto faz cálculos de resultados destoantes sobre as
possibilidades do amor, da segurança e da felicidade.
Wilson Grey em ponta como o mendigo |
No elenco brilha
a garotinha Daniela Vasconcelos. Apesar da inexperiência e da frágil direção de
atores, leva o filme nas costas. Dina Sfat é presença correta. O papel de
costureira suburbana lhe exige pouco. Porém, destaca-se nos momentos em que expulsa
de casa as emproadas clientes granfinas e quando sai desesperada, à noite, em
busca de médico para a filha adoentada. É um prazer ver Zezé Macedo como a
prestativa vizinha Dona Aurora, um personagem que distancia a veterana atriz do
cinema brasileiro dos estereótipos de empregadas domésticas ou feiosas abusadas
aos quais esteve habitualmente relegada. Wilson Grey faz rápida aparição como
mendigo.
Assistente
de direção: José
Carlos Matos. Roteiro: Bruno
Barreto, Miguel Borges, baseados no conto Tati, a garota, de Aníbal Machado. Cenografia e costumes: Teresa Nicolau. Direção de fotografia (Eastmancolor):
Murilo Salles. Montagem: Raymundo
Higino. Música: Dori Caymmi, Paulo
César Pinheiro. Canção-título: Dori
Caymmi, Paulo César Pinheiro. Produção
associada: Lucíola Vilela, Dina Sfat. Gerente
de produção: Ivan Souza. Assistência
de produção: Omar Costa. Continuidade:
Adnor Pitanga. Operadores de câmera:
Murilo Salles, Bruno Barreto. Assistência
de câmera: Ronaldo Nunes. Fotografia
de cena: Kunka. Direção de
fotografia da segunda unidade: Ronaldo Foster. Eletricista-chefe: Roque Araújo. Maquinistas: Delmindo Peçanha, José Pinheiro, Geraldo Tolentino. Som: José Tavares. Efeitos sonoros especiais: Walter Goulart, Antônio Cezar. Ruídos de sala: José Fonseca. Técnicos de dublagem: Vitor Rapozeiro,
Dino Roberto. Assistente de montagem:
Ana Borges. Créditos de abertura:
Visual Stil. Intérprete da
canção-título: Cláudia Regina. Produção
executiva: Lucy Barreto.
(José Eugenio Guimarães, 1974)
Hola Eugenio, hoy desconozco totalmente la película y el director, pero ello hacen aún más interesante el análisis y tu mirada sobre el tema. Creo que el amor por cualquier arte en general, y en este caso por el cine empieza ya desde niños. Por eso, sería muy bueno que todos los padres llevaran a sus hijos al cine y ese día se convirtiera en algo muy especial. Luego de mayores tendrán una afición o incluso una devoción como cinéfilos, que ambos podemos compartir. Y de ahí, enlazo a la precocidad de este director que con 17 años fue capaz de dirigir todo un largometraje. Y por lo que entiendo, y a pesar de sus errores normales para su edad en la dirección de actores, le quedó una película bastante interesante.
ResponderExcluirUn abrazo y gracias por dar a conocer un cine que por ejemplo en Europa es bastante desconocido para el gran público.
Muchas gracias por sus consideraciones, Miguel Pina. El director Bruno Barreto también realizó aquella que es, aún, la mayor taquilla del cine brasileño: DUEÑA FLOR Y SUS DOS MARIDOS, de 1976, basado en romance del escritor Jorge Amado. En España, recibió el nombre de Doña "Flor y sus de los maridos". En cuanto al más, tiene toda razón. La pasión por el cine es algo que debe ser cultivada desciende muy cedo.eu comencé a los dos años, con mi madre, en 1958. Hoy, estoy con 61 años y la pasión es aún intensa, cada vez más.
ExcluirSaludos, meu caro. Abraços.
Sou fã de Tati e tenho uma página no Facebook: https://www.facebook.com/Por-onde-anda-Daniela-Vasconcelos-do-filme-Tati-a-garota-656385384539593
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