domingo, 19 de fevereiro de 2017

A DESCONSTRUÇÃO DO MITO BUFFALO BILL POR ROBERT ALTMAN

Vencedor do Urso de Ouro no Festival de Berlim de 1976, o demolidor Oeste Selvagem (Buffalo Bill and the indians, or Sitting Bull's History Lesson) é produção arriscada do iconoclasta Robert Altman e monumental fracasso de bilheteria. As opções formais que presidem a encenação, apesar de problemáticas, não lhe diminuem a coragem e o valor. A partir de 1883, com a redução das possibilidades permitidas pelo processo geralmente denominado de Conquista do Oeste, o personagem de William Frederick Cody, o Buffalo Bill, resolveu se encapsular num mundo à parte: um empreendimento misto de teatro e circo, o Buffalo Bill's Wild West Show, erguido com o apoio de capitalistas criteriosos. Nesse espaço, encarregou-se de oferecer às massas versões cuidadosamente arranjadas de variados eventos sobre a incorporação da fronteira ocidental dos Estados Unidos ao processo civilizatório. Tudo é suficientemente ordenado e controlado para admitir apenas a reconstituição de "verdades" históricas em estreita sintonia com a dignidade dos mitos nacionais, particularmente de Buffalo Bill, interpretado por Paul Newman. Nesse mundinho bem delimitado, Altman acompanha, de forma episódica, o cotidiano de um embusteiro narcisista e megalômano, alçado por um conjunto bem orquestrado de artimanhas e circunstâncias históricas a símbolo do espírito nacional estadunidense. No entanto, as coisas se complicam quando outro testemunho da Conquista do Oeste é incorporado, com diferentes intenções, ao Buffalo Bill's Wild West Show: Sitting Bull (Touro Sentado), o chefe de guerra Sioux, um dos responsáveis pela derrota do General Custer em Little Big Horn. A apreciação a seguir é de 1992.






Oeste Selvagem
Buffalo Bill and the indians, or Sitting Bull's History Lesson

Direção:
Robert Altman
Produção:
Robert Altman
Dino De Laurentiis Corporation, Lion's Gate Films, Talent Associates-Norton Simon
EUA — 1976
Elenco:
Paul Newman, Burt Lancaster, Geraldine Chaplin, Joel Grey, Harvey Keitel, Will Sampson, Shelley Duvall, Kevin McCarthy
Allan F. Nicholls, John Considine, Robert DoQui, Mike Kaplan, Bert Remsen, Bonnie Leaders, Noelle Rogers, Evelyn Lear, Denver Pyle, Frank Kaquitts, Ken Krossa, Fred N. Larsen, Jerri Duce, Joy Duce, Alex Green, Gary MacKenzie, Humphrey Gratz, Pat McCormick e os não creditados Dennis Corrie, E. L. Doctorow, Patrick Reynolds.



O diretor Robert Altman


William Frederick Cody, o Buffalo Bill, é, provavelmente, o personagem da história estadunidense com maior presença nas telas. Segundo os registros, foi assunto de aproximadas 30 produções entre 1894 a 1976. Tais realizações cuidavam, invariavelmente, de enaltecer o mito de cuja edificação ele foi parte diretamente interessada. A lenda começou a sobrepujar os fatos quando ainda era relativamente jovem. Em 1894 — um ano antes de os Irmãos Lumière inventarem o cinema da forma como ainda o conhecemos —, interpretou a si próprio em filmetes exibidos em maquinários para fruição individual: Buffalo Bill e Annie Oakley, dirigidos por W. L. Dickson.


Praticamente é impossível estabelecer limites entre a ficção e a realidade ao longo de uma biografia repleta de aventuras, iniciada para valer aos 10 anos, quando se tornou chefe da família em decorrência da morte do pai. Aos 15 integrava o Pony Express — o correio a cavalo — na ligação entre São José, no Missouri, a Sacramento, na Califórnia. Durante a Guerra Civil teve papel preponderante como batedor das forças da União. Em 1863, antes de terminado o conflito secessionista, participou das campanhas militares contra Comanches e Kiowas. Três anos depois, contratado pela firma Goddard Brothers, tornou-se caçador de bisões para alimentar os operários que construíam a linha ferroviária entre o Kansas e a Costa Oeste. Nesse período ganhou o apelido que o acompanhou pelo resto da vida e, segundo os relatos, abateu em menos de 17 meses perto de 4 mil animais. Reincorporou-se ao Exército de 1868 a 1872. Realistado em 1876, participou com o General George Armstrong Custer das campanhas contra Sioux e Cheyennes. Reza a lenda que matou e escalpelou o chefe Mão Amarela após derrotá-lo em combate corporal. A fama estava nacionalmente consolidada quando ganhou o suporte de uma série de novelas populares escritas por Ned Buntline, fartamente consumidas pelo público e sabiamente capitalizadas em proveito próprio. Em 1872 interpretou a si mesmo em peça teatral que lhe exaltava as façanhas. Já não tinha controle algum sobre aspectos factuais e lendários de sua vida quando se lançou, em 1883, como principal estrela de um espetáculo permanente e itinerante de conotações teatrais e circenses que o glorificavam nos inúmeros feitos dos quais teria participado na conquista do Oeste: o Buffalo Bill's Wild West Show. É essa a etapa abordada pelo filme de Robert Altman. William Frederick Cody faleceu em 1917, aos 70 anos, quando já tinha firmado notoriedade como autor de edições populares sobre a vida na fronteira ocidental dos EUA.


Ned Buntline, interpretado por Burt Lancaster em Oeste Selvagem, seria o equivalente brasileiro ao escritor de literatura de cordel. Além de popularizar e engrandecer as peripécias de William Frederick Cody, também escreveu sobre Wild Bill Hickok, Jesse James e Billy the Kid. Não fosse por ele, o mito não alcançaria a projeção nacional que conheceu. Na realização de Altman, o personagem renasce na estampa de Paul Newman. É um aproveitador suficientemente arguto. Soube se cercar de empresários e agenciadores espertos, suficientemente financistas e gananciosos, que o transformaram em máquina de ganhar dinheiro em cima das linhas artesanalmente forjadas pelo autor. Este nada recebeu pela utilização da obra, sequer uma referência. Velho e necessitado, passa todo o filme nas áreas periféricas do Buffalo Bill's Wild West Show à espera de inútil oportunidade para falar com a estrela. Já ao final, diante do astro fanfarrão, megalômano e oportunista que ajudou a enriquecer, resolve partir apegado à dignidade que lhe resta, apesar de nada possuir — conforme alega. Esta é apenas a estocada final desferida pelo iconoclasta e impiedoso desmistificador Robert Altman no personagem que melhor sintetizou, durante anos, o caráter nacional estadunidense. O homem que deu rosto ao país, emblema da grandeza do pioneiro conquistador e desbravador, é reduzido à posição de grotesca e patética fraude legitimada por páginas de almanaques impressos para consumo imediato das massas mal alfabetizadas e predispostas a crer em qualquer versão carregada de nobreza e heroísmo, firmada com o mínimo de convicção.


William Frederick Cody, o Buffalo Bill, é interpretado por Paul Newman

Buffalo Bill (Paul Newman) e Ned Buntline (Burt Lancaster)


Altman rodou Oeste Selvagem em 1976, exatamente um século após a grande vitória da Confederação Sioux liderada por Sitting Bull (Touro Sentado) e Crazy Horse (Cavalo Louco) sobre o Sétimo Regimento de Cavalaria do General Custer em Little Big Horn. Venceu o Urso de Ouro no Festival de Berlim daquele ano. O roteiro escrito pelo diretor em parceria com o habitual colaborador Alan Rudolph é livremente adaptado da poliédrica peça teatral Indians, de Arthur Kopit. Trata-se de avantajado tratado sobre o terrível processo de extermínio das tribos que habitavam as terras do Oeste, chamadas de "livres" pelo colonizador branco.


As filmagens tiveram lugar em Alberta, Canadá, onde se armou o grande cenário do Buffalo Bill's Wild West Show. É um espaço de manipulação controlada da história, à semelhança do laboratório científico e repleto de subdivisões nas quais se reconstituem, sob a supervisão de diligentes e atentos especialistas em entretenimento de massas, vários aspectos espetaculares da conquista do Oeste. Pode-se dizer que os números encenados no Buffalo Bill's Wild West Show compõem os primeiros momentos daquilo que se convencionou chamar, com mais propriedade, de show business. Aliás, o termo é constantemente utilizado pelos gerentes e encenadores, inclusive pela principal estrela. Todos sabem: quem controla o show business delimita a verdade da forma que bem entender e a oferece bem embalada e explicada ao público. É uma nova versão, mais profissional, do panis et circenses romano. As encenações de números da conquista da fronteira ocidental dos Estados Unidos decorrem de escolhas e rituais emanados de uma perspectiva acintosamente branca e puritana. Tal característica determina a veracidade dos fatos, bem como o modo de recriá-los e exibi-los. Logo no começo há o ensaio de um quadro que simula o massacre de famílias pioneiras por índios aguerridos, diante dos olhares atentos do produtor Nate Salisbury (Grey) e do agente publicitário Major John Burke (McCarthy). Ambos verificam a veracidade das mortes, o posicionamento dos atores, a adequação dos vestuários, a cavalgada dos índios e cowboys... Enfeitam a cena para configurá-la como real, de acordo com as especificações em voga do mercado de consumo. Então, a própria história não precisa ser conforme os fatos. Ou depende, pois o factual é recriado a todo momento segundo a bilheteria, as vaias, os aplausos e suspiros do público.


Nat Salisbury (Joel Grey) - produtor do espetáculo -, a atiradora Annie Oakley (Geraldine Chaplin) e Buffalo Bill (Paul Newman)


O ano da encenação é 1885. Nesse período a conquista do Oeste estava perto de se efetivar. Não havia mais índios a combater, os rebanhos de bisões estavam consideravelmente reduzidos, as grandes propriedades de criação de gado monopolizaram as terras e cursos de água com a consequente expulsão do farmer, a ferrovia aposentou as diligências e cavalos para vencer grandes distâncias, a lei e a ordem enquadraram pistoleiros e demais refratários. O mundo conhecido por Buffalo Bill estava nos estertores. Pode apenas ser recuperado pela encenação mais farsesca e segundo conveniências as mais lucrativas. De certo modo, agora mais que nunca, o Oeste encenado no show de Buffalo Bill é uma das engrenagens que azeitam a insaciável máquina de reprodução do capitalismo. Além de ser um laboratório, também é como a fábrica padronizadora de mercadorias produzidas com o mínimo de variações. O Buffalo Bill's Wild West Show vende ao público um Oeste engarrafado, ou um enlatado como Hollywood e a televisão farão com mais propriedade e profissionalismo muitos anos depois.


Buffalo Bill reina inconteste neste Oeste de mentira. Tudo é feito para agradá-lo, o que significa torcer e retorcer os fatos para adequá-los à realidade conforme a crença geral. Assim, tão bem delimitado às cercanias de um teatro ou parque temático, o herói não deixa de ser um personagem de tragédia, mesmo que o empreendimento fílmico o perceba como manipulador, mentiroso, fanfarrão e arrogante — um fantoche que transformou em monumento glamouroso toda uma verdade histórica carregada de miséria, sofrimento, matança e extermínio. Bill sabe que existiu, num tempo não muito distante, uma realidade que contou com sua contribuição para ser completamente dizimada. Chega a lamentar quando toma conhecimento da redução dos cerca de dez mil membros de uma tribo de guerreiros imponentes a pouco mais de uma centena de subjugados. Mas também tem compromissos maiores com negociantes que o transformaram em mito totalmente desconectado com o tempo histórico. Esses souberam, como poucos, manipulá-lo no ego ao mesmo tempo agigantado, infantil e inseguro. É um homem que vive à base de álcool. Só assim consegue suportar tanto peso de culpas e responsabilidades. Entretanto, importam mais as aparências e mentiras transformadas em convenientes verdades, disponibilizadas ao consumo de gente simples, pronta a fantasiar a realidade com presepadas, desfiles de passo marcado ritmados pela banda de música, tiros sempre certeiros e bandeiras desfraldadas. O mundo no qual Bill agora vive é erguido diariamente ao som de fanfarras e toques de alvorada. Porém, o personagem é quase sempre surpreendido na observação incrédula de gigantescas pinturas que o exibem sobre cavalos garbosos. Nesses momentos de quase delírio, ele parece perguntar sobre a adequação de tantos aparatos e adereços que o ornamentam, ainda mais se postos em comparação à vida que realmente teve, repleta de eventos propositalmente esquecidos e outros recriados segundo interesses da ocasião. Na verdade, ele parece saber que é um nada, um homem que participou de acontecimentos desprezíveis cujas lembranças não pode normalmente suportar. Diante disso, precisa do auxílio de um esforço de produção que o sustente, para inseri-lo na história como vencedor e herói. Apesar de internamente frágil, ferido e impotente, precisa se apresentar orgulhoso e dono de si, conforme se espera de alguém alçado ao posto de condutor nacional. Tem a imperiosa necessidade de parecer real, suficientemente crível para ser ovacionado pelas massas que o idolatram. Os aplausos aferem a verdade do personagem e dos eventos recriados.


Controlar o mundo de mentiras aparentes do Buffalo Bill's Wild West Show, para torná-lo crível, é a função de William Frederick Cody. Em 1885 as encenações estão mais populares e lucrativas. A bola não pode cair. O tino comercial dos empresários e da estrela articula, então, uma cartada com ares de golpe de mestre. Tirar da prisão militar o chefe Sioux que derrotou Custer e o incorporar às encenações. Talvez Buffalo Bill achasse, também, que Sitting Bull fosse se sentir envaidecido por fazer parte de um mundo que glorifica a vitória transformada em empreendimento honrado, heróico e lucrativo. No entanto, a partir daí as coisas começam a desandar, pois o silencioso, velho e fisicamente diminuto chefe interpretado por Frank Kaquitts não perdeu a autoestima, o senso da honra pessoal e o compromisso que o legitimam perante o que resta da nação Sioux.


Sitting Bull, o chefe Sioux, é interpretado por Frank Kaquitts

  
Em verdade, Buffalo Bill pensava que consolidaria sua participação na conquista do Oeste ao receber das autoridades a custódia sobre Sitting Bull. Acreditou que lidaria com um selvagem ignorante, pronto a aceitar docilmente a visão distorcida da história apresentada às plateias. Recebe o chefe índio com a arrogância do vencedor. Trata-o como assassino de Custer e de incontáveis mulheres e crianças indefesas. Porém, as intenções do perplexo chefe são outras. Aceitou se juntar ao show para conquistar alguns dividendos para os Sioux, como terras, alimentos e agasalhos. Sonhou que teria a oportunidade de conversar pessoalmente com Grover Cleveland, Presidente dos Estados Unidos com visita programada ao Buffalo Bill's Wild West Show, e encaminhar algumas reivindicações. Demonstra uma dignidade desconcertante e um conhecimento da verdade histórica que membro algum da companhia possui. Recusa as acomodações que lhe foram direcionadas e o papel de mero coadjuvante de um espetáculo circense. Desse modo não atuará em reconstituição alguma do massacre do Sétimo de Cavalaria. Talvez até o fizesse, desde que tivesse liberdade de encenar os antecedentes da história: as constantes violações de tratados da parte dos brancos e as incursões de militares às aldeias, que resultavam, invariavelmente, em matanças generalizadas. É uma pretensão que não terá respaldo, somente o horror de Bill e toda a companhia. A exceção é a exímia atiradora Annie Oakley (Chaplin), uma das atrações do show e amiga pessoal de Sitting Bull.


Geraldine Chaplin no papel de Annie Oakley


Orgulhoso, Sitting Bull não fala diretamente com quem quer que seja. Dá a impressão de que desconhece o inglês. Quem o assessora nas comunicações é o intérprete e mestiço Halsey (Sampson). Devido ao porte imponente e firmeza de voz, foi inicialmente confundido com o chefe. Provocou assim um primeiro e tremendo erro de interpretação da parte dos brancos. Estes invariavelmente se viam enganados e sem ação diante dos costumes e atitudes independentes do chefe Sioux. Bill e companhia nada conhecem da especificidade cultural da tribo, a não ser a grosseira e equivocada expressão “selvagem”, indistintamente utilizada para recobrir e uniformizar todas as ricas identidades indígenas. Sempre que Sitting Bull solicita por alterações nas mentiras encenadas — “Ele só quer mostrar a verdade ao povo”, diz Oakley a Bill —, a estrela da casa afirma que o chefe nada entende de show business ou que possui sentido equivocado da história. No entanto, William Frederick Cody sabe bem que o velho chefe está certo ao recusar o papel de caricatura e ao afirmar que "O homem branco roubou a verdade". Tem ciência de que, em nome do mito, do espetáculo e da lucratividade, não há como alterar o script. A história contada por Bill está errada. Porém, ele é o vencedor, o proprietário do show e tem nos bastidores os controladores do dinheiro que, em última instância, ditam as regras. Querendo ou não, o mito está impresso e assim continuará. De um lado, há Sitting Bull afirmando que seu povo foi trucidado de forma desumana e desigual; do outro há um patético personagem na desconfortável representação do espírito estadunidense, recoberto por uma aura de heroísmo conquistada na luta contra uma gente passada à história como se fosse naturalmente vocacionada ao assassínio e à selvageria, sem possibilidades de ter lugar reservado no mundo dito civilizado.


Buffalo Bill (Paul Newman) e Halsey (Will Sampson) 


Enfim, cumpriu-se o vaticínio de Sitting Bull. O Presidente Cleveland de fato visita o Buffalo Bill's Wild West Show. Porém, de nada valeram as quebras de protocolo provocadas pelo líder Sioux e seu intérprete para conseguir uma audiência com o supremo mandatário da nação. Sequer permitiram que expressassem as reivindicações pretendidas, momento no qual o chefe revelaria a capacidade de se expressar em inglês. Rejeitado e desprezado por Cleveland, simplesmente deu-lhe as costas para não mais ser visto com vida. Devolvido à prisão, terminou assassinado numa mal explicada tentativa de fuga. Ainda assim, seu fantasma comparece nos momentos finais para se posicionar no papel de enigmático, mudo e inquieto ouvinte das desculpas esfarrapadas e pouco heróicas do conquistador. Bill delira por meio de palavras pomposas, carregadas de efeitos, mas totalmente ocas em sentido. O Sitting Bull membro do Buffalo Bill's Wild West Show teve o desprazer de ver mais uma vez como o vencedor branco e civilizado taxativamente se expressa diante daqueles a quem recusam a voz e o próprio direito de viver; que só poderiam ser utilizados nos papéis de coadjuvantes menores e subalternos de um espetáculo circense.


Buffalo Bill (Paul Newman) e Sitting Bull ( Frank Kaquitts)


Oeste Selvagem funciona em seus propósitos demolidores ao revelar as falsidades das fundações sobre as quais os Estados Unidos se ergueram e encontraram legitimação. Buffalo Bill, qual grande amálgama do espírito nacional, é muitas vezes visto como um tipo expropriado do seu próprio eu, e vocacionado aos papéis de embusteiro arrogante, palhaço vaidoso e vendedor de emoções baratas. O mito é impiedosamente apeado do pedestal e reduzido a pó. Altman devolve a dignidade aos índios como poucos cineastas revisionistas tiveram a ousadia de fazer. Porém, em seu todo, a peça cinematográfica não é das melhores. Talvez para melhor se distanciar do mito e facilitar o acerto de contas crítico, o cineasta ordenou uma composição que se perde em muitos planos abertos, que afastam totalmente os personagens do espectador. Há excesso de aridez e falta de emoção nesta importante visão iconoclasta de Buffalo Bill e da história estadunidense. Desse modo, a narrativa se torna monótona. Também há as repetições com propósitos enfáticos, que resultam em passagens redundantes e esticam o tempo de exibição além do razoável. Outro problema: o diretor já desprezava o personagem por antecipação e, aparentemente, fez um filme apenas para tripudiar sobre a lenda. Porém, até que ponto isso é justificável, por mais desprezível que fosse o Buffalo Bill histórico? Seria apenas um conjunto merecedor de escárnio em sua totalidade? Certamente, não foi por suas próprias determinações conscientes que o personagem se fez. Nenhum indivíduo teria tamanho poder. Há também as circunstâncias sociais e históricas envolvidas na consolidação de uma das conquistas mais sangrentas da história, em meio à qual William Frederick Cody encontrou os motivos que lhe deram sentido e o tornaram um tipo particular de homem, gostemos dele ou não. Porém, parece que o diretor toma a persona como uma construção que se basta nela mesma, desprovida de circunstâncias temporais e espaciais. Praticamente o reduz a uma abstração.


Bullfalo Bill (Paul Newman)


Evidentemente, como já aconteceu com outras produções iconoclastas do cinema estadunidense, Oeste Selvagem fracassou nas bilheterias. Provavelmente, não pelo simples motivo de atacar Buffalo Bill. Os anos 70 foram suficientemente desmistificadores e a esse processo o público estava fartamente habituado. Porém, para acertar Bill e o mito, Altman também mirou em toda uma coletividade ingênua e acrítica, que se contentava apenas com prazeres primários, propensa que estava a aceitar tudo que lhe fosse empurrado, ainda mais em belas embalagens. Obviamente, então, as plateias contemporâneas se viram espelhadas no simplismo dos conterrâneos que habitavam a América 100 anos antes. Isto foi fatal para o retorno mais generoso nas bilheterias.





Produção executiva: David Susskind, Dino De Laurentiis, Robert Eggenweiler, Tommy Thompson. Roteiro: Alan Rudolph, Robert Altman, com base na peça Indians, de Arthur Kopit. Produção associada: Scott Bushnell, Jac Cashin. Música: Richard Baskin. Direção de fotografia (cores): Paul Lohmann. Montagem: Peter Appleton, Dennis M. Hill. Desenho de produção: Anthony Masters. Direção de arte: Jack Maxsted. Decoração: Dennis J. Parrish. Figurinos: Anthony Powell. Maquiagem: Monty Westmore. Gerente de unidade: Les Kimber. Segundo assistente de direção: Rob Lockwood. Assistente de direção: Tommy Thompson. Arte cênica: Rusty Cox. Contrarregra: Dennis J. Parrish. Assistente de contrarregra: Graham Sumner. Assistente de decoração: Graham Sumner. Som: Chris McLaughlin, James E. Webb, Rob Young (não creditado). Edição de som: Richard Oswald, William A. Sawyer. Mixagem da regravação: Richard Portman. Efeitos especiais: Logan Frazee, Terry D. Frazee, John Thomas, Bill Zomar, Joe Zomar. Dublês (não creditados): John Forster, Greg Walker. Assistentes de câmera: Arthur Brooker, Robert Reed Altman (não creditado). Operadores de câmera: Edmond L. Koons, Jack L. Richards. Eletricista-chefe: J. Michael Marlett. Direção de fotografia do featurette: Peter Appleton (não creditado). (uncredited). Primeiro assistente de câmera: Ronald Vidor (não creditado). Assistente de figurinos: J. Allen Highfill. Guarda-roupa: Jules Melillo. Aprendizes de montagem: Stephen Altman, Mark Eggenweiler. Assistentes de montagem: Tony Lombardo, Tom Walls. Produtores na Broadway: Lyn Austin, Oliver Smith, Roger L. Stevens. Confecção do cinturão de Buffalo Bill: John Bianchi. Continuidade: John Binder. Apresentação: Dino De Laurentiis. Pesquisa: Maysie Hoy. Planejamento dos créditos: Dan Perri. Lutas: John Scott. Operador do titan boom: Norman Walke. Assistente de produção: Joe Thornton (não creditado). Efeitos especiais: Makeup Effects Laboratories (não creditado). Sistema de som: Lion's Gate 8 Track Sound. Personificação de índios e cowboys: Stoney Indian Reserve, Calgary Stampede. Serviços de produção: Cody Production Co. Sistema de mixagem de som: Stereo em 4 canais. Tempo de exibição: 123 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1992)