domingo, 6 de maio de 2018

O FASCINANTE, TERRÍVEL E APOCALÍPTICO UNIVERSO DO DR. HELLSTROM

Documentários sobre insetos e aracnídeos existem aos montes, principalmente em canais versados nas particularidades do mundo natural das TVs por assinatura. Há alguns anos os cinemas exibiram com relativo sucesso o francês Microcosmos (Microcosmos: le peuple de l'herbe, 1996), de Claude Nuridsany e Marie Pérennou. Encantou o grande público com a visão idílica e graciosa dos insetos encontrados nos jardins, prados e lagoas. É praticamente um contraponto romântico à terrível, inquietante e premonitória realização de 1971 a cargo de Walon Green — roteirista de Meu ódio será sua herança (The wild bunch), de Sam Peckinpah — e Ed Spiegel: o raro documentário dramatizado A crônica de Hellstrom (The Hellstrom chronicle). É apresentado e narrado pelo entomólogo interpretado pelo ator Lawrence Pressman, o Dr. Nills Hellstrom. Pesquisador fora do esquadro, pouco dado às exigências de objetividade e precisão do discurso científico, foi praticamente banido do mundo acadêmico ao assumir a apostólica missão de alertar o público, com todas as tintas, sobre o papel reservado aos insetos no futuro do planeta. Os seres humanos estão previamente derrotados. Não herdarão a Terra e disso podem ser responsabilizados. Ficção, antecipação e realidade se misturam na pregação do Dr. Hellstrom enquanto câmeras de alta definição invadem os aspectos mais recônditos de cupinzeiros, formigueiros e colmeias para tratar da resistência, plasticidade e vocação à sobrevivência dos insetos frente às mais variadas catástrofes e ameaças humanas. Aranhas, escorpiões e plantas carnívoras também são considerados. Porém, os bichinhos de seis patas têm primazia quase absoluta. São ampliados a ponto de serem captados em fascinantes e nítidos closes. O que se vê não é bonito: a luta pela vida nas dimensões mais cruas. Espectadores facilmente impressionáveis podem perder o sono durante dias, como aconteceu comigo ao ser surpreendido por A crônica de Hellstrom em 1974, quando escrevi a apreciação a seguir.





A crônica de Hellstrom

The Hellstrom chronicle

Direção:
Walon Green, Ed Spiegel
Produção:
Walon Green
Wolper Pictures
EUA — 1971
Elenco:
Lawrence Pressman e os não creditados Conlan Carter, Ian McShane (cenas de arquivo), Suzanne Pleshette (cenas de arquivo).



O diretor Walon Green


Sem o melhor a fazer, resolvi ver A crônica de Hellstrom em plena semana útil. Nada sabia a respeito. O cartaz, pouco atraente, não mobilizou a atenção. Pareceu filme de ficção científica. Como apreciador do gênero, pensei: menos mal. Surpreendentemente, revelou-se rara e hipnótica experiência. O fascínio também decorreu de momentos apavorantes, terrivelmente reais. Facilmente impressionável, tive prejudicadas as noites de sono pelos dias seguintes. Muito depois, soube: a realização de Walon Green — roteirista e autor da história de Meu ódio será sua herança (The wild bunch, 1969), de Sam Peckinpah — em parceria com Ed Spiegel mereceu prêmios e se fez preferida por reputados entomólogos em vista das verdades científicas expostas e especulações no mínimo arriscadas quanto ao futuro do planeta, da humanidade e, principalmente, dos resistentes e plásticos insetos.


O filme e a direção fizeram jus, em 1971, ao Grand Prix Technique no Festival de Cannes e, no ano seguinte, ao Oscar de Melhor Documentário e Flaherty Documentary Award do British Academy Film Awards (BAFTA). Em 1972, David Seltzer foi indicado ao prêmio de Melhor Roteiro Dramático Original do Writers Guild of America.


Aparentemente, A crônica de Hellstrom é documentário. Porém, a participação do ator Lawrence Pressman na pele do divertido narrador e fictício entomólogo Nills Hellstrom expande as limitadas fronteiras da classificação genérica. Apesar de não tratar apenas de insetos — plantas carnívoras, aranhas e escorpiões também são mostrados —, estes recebem o grosso das atenções. O personagem, misto de cientista e divulgador, faz, de início, uma abordagem darwiniana da evolução das espécies e também trata poeticamente da criação pelo prisma bíblico-religioso. Porém, logo abandona as veleidades para afirmar bombasticamente: “A Terra não foi criada pela gentil carícia do amor, mas por brutal violência da violação”. Acrescenta: somente a superficial percepção da existência aceitaria a ideia de uma natureza idílica. Logo a câmera prescruta gramados, superfície do solo, ares, árvores, amontoados de rochas, restos de construção, cupinzeiros e formigueiros para revelar a brutal aspereza da luta pela vida em patamares quase inacessíveis à observação humana. O que se vê não é bonito: ataques, emboscadas, desmembramentos, perfídias e matanças friamente cometidas por criaturas em tudo mais adaptadas na luta pela sobrevivência. Parecem saber — apesar de despidas de qualquer traço de racionalidade — que viver não é fritar bolinhos. Durante a exposição, Hellstrom pergunta: Quem herdará a Terra? O homem, considerado superior e preferencial, apoiado em tecnologias e princípios morais? Ou o inseto insignificante, simplesmente moldado a viver por viver?


Lawrence Pressman interpreta o entomólogo Dr. Nills Hellstrom

O close-up de uma abelha


A partir daí começa um show deliciosamente exagerado, engenhoso e repleto de dramaticidade. Descreve em tons proféticos a trajetória dos minúsculos espécimes de seis patas ao longo de aproximados 300 milhões de anos e o faz nos seguintes termos: “A cada geração novas experiências moldam esses seres em espectros ilimitados, praticamente inimagináveis”. Nills Hellstrom chama para si a missão algo apostólica de espalhar a “boa nova” que desbanca o ser humano do topo do pedestal para substituí-lo por organismos considerados desprezíveis. Estes, apesar de tanta diferenciação e especialização, agem em uníssono em prol da sobrevivência grupal. Comparativamente, o homem individualista, egoísta e fratricida não terá condições de sobreviver como espécie diante de uma hecatombe nuclear ou pelo impacto de um corpo celeste de grandes proporções.


Este filme incomum tem em Nills Hellstrom mestre de cerimônias dos mais inusitados, a começar pelo modo como se apresenta. Não é um acadêmico no sentido estrito. Ao contrário, é um inconformado pesquisador pouco dado às objetividades científicas. Foi banido dos círculos oficiais. Perdeu financiamentos, apoio de colegas e amizades desde que assumiu a tarefa de divulgar a verdade sobre os insetos e o papel a eles reservado no porvir do planeta.


O cupinzeiro, colônia de térmitas


Com ênfase, Nills Hellstrom destaca as principais razões da ameaça. Residem no próprio homem, incapaz de lidar com o meio no qual vive. Para combater insetos e mais pragas que destroem alimentos e transmitem incontáveis moléstias, envenena a atmosfera e cursos d’água, desmata e desertifica. Torna a Terra inviável à própria sobrevivência. Enquanto isso, hexapodas e octópodes são capazes de se adaptar e sobreviver em condições às mais adversas. Desenvolvem rápida resistência aos mais diversos defensivos. Enquanto os homens destroem o planeta no esforço vão e paradoxal de dominá-lo, os insetos herdarão tudo o que restar. Em caso de sobrevivência a uma conflagração nuclear de alcance global, Hellstrom afirma: os seres humanos necessitarão de um a dois milhões de anos para recuperar o contingente populacional e ganhos civilizatórios perdidos. Comparativamente, os insetos levariam apenas três semanas. Ilustra a possibilidade ao disparar potentes jatos d’água contra um formigueiro. De início, provoca destruição de aparência irremediável. Na realidade, não passa de simples percalço. Tudo será devidamente reconstruído em pouquíssimo tempo. DDT e outros pesticidas apenas causaram degradação ambiental pela morte colateral de variados outros seres: pássaros, as utilíssimas e frágeis abelhas etc. Porém, gafanhotos e outras pragas imediatamente aprendem a conviver com resistência renovada às ameaças.


Por outro lado, graças aos sentimentos e raciocínio, os seres humanos não se oferecem olimpicamente ao sacrifício pelo bem de todos. Já os insetos não temem a morte quando se trata da perpetuação de suas comunidades. Numa colmeia, os zangões são úteis apenas para fecundar a rainha. Feito isso, são despejados e morrem de fome. Se permanecessem nas colônias, seriam apenas consumidores parasitários de recursos. Os insetos têm comportamento altamente mecanizado, imediato e instrumentalizado. Cumprem papéis aos quais foram geneticamente moldados, sem delongas e considerações. Da mesma forma as aranhas: o macho da viúva-negra é imediatamente imobilizado pela fêmea ao terminar a fecundação. Será embalado e preservado para alimentar os filhotes prontos a nascer.


Abelha em polinização

  
Diz Hellstrom: insetos e aracnídeos são programados para agir em nome do todo ou da sobrevivência da espécie. Desse modo, são equipados com algo parecido a uma inteligência coletiva consubstanciada na total capacidade de trabalho especializado e em instintos os mais afiados. Com tais características, travam luta surda e incansável pelo domínio do planeta. Mais que animais sociais, são como milagres de engenharia com seus precisos aparatos de caça, combate e defesa, além de todos os cuidados necessários para garantir segurança aos herdeiros. É algo cientificamente sabido. Mesmo assim, Hellstrom faz questão de confirmar com a simples e catastrófica intervenção em uma colmeia. Removeu a rainha. Com a vacância, as operárias logo se mobilizam. Convertem simples estágios larvais em potenciais candidatas ao trono pela injeção de geleia real. Com o nascimento da primeira rainha, as demais possibilidades são destruídas. Zangões também são criados e enviados para fecundar a nova majestade em voo nupcial. A seguir, ela terá por toda a vida a incumbência de garantir a produção de ovos para assegurar o futuro da colmeia. Será alimentada pelas operárias e protegida por guardiões prontos a repelir ataques potencialmente lesivos de invasores externos quais formigas e vespas. Idêntico comportamento em prol da sobrevivência grupal é percebido em cupinzeiros e formigueiros.


A sequência final, reservada às africanas formigas-correição, é assombrosa de tão terrível e reveladora. Também não deixa de ser fascinante vê-las em ação, como se marchassem indefinidamente para algum lugar misterioso enquanto destroem e devoram toda a vida que encontram à frente, inclusive animais de grande porte. Atravessam volumosos cursos de água graças às pontes e elevatórias improvisados pelos corpos de semelhantes dispostos ao supremo sacrifício pelo bem da coletividade.


As formigas-correição em franca atividade sobre um lagarto...

...e às voltas com os restos de uma borboleta.

  
Tipos variados de insetos percorrem a tela em atividades típicas que envolvem nascimento, alimentação, reprodução e morte. O filme é um espetáculo recheado de macro-visões de capturas e atos inclementes de esquartejamento e devoramento. Pinças, ferrões, garras, presas e patas são vistas em ação pelos mais variados ângulos. O funcionamento de colmeias, cupinzeiros e formigueiros é coberto nos mínimos detalhes, com todas as etapas de desenvolvimento dos seres: dos ovos às larvas e aos estágios adultos. Batalhas de morte entre formigas, o percurso completo de traças, o curto estágio vital de apenas 17 horas de borboletas desde a última metamorfose, perigosos louva-a-deus no ataque, a defesa dos bichos-pau, besouros lutando pela vida, formigas atacando lagartos, gafanhotos ameaçando o voo de aviões pulverizadores... Os aparentemente simples e primitivos insetos — e seres com eles confundidos — são mostrados em variados níveis de exigência dados pela programação instintiva. O plano final, premonitório segundo as intenções do filme, exibe ameaçador e vitorioso besouro de chifre filmado contra a crepuscular luz do sol. Praticamente encobre com o frontal aparato de defesa a imagem alaranjada do astro-rei. É uma tomada para impressionar e coroar a realização com o devido impacto.


Os instantes finais de A crônica de Hellstrom


A crônica de Hellstrom está entre os melhores documentários dramáticos sobre o mundo natural. Embala na justa medida a ficção com o factual. Para aguçar o interesse, cenas de filmes que se valeram de insetos são inseridas: A selva nua (The naked jungle, 1954), de Byron Haskin; Enquanto viverem as ilusões (If it's Tuesday, this must Be Belgium, 1964), de Mel Stuart; e o seminal O mundo em perigo (Them!, 1954), de Gordon Douglas. Walon Green e Ed Spiegel — este dirigiu apenas as sequências com o Dr. Hellstrom — entregaram um produto informativo, educativo, perspicaz e visualmente deslumbrante.


As imagens foram obtidas por câmeras especiais de alta velocidade e definição. Desvendaram a intimidade das colonias e observaram os dados mais prosaicos de existências que, no mais das vezes, passam despercebidas. Muitas imagens são nítidos e impressionantes close-up de curiosas e pouco glamourosas faces. A abertura se vale de um fantástico zoom iniciado na elevada varanda de um prédio em New York e encerrado nos níveis inferiores de um gramado do Central Park. Aí, diligentes formigas estão entregues à labuta cotidiana, indiferentes e invisíveis aos indivíduos que ali passam e descansam.


O Dr. Nills Hellstom (Lawrence Pressman) e a ampliação de uma de suas assustadoras criaturas


Lalo Shifrin compôs uma música à base de frenéticas vibrações de baterias e cordas. Obteve acordes que reproduzem os sons ampliados dos insetos. Praticamente recriou uma natureza para a grandeza do cinema, feita de rumores sinistros que lembram terríveis previsões apocalípticas.


Vespas


A companhia produtora Wolper Pictures, do renomado David L. Wolper, teve proeminência na geração de documentários de qualidade durante os anos 60. O agricultor entrevistado por Nills Hellstron é, na verdade, um personagem fictício interpretado pelo não creditado Conlan Carter.




Música: Lalo Schifrin. Roteiro: David Seltzer. Produção associada: Sascha Schneider, Linda May Strawn (não creditada). Produção executiva: David L. Wolper. Direção de Fotografia (cores): Helmuth Barth, Walon Green, Vilis Lapenieks (cenas com o Dr. Hellstrom). Montagem: John Soh. Maquiagem: Lawrence Abbott, Scott Hamilton. Gerente de unidade: Andy Babbish. Supervisão da pós-produção: George Fredrick. Executivo responsável pela produção: Conrad Holzgang. Edição de efeitos sonoros: Charles L. Campbell. Gravação de som: David M. Ronne. Fotografia adicional: Ferdinando Armati, J. M. Boufle, Tony Coggans, James Fonseca. Eletricista-chefe: Ross A. Maehl, Heinz Sielmann, Gerald Thompson. Direção de fotografia das sequências com insetos: Ken Middleham. Chefe de iluminação das sequências com o Dr.Hellstron: Glenn Roland. Assistente de câmera: Bob Stein. Supervisão musical: Jack K. Tillar. Assistente de produção: Diane Hovanesian. Continuidade: Malcolm Leo. Produção associada: Marge Pinns. Agradecimentos especiais a: Gérald Calderon, Conlan Carter, Jim Dannaldson, Philip Leakey, Lloyd Martin, John Moore, Lenita Moore, Jim Robertson, Monty C. Ruben, Linda May Strawn, Mel Stuart. Reconhecimentos da produção a: Anti-Locust Research Center (Londres), California Institute of Technology (Caltech), Entomological Society of America, Griffith Observatory, Lorquin Entomological Society, National Museums of Kenya, U. S. Atomic Energy Commission, University of California, Los Angeles (UCLA). Tempo de exibição: 90 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1974)