domingo, 8 de abril de 2018

KING VIDOR NAUFRAGA NAS PARADISÍACAS E OUSADAS ÁGUAS DO PACÍFICO

Com Ave do paraíso (Bird of paradise, 1932) o notório produtor David O. Selznick pretendeu aproveitar o poder de atração de filmes como O homem perfeito (Moana, 1926), de Robert e Frances Flaherty, e Deus branco (White shadows of the South Seas, 1928), de W. S. Van Dyke. Também se notam influências de Tabu (Tabu: a story of the South Seas), última e demorada realização de Friedrich Wilhelm Murnau, iniciada em 1929 e concluída após dois anos. Ave do paraíso é o início das relações nada pacíficas entre Selznick— produtor executivo — e o diretor escolhido para dar forma ao projeto: King Vidor, um dos mais importantes do cinema estadunidense. Com temática e situações consideradas moralmente ousadas para a época, a realização se beneficiou de um contexto de liberdade criativa. Dentro em pouco entraria em vigor a rigorosa censura firmada pelo Código Hays ou Motion Picture Production Code. Cenas como as do corpo nu de Dolores del Rio em evolução sob as águas e relações amorosas entre brancos e personagens de cor seriam sumariamente proscritas da corrente majoritária do cinema estadunidense até meados dos anos 60. A exposição generosa das formas naturais da atriz levou Orson Welles a tratá-la como "O maior ideal erótico para qualquer homem de sangue vermelho”. Por outro lado, tornou-se um dos motivos para o surgimento da aguerrida Legião Católica da Decência, em 1933. Apesar de provocar tanto frisson para a época, é uma produção repleta de desacertos — a maioria decorrente das caprichosas imposições de David O. Selznick — que fracassou nas bilheterias. Ave do paraíso é o primeiro filme sonoro acompanhado por trilha musical completa, também pioneira no lançamento em disco. Assinala a estreia do ator Lon Chaney Jr., creditado como Creighton Chaney — nome verdadeiro. Busby Berkeley coreografou as danças tribais. Segue apreciação firmada em 1996.






Ave do paraíso

Bird of paradise

Direção:
King Vidor
Produção:
King Vidor
Radio Pictures
EUA — 1932
Elenco:
Joel McCrea, Dolores del Rio, John Halliday, Richard “Skeets” Gallagher, Bert Roach, Creighton “Lon Chaney Jr.” Chaney, Wade Boteler, Arnold Gray, Reginald Simpson, Napoleón Pukui, Agostino Borgato, Sofia Ortega.



O diretor de fotografia Edward Cronjager e o realizador King Vidor nas filmagens de Ave do Paraíso



Ave do paraíso ― exibido na televisão brasileira como O pássaro do paraíso ― tem produção executiva de David O. Selznick e é parte do breve período em que esteve à frente da Radio Pictures ― RKO ainda não era parte do nome da empresa. Provavelmente, é o início da conhecida e tempestuosa relação que teria com King Vidor.


Vidor está entre os realizadores arregimentados por Selznick para O mágico de Oz (The wizard of Oz, 1939). Os demais são George Cukor, Mervyn Le Roy, Norman Taurog e Victor Fleming ― o único creditado. Após cinco anos, terá a autoridade questionada inúmeras vezes durante a realização do rocambolesco western Duelo ao sol (Duel in the sun). Selznick sempre se impunha como único autor dos filmes produzidos. Os diretores apenas davam forma aos seus desígnios. Provavelmente, Alfred Hitchcock foi o único a contornar tais dificuldades com alguma desenvoltura.


Imagem publicitária: Dolores del Rio como Luana e Joel McCrea no papel de Johnny Baker


Vidor cumprira exitosa carreira durante o período silencioso, quando dirigiu alguns dos maiores clássicos do cinema estadunidense: O grande desfile (The big parade, 1925) e A turba (The crowd, 1928). Em 1929, com o desmistificador Aleluia (Hallelujah), transitou magnificamente para o sonoro. Nesse ano atendeu ao chamado de Selznick para dirigir Ave do paraíso. Inúmeros problemas decorrentes das desmedidas ambições do produtor adiaram a conclusão do projeto para 1932.


Provavelmente, Selznick tinha em mente recentes filmes passados nas ainda relativamente virgens ilhas do Pacífico ― principalmente O homem perfeito (Moana, 1926), dirigido por Robert J. Flaherty em parceria com a esposa Frances H. Flaherty, e Deus branco (White shadows of the South Seas, 1928), iniciado por Robert J. Flaherty e finalizado por W. S. Van Dyke — quando idealizou Ave do paraíso. No mesmo 1929, Friedrich Wilhelm Murnau iniciou Tabu (Tabu: a story of the South Seas)[1] ― terminado em 1931. É a história de amor proibido entre nativos de Bora Bora. Enquanto esses títulos manifestavam alguma preocupação etnográfica, Selznick mirava apenas o caráter exótico oferecido pelas temáticas às platéias ocidentais.



Acima e abaixo: Luana (Dolores del Rio)


Desenrolado nas ilhas havaianas, Ave do paraíso é um conto de amor impossível com final trágico. Acompanhado de amigos, o estadunidense Johnny Baker (McCrea) se aventura pela região e se apaixona pela nativa Luana (del Rio), filha do chefe (Pukui) de tribo local. Resolve permanecer na região após a partida do grupo e entra em choque com os costumes locais. Os anciãos tentam impedir o idílio, pois a jovem está prometida a um príncipe. O rompimento da tradição acarretará nos horrores de uma maldição, segundo a crença.


Apesar das admoestações, Johnny sequestra Luana no momento em que era conduzida ao matrimônio. Refugiam-se em ilha deserta, trocam juras de amor e planejam o futuro. Encantado com a situação, pretende levá-la para o meio urbano repleto de “comodidades e maravilhas”. Ao fim, suspira: “O que é a civilização perto de você?”


Luana (Dolores del Rio)

  
Os instantes de felicidade são fugazes. Luana é apanhada. Acusada de profanação, será sacrificada ao irado deus Pele ―um vulcão ativo. O salvamento de Johnny fracassa. Aprisionado, é condenado a igual fim. Quando tudo parecia perdido, salvadores brancos entram em cena e dispersam os nativos com armas de fogo. Os amantes são conduzidos ao navio. Recuperado dos ferimentos, Johnny se vê diante do pai de Luana e inúmeros guerreiros dispostos a tudo. A devolução da jovem é reclamada. Temerosa com a possibilidade de um sangrento desfecho, resolve retornar aos seus. O personagem vivido por Joel McCrea é deixado aos delírios provocados por uma paixão não consumada.


Próximo do fim há o impactante plano de Luana com o olhar fixado na montanha que serve de moradia ao furioso e implacável Pele. Ave do paraíso termina com a observação premonitória ― ainda mais nos atuais tempos de globalização acelerada ― de um companheiro de Johnny: “Leste é leste, oeste é oeste; nunca se encontrarão!”.



Acima e abaixo: Luana (Dolores del Rio) e Johnny Baker (Joel McCrea)


Ave do paraíso significou tremendo mau passo nas carreiras de King Vidor e David O. Selznick. A pretendida superprodução resultou em estupendo naufrágio orçado em um milhão de dólares. Tudo deu errado, da pré à pós-produção. As filmagens em locações desandaram por quase um mês, prejudicadas pela instabilidade do tempo e falta de roteiro. Enquanto este era elaborado, filmava-se ao sabor das circunstâncias e improvisações de Selznick.


Luana (Dolores del Rio) e Johnny Baker (Joel McCrea)


A equipe retornou a Hollywood sem noção alguma da forma e andamento a atribuir à realização. A boa mão de Vidor fez o que pode. Preencheu as sequências com uma atmosfera sensual, para a qual muito contribuiu a fotografia de tons expressionistas de Clyde de Vinna, Edward Cronjager e Lucien N. Andriot. O espectador de agora, com os olhos voltados à época da realização, pode imaginar a sensação provocada nas puritanas platéias estadunidenses diante do corpo generosamente despido de Dolores del Rio a evoluir sob as águas. Porém, o que sobra em exotismo falta em força dramática.


O que se vê, descontado o previsível envelhecimento estético do filme, é de matar. O papel da princesa nativa não é adequado à atriz mexicana. Entre tantas esquisitices há uma sequência simplesmente ridícula: os prisioneiros Luana e Johnny unidos na oração do Pai Nosso ― como ela aprendeu rápido! ― antes do frustrado sacrifício. Isso sem falar no redemoinho marinho que por pouco não engoliu o herói.


Pelo menos o final não deixa tanto a desejar. Para o bem de todos e da verossimilhança, Luana ― pressionada pelos costumes e tradições de sua gente; também por vocação altruísta ― se entrega ao sacrifício. Essa decisão faz mais sentido que as concessões aos encantos abstratos do amor e de uma etérea imagem de civilização.


Luana (Dolores del Rio)


Em tempos de “correção política” uma cena mexe com a sensibilidade das plateias: como não lamentar o destino da pobre tartaruga arrastada por Johnny do mar para a praia? Ao perceber que o lugar não oferecia segurança, simplesmente abandonou o pobre quelônio de pernas para o ar, pronto a morrer esturricado pelo sol.





Roteiro: Wells Root, Wanda Tuchock, Leonard Praskins, com base em peça de Richard Walton Tully. Música: Max Steiner. Direção de arte: Carroll Clark. Gravação de som: Clem Portman. Montagem: Archie F. Marshek. Efeitos fotográficos: Lloyd Knechtel. Direção de fotografia (preto e branco): Clyde de Vinna, Edward Cronjager, Lucien N. Andriot. Coreografia: Busby Berkeley (não creditado). Produção executiva: David O. Selznick. Direção de elenco: Lynn Shores (não creditado). Assistente de direção: H. Bruce Humberstone (não creditado). Efeitos especiais (não creditados): Harry Redmond Jr., Harry Redmond Sr. Fotografia de cena: Robert Coburn (não creditado). Operador de câmera: Eddie Pyle (não creditado). Assistente de direção de elenco: Harvey Clermont (não creditado). Orquestração (não creditada): R.H. Bassett, Bernhard Kaun. Direção musical: Max Steiner (não creditado). Sistema de mixagem de som: RCA Photophone System. Tempo de exibição: 80 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1996)


[1] Robert J. Flaherty colaborou no roteiro.