domingo, 26 de agosto de 2018

DESPOTISMO FEUDAL E VINGANÇA NA RÚSSIA ADAPTADA DE LÉRMONTOV

Pelas minhas recordações, este filme alcançou relativo sucesso de público quando estreou nos cinemas brasileiros em meados dos anos 70. Atualmente, está riscado das lembranças gerais. É ambiciosa coprodução entre Itália e Inglaterra: Um verão russo (Il giorno del furore/Fury/One Russian Summer, 1973). Provavelmente, é o único trabalho para cinema de Antonio Calenda — obscuro diretor e roteirista de teatro com algumas passagens pela televisão. O roteiro de Edward Bond — com contribuições do realizador e Ugo Pirro — adapta a inacabada novela Vadim do poeta, romancista, aventureiro, provocador e hussardo Mikhail Lérmontov. É um dos grandes nomes do romantismo literário russo. Apesar de falecido precocemente em 1841, com apenas 27 anos, deixou vasta produção literária iniciada na pré adolescência. Diante das dificuldades de filmar na Rússia, a produção aceitou às facilidades oferecidas pela Bulgária. Corre o ano de 1774. A déspota esclarecida Catarina, a Grande está no poder. Os campos são dominados pela nobreza feudal ancorada na posse de grandes domínios territoriais e sobreexploração do trabalho servil. A vultosa revolta camponesa liderada por Iemelian Pugachev está em curso e gera inquietação. À propriedade de Palizyn (Oliver Reed) chega o forasteiro Vadim (John McEnery), interessado tanto no senhor como na filha adotiva desse, Irene (Carole André). Uma história de vingança, que escapa ao controle, está para acontecer. A realização tem muitos pontos frágeis, principalmente no roteiro, nas opções privilegiadas pela direção e interpretação de Oliver Reed. Claudia Cardinale tem pequena participação como Anya, amante de Palizyn. Segue apreciação escrita em 1975.






Um verão russo

Il giorno del furore/Fury/One Russian Summer

Direção:
Antonio Calenda
Produção:
Marcello Danon
Da. Ma. Produzione (Roma), Lowndes Productions (Londres)
Itália, Inglaterra — 1973
Elenco:
Oliver Reed, Claudia Cardinale, John McEnery, Carole “Carol” André, Raymond “Ray” Lovelock, Giuseppe Pisegna, Adalberto Rossetti, Paola Tedesco, Raffaele Uzzi, Zora Velcova, Sergio Doria.



O diretor Antonio Calenda



Esta coprodução anglo-italiana é, até onde se sabe, a única incursão do italiano Antonio Calenda no cinema. Tem alguma experiência na direção de minisséries para a TV, inclusive como roteirista. Seu forte é o teatro. Isto é logo confirmado pelas opções interpretativas concedidas aos atores, principalmente Oliver Reed.
                                                  

Um verão russo é uma saga passada em 1774 nas estepes do país dos czares sob o mandato de Catarina, a Grande. Trata de despotismo feudal e vingança. Na impossibilidade de utilizar os cenários naturais da Rússia, a produção contou com as facilidades da agência estatal de cinema da Bulgária. A cor local e a topografia das locações são originalíssimas e próprias. Somente com muito esforço passam, aos olhos do espectador com alguma noção de geografia, pelas planícies e campinas nas quais transcorre a ação adaptada do inacabado livro Vadim, escrito em 1834 pelo poeta e romancista Mikhail Lérmontov.


Oliver Reed no papel de Palizyn

John McEnery como Vadim

Carole André faz Irene


Desconheço o texto original. Assim, não posso considerar objetivamente as opções do roteirista — o expert Edward Bond, responsável pelo brilhante script que permitiu a Nicolas Roeg a realização do inquietante e único A longa caminhada (Walkabout, 1971). Porém, transparece um problema: a adaptação passa a impressão de ser um híbrido dos mais inconsistentes. É dramaticamente frágil. Em alguns momentos faz clara opção pelo exagero e sensacionalismo. Provavelmente pelo fato de receber acréscimos bem diferenciados, tanto do diretor como de Ugo Pirro — autor dos primorosos guiões de O jardim dos Finzi Contini (Il giardino dei Finzi Contini, 1970), de Vittorio De Sica, e Investigação sobre um cidadão acima de qualquer suspeita (Indagine su un cittadino al di sopra di ogni sospetto, 1970), de Elio Petri. Sobre as origens dessas falhas só se pode conjecturar, infelizmente.


Um verão russo se vale da escala épica permitida por cenários abertos e majestosos, figurinos suntuosos bem representativos e interpretações repletas de arroubos, neste caso a de Oliver Reed — geralmente além do tom convenientemente desejável. O ator tem esse problema. No entanto, pode-se, provavelmente, creditar à direção teatral de Antonio Calenda a permissão para ultrapassar o sinal, principalmente nos momentos dramaticamente carregados ou dominados pelo histrionismo.


Palizyn (Oliver Reed), Natalya (Zora Velcova) e Vadim (John McEnery) 


Em 1774 os senhores feudais russos enfrentam a grande rebelião camponesa liderada por Iemelian Pugachev. Sobre esse instável pano de fundo o estranho Vadim (McEnery) consegue trabalho na propriedade do caprichoso boiardo Palizyn (Reed). Será, ao menos nas aparências, um servo privilegiado — com poderes para se passar por capataz da pobre massa camponesa que sustenta o fausto senhorial. Porém, imediatamente é obrigado a reconhecer a condição subalterna ao ser literalmente identificado a um cão fiel. Os ditames e vontades do patrão são cega e diligentemente atendidos por Vadim, por mais aviltantes que sejam. Entretanto, observa o amo atentamente. Procura conhecê-lo em seus pontos fracos. Enquanto isso, o dia a dia do feudo é conduzido de modo a impedir dissabores com os trabalhadores. Pequenas benesses são distribuídas. Mas também há as punições emanadas de um código implacável, à base de açoites e vis encarceramentos.


O ponto fraco de Palizyn é a jovem e virginal filha adotiva Irene (André), por quem está apaixonado e disposto a repudiar a esposa Natalya (Velcova). No auge de um conflito fundiário, a enteada, quando era bebê, teve a família massacrada por ordem do despótico padrasto. Dela se aproxima Vadim. Revela que são irmãos e está para desencadear uma vingança. Aguarda o momento oportuno para agir. Apóia-o um contingente rebelde oculto na floresta.


Palizyn (Oliver Reed) e Yuri (Raymond Lovelock)


Os eventos se precipitam quando Irene recusa as investidas amorosas do padrasto e se revela apaixonada pelo herdeiro Yuri (Lovelock), chegado recentemente de Moscou. Contrariado, Palizyn sai em caçada e ao encontro da amante Anya (Cardinale) — com quem tem Vazla (Pisegna), filho limítrofe. Com a ausência do senhor e as más decisões de Natalya, Vadim instiga os servos à insurreição. Um banho de sangue generalizado atinge a nobreza e destrói a propriedade. Yuri foge com Irene, em busca do pai. Infelizmente, a sorte está lançada. Nos desdobramentos da tragédia, Vadim perde o controle das operações. É obrigado a encarar a inutilidade e o vazio da vingança que tanto planejara. Tudo lhe escapa entre os dedos.


Anya, interpretada por Claudia Cardinale


Os melhores momentos são reservados ao final, com as trágicas e funestas consequências do assédio de Palizyn a Irene e do conflito entre pai e filho. A Vadim, frustrado pela perda de tudo que conferia sentido à existência, só restam os lamentos do fracasso.



Acima e abaixo: Anya (Claudia Cardinale) e Palizyn (Oliver Reed)


O tema musical de Riz Ortolani e a direção de fotografia de Alfio Contini são corriqueiros. Felizmente, no tocante aos hábitos e costumes, as recriações conferem com as leituras de tratados históricos. Oliver Reed e John McEnery crescem no epílogo. A lamentar que um personagem como Vadim, diante da missão a que se propôs, tenha pouco espaço para se mostrar manipulador na enganosa relação firmada com Palizyn.





Direção de fotografia (Todd-AO 35, Eastmancolor): Alfio Contini. Roteiro: Edward Bond, Antonio Calenda, Ugo Pirro, com base na novela Vadim, de Mikhail Lérmontov. Música: Riz Ortolani. Desenho de produção: Franco Nonnis. Decoração: Dario Micheli. Figurinos: Danilo Donati. Montagem: Sergio Montanari. Edição de som: Ian Crafford, Derrick “Derek” Leather. Assistente de direção: Nello Vanin. Assistente da direção de som: Brian Sinclair. Operador de boom: John Stevenson. Assistentes de câmera: Alpinolo Diamanti, Giuseppe Izzo, Tarcisio Diamanti, Ettore Duranti, Maurizio Lucchini, Mario Maggi. Eletricista-chefe: Domizio Ercolani. Eletricistas: Antonio Leurini, Antio Ventimiglia. Operador de câmera: Sandro Tamborra. Guarda-roupa feminino: Diane Jones. Continuidade: Jane Buck. Secretaria da produção: Jennie Cornwall-Walker. Direção de diálogos: Robert Rietty. Apresentação: Harry Saltzman. Agradecimentos da produção a: Balkan Airlines, Autoridades cinematográficas da Bulgária. Publicação musical: CAM. Serviços de pós produção sonora: Fono Roma. Empresa de confecção de vestuários: Sartoria Farani S.t.L. Sistema de mixagem de som: Westrex Recording. Tempo de exibição: 118 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1975)