domingo, 7 de abril de 2013

VISÃO IMPLACÁVEL DOS RESTOS DO OLD SOUTH, “BABY DOLL” ENFURECE O PURITANISMO E NOMEIA O TRAJE

Boneca de carne (Baby Doll, 1956) tem roteiro apoiado em duas peças de Tennessee Williams. A realização de Elia Kazan é geralmente considerada a melhor transposição de obra do dramaturgo para o cinema. O filme mexeu com os nervos da moral puritana dos EUA e a católica Legião da Decência o classificou como “obsceno”, “revoltante”, “moralmente repugnante” e “sugestivamente carnal”. Seus pontos fortes são o equilíbrio entre o drama e a farsa, a interpretação de Carroll Baker e a impiedosa descrição do decadente e irredutível Old South.





Boneca de carne
Baby Doll

Direção:
Elia Kazan
Produção:
Elia Kazan
Castle Hill Productions, Newtown Productions
EUA — 1956
Elenco:
Carroll Baker, Eli Wallach, Karl Malden, Mildred Dunnock, Lonny Chapman, Eades Hogue, Noah Williamson e os não creditados Rip Torn, R.G. Armstrong, Madeleine Sherwood, John S. Dudley, População de Benoit-Mississipi. 




Elia Kazan



The unsatisfactory supper e 27 wagons full of cotton, peças de um ato de Tennessee Williams, estão na base do roteiro que escreveu para Boneca de carne, décimo-quarto título dirigido por Elia Kazan. Excessivamente ousado para a época, mexeu com a consciência puritano-conservadora dos Estados Unidos e contribuiu para a gradativa falência das restrições impostas pelo Código Hays aos temas abordados pela produção cinematográfica do país de 1934 a 1967. Ao expirar, deu lugar ao atual sistema de classificação etária.


Antes mesmo do lançamento, a católica Legião da Decência — liderada pelo Arcebispo de Nova York, John Spellman —, não poupou munição contra o filme, baseada apenas na exposição do provocativo cartaz: a personagem Baby Doll Meighan (Baker), estirada sobre um berço, chupando o dedo e trajando displicentemente a peça daí em diante popularizada com sua alcunha. Foi o suficiente para a produção ser tachada de “obscena”, “revoltante”, “moralmente repugnante” e “sugestivamente carnal”. Na celebração de Natal, Spellman substituiu a tradicional homilia para ameaçar com inferno e excomunhão o fiel que visse Boneca de carne. Outros grupos se juntaram ao coro, inclusive a revista Time. Esta situou a realização de Kazan entre os “mais sujos” filmes americanos legalmente liberados. Piquetes e exortações impediram muitos cinemas de lançá-lo. Mesmo assim, a distribuidora Warner Brothers não se intimidou[1]. Hoje, passado quase meio século, é até difícil acreditar em tanta celeuma. Porém, para os padrões dos anos 50, Boneca de carne estava muito à frente de seu tempo.



Carroll Baker é Baby Doll

Como o roteiro é baseado em peças de Tennessee Williams, a ambientação só poderia ser no profundo e retrógrado Sul dos Estados Unidos. A região, que amargou a derrota na Guerra de Secessão é um cenário dominado pelo torpor da mais profunda sonolência. Tal sensação é reforçada pela jazzística trilha musical de Kenyon Hopkins — cujas pontuações remetem às canções de ninar — e pela direção de fotografia de Boris Kauffman — carregada de meios-tons de antigas e desbotadas imagens em preto-e-branco. Especificamente, os personagens se movimentam no condado de Tiger Tail, Mississipi, em momento contemporâneo ao da realização. A coloração espacial e humana lembra imagens do anterior Caminho áspero (Tobacco Road, 1941), de John Ford, e do posterior O pequeno rincão de Deus (God’s little acre, 1958), de Anthony Mann, com tramas também localizadas no Sul. A história combina drama, comédia, farsa e tragédia num contexto permeado de decadência, permissividade, sexualidade e sordidez. Percebem-se, da mesma forma, pontos de contato com ...E o vento levou (Gone with the wind, 1939), de Victor Fleming. Deste título, parece que o incerto “amanhã” da personagem Scarlett O’Hara (Vivien Leigh) se prolonga na insegurança do futuro de Baby Doll e sua lesada tia Rose Comfort (Dunnock).


Williams queria Marilyn Monroe como Baby Doll Meighan. Mas, desde o começo, Carroll Baker foi a acertada opção de Kazan. Muito dificilmente a preferida do roteirista poderia transmitir, com tanta convicção, a aparência inocentemente infantil, frágil, travessa, estúpida e tacanha estampada por Baker, já aos 25 anos, na interpretação da precocemente núbil Baby Doll. Monroe, dada a voluptuosidade que extravasa de sua compleição física, fugiria totalmente ao fenótipo esperado para a personagem.


Baby Doll é o terceiro personagem[2] interpretado por Carroll Baker no cinema e lhe marcaria para sempre a carreira. Seu desempenho é no mínimo corajoso, pela desenvoltura e credibilidade sugeridas ao descarregar, num corpo de criança mal entrado na adolescência, a carga erótica que descontrola por completo o carente e muito mais velho marido Archie Lee Meighan (Malden). A conveniência rege o casamento. Ela é herdeira dos restos de falida plantation de algodão. Foi, aos dezoito anos, oferecida em matrimônio pelo pai moribundo, mediante condição da qual ela religiosamente insiste em relembrar: a união só será consumada quando completar 20 anos. Até lá, Archie Lee deverá controlar a carência diante de uma esposa sempre provocativa em trajes menores e habituada a chupar o dedo enquanto dorme. Ainda por cima, toda Tiger Tail, dos brancos aos negros, conhece o tratado nupcial e os apuros de Archie Lee. Convertido em motivo de chacota, restam-lhe, como refrigério, a bebida e a furação de paredes para tentar observar a esposa despojadamente entregue ao sono sobre o berço do filho que, parece, nunca virá.


Baby Doll (Carroll Baker) - espionada pelo marido por um buraco na parede


Baby Doll (Carroll Baker) está disposta a prolongar a seca sexual de Archie Lee (Karl Malden)

Ao crash sexual se junta o econômico: Archie Lee está falido. Seu empreendimento de descaroçar algodão se encontra parado desde a chegada do empreendedor siciliano Silva Vacarro (Wallach) à cidade. O forasteiro controlou todos os negócios ligados à cotonaria. Sem dinheiro, Lee não cumpre as promessas de reformar a arruinada casa grande e honrar o pagamento dos móveis, logo tomados pelo fornecedor. Diante disso, a insatisfeita Baby Doll, às vésperas de completar 20 anos, está propensa a prolongar o período de seca do marido.


Desesperado, Lee ateia fogo à unidade beneficiadora de Vacarro. Este logo desconfia da autoria do crime. Diante do descaso das autoridades, relutantes em aceitar a denúncia de um forasteiro contra alguém da comunidade, resolve retaliar à moda siciliana. Com os caminhões lotados de algodão, recorre à unidade beneficiadora de Archie Lee e se acerca do seu mais precioso e inatingível bem: Baby Doll.


Vacarro, em trajes negros, eleva a temperatura erótica do filme em longa e ousadíssima sequência de sedução para os anos 50, armada à base de primeiros planos e com os personagens acomodados num balanço de jardim. A respiração do siciliano sobre o rosto de Baby Doll abala por completo a “falsa segurança” da mocinha imaculada, envolvida na pureza tão pouco inocente e fortemente atrativa de diáfanos trajes brancos. O tenso e forte “clima tropical” da sedução sobre o balanço dá lugar a uma brincadeira de gato e rato, orquestrada segundo o louco frenesi dos desenhos animados da Warner. Vacarro se entrega às estripulias cometidas por Patolino, Pernalonga e Frangolino para perseguir e assustar Baby Doll pelas dependências da casa. Chega ao cúmulo de cavalgar em ritmo feérico um cavalo de brinquedo, como se o personagem fosse, de fato, um selvagem garanhão vertendo talagadas de limonada ao sabor do blue Shame, shame, shame, interpretado por Smiley Lewis. Por fim, encurrala Baby Doll no sótão apodrecido da casa, obrigando-a a firmar um documento sobre algo que ela já desconfiava: a autoria do incêndio por Archie Lee.






Acima, ao centro e abaixo: Silva Vacarro (Eli Wallach) no jogo da sedução com Baby Doll (Carroll Baker)

Vacarro se dava por satisfeito. Mas não Baby Doll, temerosa de perder o lastro de segurança que, apesar de tudo, Archie Lee lhe proporciona. Agora, é ela que seduz Vacarro. Instala-o no berço que utiliza como leito. Daí em diante, o espectador que deduza sobre os acontecimentos. Quando os personagens são novamente mostrados, Baby Doll está sentada no chão, acariciando o sonolento Vacarro. A seguir, chega Archie Lee. Começa um jogo não muito claro de insinuações, desde o momento em que o personagem interpretado por Karl Malden vê a esposa descer as escadas e, logo atrás, o vitorioso Vacarro. Este aproveita a oportunidade para tripudiar sobre o oponente, que sente o peso da humilhação e da impotência a se prolongar durante o jantar. Até os animais parecem se aproveitar da situação. Incomodado pelo enigmático sorriso de Mona Lisa da mulher, Archie Lee se desespera. Reage tomando a decisão de despejar a patética, velha e desvalida Rose Comfort, tia de Baby Doll.


Por fim, Archie Lee apela aos tiros, chamando a atenção das autoridades. É preso diante das irrefutáveis evidências apresentadas por Vacarro. Este, havendo conseguido o que pretendia, deixa para trás as desamparadas Baby Doll e Rose Comfort. Até há pouco se dispusera a protegê-las. O filme termina com a personagem de Baker aparentando domínio da realidade pela primeira vez, comunicando à Tia Rose: “O remédio que nos resta é esperar o amanhã. Veremos, então, o que poderá acontecer”.


Boneca de carne costuma ser apontado como a mais feliz transposição de obras de Tennessee Williams ao cinema. Provavelmente, devido à feliz combinação de drama e comédia, com equilibrado trânsito para o farsesco. Por outro lado, não é encenação marcada pela pretensão de origem, tão comum à época, que submetia a linguagem do cinema a uma suposta superioridade dos textos teatrais, resultando muitas vezes em adaptações pedantes e falsas. De minha parte, as adaptações superiores de obras de Tennessee Williams são, por ora, Uma rua chamada pecado (A streetcar named Desire, 1951), de Elia Kazan, Gata em teto de Zinco Quente (Cat on a hot tin roof, 1958), de Richard Brooks — apesar de excessivamente contido na exposição do real problema que acomete o personagem vivido por Paul Newman —, De repente no último verão (Suddenly, last Summer, 1959), de Joseph L. Mankiewicz, e O doce pássaro da juventude (Sweet bird of youth, 1962), de Richard Brooks.


Acima de tudo, Boneca de carne é filme de atores amparados pela boa mão de um diretor capaz de lhes arrancar o melhor. É incrível a veracidade que Carroll Baker deixa transparecer. Sua Baby Doll, tão ignorante, sonolenta e despreparada para a vida, sequer tem noção do potencial desagregador da sexualidade que exala. O calvo e narigudo Karl Malden deixa sentir toda a frustração e infelicidade de Archie Lee. Impossível não sofrer com ele, principalmente quando chama, aos gritos, pela inatingível Baby Doll. Sabe-se que será incapaz, por exemplo, de se valer da força muscular e masculinidade de Marlon Brando clamando por Stella em Uma rua chamada pecado. Eli Wallach, estreando no cinema, oferece um Silva Vacarro a um só tempo crível em seus traços sedutores, cômicos e ameaçadores. Sua intervenção desestabiliza para sempre a monotonia insípida do mundo de Baby Doll e impede Archie Lee de saborear o doce final que a história lhe reservava. Por fim, há Mildred Dunnock como Tia Rose Comfort. Aparece pouco. Mas seu vulto esquálido, de olhos fundos, parecendo clamar por caridade, apropriando-se de guloseimas ofertadas aos doentes hospitalizados, é o retrato do acabado e esquecido Old South afundado em sua mal resolvida crise de autovitimização incorporada ao término da Guerra de Secessão. A personagem, que sequer existia no original de Williams, é um achado.



Mildred Dunnock como a Rose Comfort, tia de Baby Doll

Deliciosos são os comentários à base de expressões faciais e sorrisos maliciosos de figurantes negros em momentos marcantes do filme, principalmente quando resultam de testemunhos às crises de desespero decorrentes do desejo reprimido de Archie Lee. Mas, dessas participações, a melhor ilustra a condição estrangeira de Vacarro, quando o xerife (Hogue), pouco ligando à sua denúncia, pede publicamente para a garçonete negra Ginnie (participação não creditada) cantar I shall not be moved, especialmente dedicada ao siciliano.


Elia Kazan foi premiado com o Globo de Ouro pela Melhor Direção em Cinema. Eli Wallach recebeu o prêmio pela Melhor Revelação em Estréia do British Academy of Film and Television Arts (BAFTA).


Carroll Baker, Mildred Dunnock, Boris Kauffman e Tennessee Williams foram respectivamente indicados aos Oscar de Melhor Atriz, Melhor Atriz Coadjuvante, Melhor Direção de Fotografia em Preto-e-Branco e Melhor Argumento e Melhor Roteiro Adaptado. Tennessee Williams também foi nominado ao prêmio do Writers Guild of America pelo Melhor Roteiro Dramático para Cinema.



Archie Lee (Karl Malden) na provocação de Baby Doll (Carroll Baker)

O BAFTA também nominou Boneca de carne para Melhor Filme; e Karl Malden e Carroll Baker como Melhor Ator e Melhor Atriz em Produção Estrangeira.


Por fim, Karl Malden, Carroll Baker, Eli Wallach e Mildred Dunnock receberam indicações respectivas ao Globo de Ouro de Melhor Ator em Filme Dramático, Melhor Atriz em Filme Dramático, Melhor Ator Coadjuvante e Melhor Atriz Coadjuvante.






Roteiro: Tennessee Williams, com base em 27 wagons full of Cotton e The unsatisfactory supper, peças de sua autoria. Direção de fotografia (preto-e-branco): Boris Kauffman. Música: Kenyon Hopkins. Gerente de produção: Forrest E. Johnston. Montagem: Gene Milford. Direção de arte: Richard Sylbert. Associado à direção de arte: Paul Sylbert. Figurinos: Anna Hill Johnstone. Assistente de direção: Charles H. Maguire, Lyman Hallowell (não creditado). Assistente de direção da segunda unidade: Arthur Steckler (não creditado). Som: Edward J. Johnstone. Guarda-roupa: Florence Fransfield. Maquiagem: Robert E. Jiras. Penteados: Willis Hanchett. Continuidade: Roberta Hodes. Duble: Lucky Kargo (não creditado). Jóias: Joan Joseff (não creditado). Tempo de exibição: 114 minutos.

(José Eugenio Guimarães, 1999)




[1] Cf. ROSSI, Alfredo. Elia Kazan. Il castro cinema, Florença: La Nuova Itália, n. 40, p. 63, abr. 1977.
[2] Os anteriores foram Clarice em Fácil de amar (Easy to Love, 1953), de Charles Walters, e Luz Benedcit II em Assim caminha a humanidade (Giant, 1956), de George Stevens.