domingo, 2 de setembro de 2018

ARISTOCRACIA E CÓDIGOS DE CASAMENTO EM REALIZAÇÃO POLONESA DE JERZY HOFFMAN

Em 1985, por iniciativa de representações diplomáticas da República Popular da Polônia, uma pequena mostra de filmes do país teve exibição no circuito alternativo, não comercial, de cine clubes, salas especiais e cinematecas das principais capitais brasileiras. Segundo anotações da época, houve a reapresentação do clássico Madre Joana dos Anjos (Matka Joanna od Aniolow, 1961), de Jerzy Kawalerowicz, e o lançamento dos mais recentes Dagny (Dagny, 1977), de Haakon Sandoy; Iluminação (Iluminacja, 1973), de Krzystof Zanussi; e A leprosa (Tredowata, 1976), de Jerzy Hoffman. Transparecia um tom de oficialidade na exposição desses títulos, como se fossem — independentes de suas qualidades artísticas e históricas — um contraponto às manifestações políticas que sacudiam o país em decorrência do surgimento do sindicato livre Solidariedade, da oposição aguerrida de Lech Walesa e de recentes desafios no campo cinematográfico, principalmente da parte de Andrzej Wajda com Terra prometida (Ziemia obiecana, 1975), O homem de mármore (Czlowiek z marmuru, 1977), Sem anestesia (Bez znieczulenia, 1978), As senhoritas de Wilco (Panny z Wilka, 1979), O maestro (Dyrygent, 1980) e, principalmente, de O homem de ferro (Czlowiek z zelaza, 1981), que provocou o exílio temporário do cineasta. A leprosa, ao menos, é exemplo da rendição às convenções da cartilha oficial que regia a produção de cinema na Polônia segundo emanações do realismo socialista. O roteiro aborda a novela Tredowata, lançada em 1909 pela escritora ucraniano-polonesa Helena Mniszkówna. A narrativa, localizada nos últimos momentos do século XIX, critica com pouco realismo e excesso de convicção os códigos exclusivistas da aristocracia, principalmente na esfera matrimonial. Percebem-se alguns valores dispersos na encenação, insuficientes para completar uma equação cinematográfica artística e dramaticamente coerente. Sobra a abordagem unidimensional em detrimento da crítica social pretendida. Segue apreciação escrita em 1985.






A leprosa

Tredowata

Direção:
Jerzy Hoffman
Produção: 
Film Polski, Zespól Filmowy "Silesia"
República Popular da Polônia — 1976
Elenco:
Elzbieta Starostecka, Leszek Teleszynski, Jadwiga Baranska, Czeslaw Wollejko, Lucyna Brusikiewicz, Irena Malkiewicz, Anna Dymna, Gabriela Kownacka, Mariusz Dmochowski, Piotr Fronczewski, Zbigniew Józefowicz, Janusz Bylczynski, Barbara Drapinska, Aleksander Gassowski, Wieslawa Kwasniewska, Andrzej Mrozewski, Ryszard Ostalowski, Józef Para, Andrzej Piszczatowski, Hanna Stankówna, Ernestyna Winnicka, Jerzy Moes e os não creditados Cezary Harasimowicz,Marlena Miarczynska, Maciej Pietrzyk. 



O diretor Jerzy Hoffman



Na origem deste filme está um dos romances mais populares da Europa do Leste: Tredowata, lançado em 1909, de autoria da ucraniano-polonesa Helena Mniszkówna. Pejorativamente, é enquadrado no rol de obras menores graças ao público que atingiu: mães, senhoritas casadoiras e mulheres mais simples das classes subalternas. Porém, o sucesso que angariou não decorre da mera atração de gênero. Apesar de literatura fácil, para consumo imediato — segundo críticos e conhecedores —, aborda com precisão um tema sintonizado com a moral que advogava a separação estrita das classes sociais de então. Especificamente, trata da interdição do casamento entre pretendentes de padrões diferentes. Apesar das transformações presentes no tempo de narração da história, os hábitos e costumes da ordem estamental ainda vigoravam — principalmente no âmbito mais impermeável da aristocracia.


A leprosa, segundo informações, é a terceira transposição do livro para as telas. As anteriores, também produções polonesas, preservaram, tal qual a presente, o título original. A primeira, de 1926, tem Boleslaw Mierzejewski na direção. A segunda surgiu dez anos depois, por conta de Juliusz Gardan. Ao que se sabe, não tiveram lançamento comercial nos cinemas brasileiros. O mesmo se aplica à realização de Jerzy Hoffman. Mereceu exclusivamente exibições no circuito alternativo: cine clubes, salas especiais e cinematecas. A iniciativa partiu das representações diplomáticas da Polônia, que organizaram mostra dedicada à divulgação da produção cinematográfica do país. Formado no documentário, Hoffman é desconhecido do público e da crítica do Brasil. Sabe-se que não goza de boa reputação entre os pares poloneses, aos menos aqueles que buscaram, contra todas as dificuldades, um caminho mais ousado, experimental e relativamente independente dos preceitos impostos oficialmente ao cinema da República Popular da Polônia — prisioneiro da matriz soviética. Em geral, é conhecido como cineasta oficial do regime. Portanto, não é dado às complexidades e sutilezas comprometedoras das verdades estabelecidas. Prova-o A leprosa.



Acima e abaixo: Elzbieta Starostecka no papel de Stefcia Rudecka


O filme é estruturado como conto de fadas às avessas. Transcorre nos últimos momentos do século XIX. Conta história sórdida, com final trágico. A personagem principal é a jovem, bela e etérea Stefcia Rudecka (Starostecka). Egressa dos setores médios, é educada, instruída e bem apessoada. Ganha a vida junto à Condessa Idália Elzonowska (Baranska), como professora e governanta da filha Lúcia (Brusikiewicz). Reside na casa da família. Aí também se faz presente o idoso, compreensivo e amargurado patriarca Maciej Michorowski (Wollejko). O jovem de ideias arejadas Waldemar Michorowski (Teleszynski), sobrinho da Condessa, é presença constante. Cai de amores por Stefcia. A corte é rejeitada pela personagem. De início, mostra-se precavida e realista quanto à própria condição — apesar de intimamente sonhadora. Entretanto, a resistência dura pouco.


O idílio é duramente reprovado pela família de Waldemar. A muito ciosa Idália reage à altura da posição ocupada no concerto de classes. Os pais do rapaz, particularmente o ardiloso e hipócrita Conde Barski (Dmochowski), planejavam para ele um casamento de conveniência com Melania Braska (Dymna). A censura do patriciado é fulminante e hedionda. Toda a aristocracia se une em torno de uma causa: impedir o matrimônio e reduzir Stefcia à condição de intrusa inoportuna. Converte-se em pária aos olhos da nobreza. Na intimidade desse círculo fechado é chamada de “leprosa”. O único personagem solidário ao drama é o ressentido Maciej Michorowski. Na juventude, os interditos de classe o impediram de se relacionar com a jovem remediada que amava. Sentimentalmente, jamais se recuperou da ruptura forçada.


Leszek Teleszynski como Waldemar Michorowski e Jadwiga Baranska no papel da Condessa Idalia Elzonowska

O amargurado patriarca Maciej Michorowski (Czeslaw Wollejko)


Apesar de tudo, o casamento acontece. Após as bodas, o fechamento da nobreza é mais intenso. Apesar da união legal, Stefcia jamais será aceita. Algo será feito para remover a leprosa de um círculo ao qual não pertence e devolvê-la ao lugar de onde jamais deveria ter saído. Os meios a empregar não importam. O que vale é afastá-la. Uma morte social é tramada ardilosa e subrepticiamente. Acontecerá em público e terá efeitos nefastos, além do esperado.


A leprosa revela maduro aproveitamento da capacidade de ilustração do cinema. A embalagem do produto, belíssima, é imediatamente ressaltada. A cenografia, logo no início, com apoio da montagem e câmera, estampa o caráter alegre de Stefcia. Revela-se feliz, fascinada pela vida. Esse estado de espírito é reforçado pelo envolvimento com a natureza ensolarada e primaveril. Nessa ocasião, conhece Waldemar.


Stefcia Rudecka (Elzbieta Starostecka) com o pai interpretado por Zbigniew Józefowicz

  
A decoração destaca o mundo suntuoso, distante e frio da aristocracia. Externamente às vivendas, há a beleza convidativa dos jardins. Internamente, impera a frieza dos cômodos rigorosamente solenes, detalhados e distribuídos, afinados com a posição de quem os ocupa. Vigoram o formalismo inibidor, o requinte, as boas maneiras, os gestos contidos e olhares enviesados, admoestadores, tão eficazes como expressões silenciosas de comunicação.


As sequências reservadas às confraternizações e festas são intensas, com magnífico uso de câmera. O acompanhamento musical de Wojciech Kilar é ágil e embriagador. A atriz Elzbieta Starostecka, carismática de sobra, sabe expressar sentimentos. O mesmo se aplica a Czeslaw Wollejko em seu personagem envolvido na amargura silenciosa de anos.


Waldemar Michorowski (Leszek Teleszynski) e Stefcia Rudecka (Elzbieta Starostecka)

  
Entretanto, apesar dos valores positivos da encenação, a equação não fecha. As boas qualidades da narrativa resistem isoladamente. A exposição é óbvia e vítima do moralismo fácil. Os personagens são previsíveis. O retrato da aristocracia carece de nuances. É um grupo que age em uníssono; como se não houvesse dissidências e conflitos em seu meio. Transparece a vontade irreal de pintar retrato desumano a toda prova da nobreza, tão unidimensional. Em meio de profusos artifícios, o caso de amor impossível entre Stefcia e Waldemar resvala para a composição pouco crível. Às vezes é ridículo e constrangedor; em outras, risivelmente cômico. De qualquer modo, é sempre exagerada.


Os desdobramentos da abjeta combinação que provoca a participação involuntária de Stefcia no último baile — momento em que Waldemar é estrategicamente afastado e deixa a mulher entre os lobos — são graficamente assustadores. Certamente, o clima de filme de horror dos momentos finais teve a intenção de ressaltar a situação de desamparo e pesadelo que envolveu a infeliz personagem. Porém, é um exemplo no qual o acessório se sobrepõe ao essencial. A narrativa vinha, apesar dos problemas, em compasso de sobriedade. De repente, desequilibra-se espalhafatosamente. Se houve a necessidade de causar impacto, o tiro saiu pela culatra. Os momentos derradeiros, apesar da situação exposta, não exprimem pesar. De tão lúgubres e assustadores, soam falsos. O romance original, em vista da fama e aceitação angariada junto ao grande público da Europa Oriental, merecia melhor tratamento dramático e maior coesão de elementos cinematográficos com a narração. Uma pena!



Abaixo e acima: a aristocracia, inclusive a Condessa Idalia Elzonowska (Jadwiga Baranska), em maquinações contra Stefcia Rudecka (Elzbieta Starostecka)


Helena Mniszkówna lançou, no rastro do sucesso de Tredowata, a continuação Ordynat Michorowski, de 1910. Trata do destino de Waldemar. Apesar de cair no gosto dos leitores, não despertou o interesse do cinema.





Roteiro: Jerzy Hoffman, Stanislaw Dygat (não creditado), com base na novela Tredowata, de Helena Mniszkówna. Direção de fotografia (cores): Stanislaw Loth. Música: Wociech Kilar. Música: Wojciech Kilar. Montagem: Halina Nawrocka. Assistente de montagem: Jadwiga Ignatczenko. Desenho de produção: Jerzy Szeski. Decoração: Leonard Mokicz. Figurinos: Malgorzata Spychalska-Komar. Penteados: Grazyna Jakubczak, Irmina Stanowska. Maquiagem: Miroslaw Jakubowski, Maria Lasnowska. Gerente de produção: Wilhelm Hollender. Assistentes de direção: Andrzej Czekalski, Walentyna Hoffman, Hanna Hartowicz, Halina Sprusinska. Direção musical: Wojciech Michniewski. Tempo de exibição: 91 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1985)