sexta-feira, 13 de novembro de 2015

A SEMANA SANTA E OS PAVORES DE ABRIL

O rei dos reis (King of kings, 1961), de Nicholas Ray


Abril parece ser o melhor dos meses. Em torno disso há praticamente um consenso. Reforçam-no o cinema, a canção popular e a literatura. De David Butler é o filme Paris em abril (April in Paris, 1952), título também da canção de Vernon Duke e E. Y. Harburg, imortalizada por Doris Day e Billie Holiday. Na música popular brasileira, Vinícius e Toquinho compuseram e cantaram As flores de abril. Quem leu Monteiro Lobato provavelmente terá a lembrança do início de Viagem ao céu: Pedrinho e Narizinho na disputa de descascar laranjas sem feri-las, em pleno quarto mês, este que não é quente nem frio; nem seco nem chuvoso; período no qual nada falta ou excede; tudo se ajusta na devida medida.


Capa de edição do livro de Monteiro Lobato


Porém, toda regra tem exceção. No caso, sou o ponto fora da curva. Desde criança, o meu agosto é abril. Transtornos, traumas e temores se acumularam em mim no melhor dos meses. Hoje, somo 59 passagens pelo aziago abril. Algumas angústias e medos começaram a me perseguir na casa dos 8 anos e ainda estão presentes. Uma delas leva o nome de Mancha Negra (Phantom Blot, no original) — fora da lei terror de Patópolis, arqui-inimigo do Mickey. Fui apresentado a ele em abril. Os primeiros desenhos do marginal eram, segundo minhas memórias, apavorantes! Impediam-me de dormir. Em consequência, corria para a cama dos meus pais. Seu Altamyr Guimarães, contrariado com a intromissão, corria para a minha. No dia seguinte, na rua e em casa, punha-se a falar, em alto e bom som, para quem quisesse ou não ouvir: "Meu filho é uma vergonha. Tem medo de um pedaço de papel!".


Mancha Negra (Phantom Blot), marginal dos quadrinhos da Walt Disney Productions


Diante de tamanha exposição eu não tinha onde enfiar a cara. Felizmente, para consolo geral, o medo do Mancha terminou tão rapidamente como começou. Entretanto, não posso dizer o mesmo da Semana Santa, quase sempre comemorada em abril. Continuo apavorado com tudo o que se conta e encena acerca da paixão e morte de Nosso Senhor Jesus Cristo. Sempre tive dificuldade em aceitar a ideia de um Deus que consente na execução atroz do filho em nome da redenção de uma humanidade tomada em abstrato. A simples menção a isso me deixa vivamente impressionado. E sou facilmente impressionável.


Uma conjunção de fatores contribuiu para o pavor. Primeiro, a ida à Igreja para ser crismado, por imposição da professora primária, aos oito anos, senão – ai de mim! – iria para o inferno. A visão dos vitrais narrando a via dolorosa, as estátuas, os crucifixos enormes, aumentaram a insegurança do meu mundo frágil. Depois, aos nove anos, veio o preparatório para a primeira comunhão. Outra vez uma professora estava por trás da ideia, também com o peso da ameaça infernal. Se dependesse de pai e mãe jamais passaria por tais provações. Ambos não frequentavam missas e outros cultos. Ficavam — principalmente Seu Guimarães — injuriados com o incrível poder de convencimento das mestras. E lá estava eu, decorando o Ato de contrição para a primeira confissão de minha primeira comunhão: “Meu Jesus, crucificado/Por minha culpa estou arrependido de ter cometido pecado/Pois ofendi a Vós/Que sois tão bom./Por isso, mereci ser castigado/Neste mundo e no outro./Perdoa-me, Senhor!/Afastai-me do Mal/Pois não quero mais pecar!/Amém!”.


Virgem Santa! Quantos arrependimentos e noites mal dormidas tive, achando que Jesus passou por tão inominável sofrimento por causa dos meus pecados de moleque: no máximo umas mentirinhas contadas para a mãe, fingir que estudava tabuada, roubar goiabas no quintal do vizinho e passar a mão ― as famosas "catações" ― nas bolinhas de gude dos incautos.


Não posso esquecer os programas radiofônicos de Alziro Zarur — fundador da Legião da Boa Vontade. Suas locuções exacerbadas e repletas de tintas do Apocalipse, na narração encenada do final dos tempos — descrevendo detalhadamente a derradeira Batalha do Armagedon, com a terra se abrindo para engolir os pecadores e lançá-los nas chamas da punição eterna — mexiam com meu emocional. E não havia escapatória. Minha mãe adorava ouvir os clamores radiofônicos. A eles, de certa forma, também estava obrigado, pois a seguir começaria Jerônimo, o herói do sertão. Por nada desse mundo eu perderia as aventuras do filho de Maria Homem, nascido em Cerro Bravo. As contribuições maternas aos pavores não podem ser minimizadas. No meu caso, Dona Iracema Guimarães adorava ler épicos a respeito de Jesus ou que o tomavam como pano de fundo. E narrava para mim — curioso e masoquista —, com requinte e riqueza de detalhes, passagens alusivas às horas finais de Cristo extraídas de O mártir do Gólgota (El màrtir del Gólgota), de Henrique Perez Escrich; O manto sagrado (The robe), de Lloyd C. Douglas; Ben-Hur (Ben-Hur: A tale of Christ), de Lew Wallace; e outros calhamaços. Enquanto ouvia, por dentro me contorcia com as imagens de açoites, da coroa de espinhos, dos cravos rasgando carnes, do sangue correndo aos borbotões, dos sofrimentos indescritíveis e intermináveis.





Quando chegava a Semana Santa, eu já estava curtido no imaginário de terror que agora seria ampliado ao paroxismo: as procissões — excluídas as de Ramos e da Ressurreição —; os cantos e rezas; as filas intermináveis para beijar estátuas do Senhor Morto; as imagens barrocas de Jesus carregando pesadíssima cruz e estampando no rosto ensanguentado todos os pecados do mundo ― inclusive os meus! —; os sermões intermináveis irradiados para tudo quanto é canto — principalmente o impressionante e assustador Sermão das Sete Palavras, pronunciado das 12 às 15h de Sexta da Paixão —; os dobres solenes e fúnebres das bandas de música (as "furiosas") atrás das procissões e nas primeiras horas da manhã, em alvoradas que despertavam a cidade inteira; a cor roxa da quaresma; solteironas e beatas rezando e se descabelando, segurando velas de todos os tipos e tamanhos, esperando o fim do mundo a qualquer hora; os rádios tocando músicas fúnebres ao longo de toda a sexta-feira; a proibição das brincadeiras em respeito ao sofrimento de Jesus... Com tudo isso, a indefectível bacalhoada com batatas ficava sem sabor... Minha nossa! Como eu sofria nessa época dourada da infância. Parecia cachorro de rua acuado pelo foguetório em dias de Fla-Flu. Não havia para onde correr. Também não tinha como dormir. À noite, estava literalmente invadido e acuado pelo pavor. E lá ia eu para a cama dos meus pais. Nos dias seguintes teria que ouvir o velho esbravejando nos ambientes privados e públicos: "Uma vergonha o meu menino! Não dorme por que tem medo de um pedaço de pau!".





O “pedaço de pau”, no caso, era um coletivo que abarcava a sacralidade de todas as estátuas e cruzes.


Os anos passam, mas as imagens de tortura no calabouço de Pilatos e as cenas de crucificação ainda apavoram e prejudicam minhas noites de sono. Tanto que fiz questão de passar ao largo de todos os cinemas que exibiram A paixão de Cristo (The passion of the Christ, 2004), de Mel Gibson. É o único filme ao qual digo abertamente: "Não vi e não gostei". Já havia experimentado, nos cinemas, em 1966, momentos assaz dolorosos com O evangelho segundo São Mateus (Il vangelo secondo Matteo, 1964), de Pier Paolo Pasolini. Segundo minhas lembranças, é o primeiro filme a exibir a crucificação em primeiro plano, com o martelo pegando firme, contrariando as normas do espetáculo firmado por Hollywood: mostrar as horas extremas no Gólgota em solene e respeitoso distanciamento. Em 1988, abraçado pela tela envolvente do carioca e extinto Cine Metro Boavista, passara por momentos de verdadeiro sufoco com A última tentação de Cristo (The last temptation of Christ, 1988), de Martin Scorsese, no qual o sangue jorra literalmente, aos borbotões, e a porrada corre solta.


O evangelho segundo São Mateus (Il vangelo secondo Matteo, 1964), de Pier Paolo Pasolini



A última tentação de Cristo (The last temptation of Christ, 1988), de Martin Scorsese


Mas a obra de Mel Gibson se ajusta perfeitamente aos tempos que não titubeiam em exibir o grotesco e o violento em seus aspectos mais pornográficos. Nela, o Cristo e sua paixão são contemporâneos de Freddy Krugger assustando adolescentes em A hora do pesadelo (A nightmare on Elm Street), de Wes Craven, com todas as suas continuações; de Jason matando a três por dois, sem nenhum pudor, na Sexta-feira 13 (Friday the 13th, 1980), de Sean S. Cunningham, e seus intermináveis prolongamentos; das carnificinas sem peias de O albergue (Hostel, 2005), de Eli Roth; e Jogos mortais (Saw, 2004), de James Wan. Gibson ofereceu ao público uma recriação das últimas horas de Jesus segundo a estética do terror “sangue e tripas” tão em voga e banalizado. Depois de anos escolado nos símbolos e significados da Semana Santa eu não seria masoquista o suficiente para prestigiar essas imagens. Bastou a visão de algumas fotografias da produção para tumultuar minhas noites de sono. Minha filha, porém, armou-se de coragem e foi vê-las. Depois, lívida, buscou uma catarse tentando contar ao pai as dolorosas e aterradoras cenas que testemunhou. Em alto e bom som, respondi: "Não quero saber!".


A paixão de Cristo (The passion of the Christ, 2004), de Mel Gibson



O rei dos reis (The king of kings, 1927), de Cecil B. De Mille


Entendidos em espiritismo e em reencarnação tentaram racionalizar todos esses pavores que me são tão caros. Concluíram o óbvio: fui crucificado muitas vezes em vidas passadas. Parece fazer sentido. Mas não quero perder tempo pensando nisso. Caso contrário, corro o risco de perder outras noites de sono. Chega!


(José Eugenio Guimarães, 2009; revisto em 2015)

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

EDUARDO COUTINHO: CINEASTA E DOCUMENTARISTA BRASILEIRO


Eduardo Coutinho (1933-2014)


Eduardo de Oliveira Coutinho queria ser advogado, mas o jornalismo, teatro e cinema lhe atravessaram o caminho. Na segunda metade dos anos 50 venceu concurso sobre Charles Chaplin. Com o dinheiro do prêmio se estabeleceu em Paris. Em 1957, matriculado no Institut des Hautes Études Cinématographiques (IDHEC), estudou direção e montagem.


Na volta ao Brasil, três anos depois, incorporou-se ao CPC da UNE (Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes). Em princípio esteve ligado aos grupos de teatro. Mas logo se aliou aos jovens realizadores do Cinema Novo, principalmente Leon Hirszman, Marcos Farias e Joaquim Pedro de Andrade — envolvidos na realização do episódico Cinco vezes favela (1962), do qual se tornou gerente de produção. Acompanhou as caravanas da UNE Volante pelos sertões do Nordeste brasileiro e conheceu Elizabeth Teixeira, viúva de João Pedro Teixeira — líder de trabalhadores rurais assassinado no município de Sapé, Pernambuco, em 1962, devido às mobilizações e reivindicações em prol da reforma agrária por conta das Ligas Camponesas de Francisco Julião.


Elizabeth Teixeira, viúva do líder João Pedro Teixeira, com os filhos


O acontecimento atraiu o interesse de Coutinho, ao qual planejou um filme estruturado como ficção de fundo histórico. As filmagens de Cabra marcado para morrer foram interrompidas pelo golpe de Estado de 1964 e consequente implantação da ditadura militar de 21 anos no Brasil. Os atores eram personagens reais que, de uma forma ou outra, vivenciarem os eventos. Dentre eles estava Elizabeth Teixeira — visada por policias e proprietários fundiários. Ela e a família tomaram a decisão de desaparecer, por segurança, após o golpe. Cada membro do grupo tomou paradeiro diferente e incerto. O material filmado foi dado como perdido após a prisão do diretor e membros da equipe por suspeita de subversão.


Cena da realização interrompida de Cabra marcado para morrer


Em 1981, passados 17 anos, o país respirava os ares da abertura política sob o mandato do General João Batista Figueiredo. Uma boa notícia animou Eduardo Coutinho. As imagens de Cabra marcado para morrer apareceram. Foram escondidas por um membro da equipe. O projeto, retomado, foi amplamente modificado. A realização passou a reconstituir, em forma de documentário, os eventos que lhe deram origem, e assumiu o compromisso de localizar os envolvidos nas filmagens — nunca mais vistos desde que foram abruptamente encerradas. O novo Cabra marcado para morrer conseguiu, após muita pesquisa, reencontrar Elizabeth Teixeira e filhos. Graças ao filme a família foi reunida. A realização atualiza a história das lutas dos trabalhadores rurais no Brasil, defende a necessidade imperiosa da reforma agrária, denuncia a concentração fundiária fortemente ampliada durante o regime militar e a constante insegurança em que viviam e ainda vivem as lideranças sindicais no campo. Concluído em 1984, chegou ao circuito exibidor também nesse ano.


Depois da interrupção das filmagens da primeira versão de Cabra Marcado para Morrer, Coutinho se aventurou no cinema de ficção. Dirigiu O pátio, segmento do episódico ABC do amor (1966) e O homem que comprou o mundo (1968). Continuou a ligação com Leon Hirszman, para quem escreveu os roteiros de A falecida (1965) — uma das melhores adaptações de Nelson Rodrigues — e Garota de Ipanema (1967). A atividade de roteirista prosseguiu na década seguinte: Os condenados (1973), de Zelito Viana, Lição de amor (1975), de Eduardo Escorel, e Dona Flor e seus dois maridos (1976), de Bruno Barreto. Na direção, enveredou pela paródia com Faustão (1971), no qual transpõe Falstaff — personagem de algumas peças de Shakespeare, imortalizado no cinema por Orson Welles em Falstaff - O toque da meia noite (Campanadas a medianoche, 1965) — para o universo do cangaço. Prossegue no jornalismo. Faz revisão e crítica de cinema para o Jornal do Brasil. A partir de 1975, integrado às equipes de reportagem da TV Globo, produz e dirige episódios para o programa Globo Repórter. É quando consolida a vocação de documentarista.


Cartaz do definitivo Cabra marcado para morrer com imagem de Elizabeth Teixeira


O trabalho na TV Globo avança até a retomada de Cabra Marcado para morrer. A carreira vitoriosa do documentário, artística e financeira, encoraja Coutinho a tentar a vida apenas como cineasta. Uma aposta arriscada, perdida para as crônicas instabilidades da realização cinematográfica no Brasil. Acaba prestando serviços — como diretor e autor de roteiros — para diversas organizações no campo do audiovisual. Realizou série para o Centro de Criação da Imagem Popular, centrada nos temas da Educação e Cidadania; voltou à TV, no caso à Rede Manchete, para roteirizar a série Noventa anos de cinema: uma aventura brasileira, dirigida por Eduardo Escorel e Roberto Feith, e Caminhos da sobrevivência, sobre São Paulo e a poluição.


Nesse período de incertezas realizou documentários curtos e médios que passaram praticamente despercebidos. Destacam-se: Santa Marta - Duas semanas no morro (1987), Volta Redonda - memorial da greve (1989), Boca de lixo (1993), Mulheres no front (1996) e Romeiros do Padre Cícero (1994) — encomendado pelo canal alemão ZDF Arte e apontado como insatisfatório pelo próprio realizador.


Em 1997 a TV Educativa (TVE) interrompeu antes do início a série Identidades Brasileiras, para a qual Coutinho executaria o trabalho de pesquisa. Porém, nem tudo foi perdido. Surgiu daí a ideia de um documentário sobre a religiosidade do brasileiro ou as diversas formas da relação popular com o sagrado. Santo forte, lançado em 1999 com apoio da Rio Filmes — presidida à época pelo jornalista e crítico José Carlos Avellar —, é um dos trabalhos mais inspirados e emocionantes do cineasta.


Cartaz de Santo forte - o renascimento de Eduardo Coutinho


Santo forte é a oportunidade de novo renascimento. A partir daí Coutinho consegue se estabelecer com certa regularidade na realização. Contribui para isso o apoio da Vídeo Filmes dos irmãos e cineastas João e Walter Moreira Salles. Desde então realizou ao menos sete documentários de renome, com boa repercussão, dentre os quais Babilônia 2000 (1999), Edifício Master (2002), Peões (2004) e As canções (2011). É premiado em diversas mostras e festivais; volta a ganhar o reconhecimento da crítica, como nos tempos de Cabra marcado para morrer. Em fevereiro de 2014, aos 80 anos, Coutinho foi assassinado em casa, pelo filho esquizofrênico. Na ocasião, finalizava documentário montado a partir de entrevistas com adolescentes matriculados em escolas públicas do Rio de Janeiro. O projeto foi concluído pelo colega, amigo e produtor João Moreira Salles. Ganhou o título de Últimas conversas e teve lançamento em 2015. Um ano antes de falecer, Coutinho recebeu homenagens da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e Festa Literária Internacional em Paraty (FLIP). É justamente reconhecido como o maior documentarista do cinema brasileiro.


Eduardo Coutinho durantes as filmagens de Babilônia 2000


FILMOGRAFIA E PRÊMIOS


1. O pacto, segmento para o episódico El ABC do amor (1966, 95 minutos). Rodolfo Kuhn e Hélvio Souto dirigiram, respectivamente, os segmentos Noche terrible e Mundo mágico.

2. O homem que comprou o mundo (1968, 90 minutos).

3. Faustão (1970, 103 minutos).

4. Cabra marcado para morrer (1984, 119 minutos). Recebeu o prêmio da FIPRESCI (Fédération Internationale de la Presse Cinematográfica) no Fórum Novo Cinema do Festival de Berlim (1985). Nos mesmos ano, fórum e festival mereceu o prêmio da Interfilm. Premiado com o Delfim de Ouro no Festival Internacional do Filme de Troia (1985).

5. Santa Marta - Duas semanas no morro (1987, 50 minutos).

6. Volta Redonda, o memorial da greve (1989, 40 minutos), codirigido por Sérgio Goldemberg.

7. O fio da memória (1991, 115 minutos). Premiado em caráter honorário com a Margarida de Prata da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), 1991.

8. A lei e a vida (1992, 34 minutos).

9. Boca de lixo (1993, 50 minutos). Recebeu o prêmio Margarida de Prata da CNBB (1994).

10. Os romeiros de Padre Cícero (1994, 35 minutos).

11. Seis histórias (1995, 27 minutos).

12. Mulheres no front (1996, 35 minutos).

13. Santo forte (1999, 80 minutos). Recebeu os troféus Candango de Melhor Filme e Melhor Roteiro no Festival de Brasília (1999). Fez jus ao Prêmio Especial do Júri e foi indicado ao Kikito de Ouro como Melhor Filme no Festival de Gramado (1999). Laureado como Melhor Filme pelo Serviço Social do Comércio (SESC), 1999. Recebeu a Margarida de Prata da CNBB, 1999, e o Troféu da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) como Melhor Filme, 2000.

14. Babilônia 2000 (1999, 80 minutos). Recebeu o Grande Prêmio Cinema Brasil de Melhor Documentário, 1999, quando também foi indicado na categoria de Melhor Direção. Mereceu o Troféu Passista de Melhor Fotografia em Documentário de Longa Metragem no Festival de Recife (2001) e o prêmio da APCA de Melhor Documentário (2002).

15. Porrada (2000, 5 minutos).

16. Edifício Master (2002, 110 minutos). Indicado ao Grande Prêmio Cinema Brasil de Melhor Documentário, Melhor Diretor e Melhor Roteiro Original (2002). Premiado com o Kikito de Ouro de Melhor Documentário Longo no Festival de Gramado (2002). Mereceu a Menção Especial como Melhor Documentário no Festival de Havana (2003). Laureado com a Margarida de Prata da CNBB (2002). Recebeu o Troféu APCA de Melhor Documentário (2002). Venceu o Prêmio da Crítica como Melhor Documentário no Festival Internacional do Filme de São Paulo (2002).


Cena de Edifício Master


17. Peões (2004, 85 minutos). Venceu o Troféu Candango de Melhor Filme e o Prêmio da Crítica no Festival de Brasília (2004). Recebeu o Troféu APCA de Melhor Filme (2005).



Cartaz de Peões


18. O Fim e o Princípio (2005, 110 minutos). Premiado pela Associação de Correspondentes da Imprensa Estrangeira no Brasil (ACIE) como Melhor Documentário (2006). Indicado ao Grande Prêmio Cinema Brasil de Melhor Diretor e Melhor Documentário (2005). Laureado pelo Júri como Melhor Direção de Documentário pelo Prêmio Contigo de Cinema (2006). Recebeu o Prêmio Humanitário no Festival Internacional do Filme de São Paulo (2005).


Momento de O fim e o princípio


19. Jogo da cena (2007, 100 minutos). Recebeu o Prêmio da ACIE como Melhor Documentário e foi indicado pela Melhor Direção (2008). Indicado ao Grande Prêmio Cinema Brasil por Melhor Roteiro Original (2008). Laureado com o Alhambra de Ouro no Festival Cines del Sur de Granada (2008). Premiado pelo Júri do Prêmio Contigo de Cinema por Melhor Direção de Documentário (2007). Premiado pelo SESC nas categorias de Melhor Filme e Melhor Diretor (2008).


Eduardo Coutinho entrevista a atriz Marília Pêra em Jogo de cena


20. Moscou (2009, 78 minutos). Recebeu o Prêmio da Critica como Melhor Documentário no Festival de Paulínia (2009). Indicado pelo Júri como Melhor Direção de Documentário ao Prêmio Contigo de Cinema (2009).


Momento de Moscou 


21. Um dia na vida (2010, 94 minutos).

22. As canções (2011, 90 minutos). Recebeu o Prêmio da ACIE como Melhor Documentário (2011). Indicado ao Grande Prêmio Cinema Brasil de Melhor Direção e Melhor Documentário (2011). Indicado pelo Júri na categoria de Melhor Direção em Documentário ao Prêmio Contigo de Cinema (2011). Mereceu o Prêmio Première Brazil de Melhor Documentário e Prêmio do Público no Festival Internacional do Filme do Rio de Janeiro (2011). Venceu o Prêmio do SESC como Melhor Documentário (2012).


Cartaz de As canções



23. Últimas conversas (2015, 85 minutos), finalizado por João Moreira Salles.


Eduardo Coutinho durante as filmagens de Peões


(José Eugenio Guimarães, 2015)

domingo, 8 de novembro de 2015

FUI INTIMADO A FAZER MINHA RELAÇÃO PESSOAL DE DEZ MELHORES FILMES

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FUI INTIMADO A FAZER MINHA RELAÇÃO PESSOAL DE DEZ MELHORES FILMES

BREVES E JUSTAS PALAVRAS SOBRE O CRISTO DE PIER PAOLO PASOLINI

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BREVES E JUSTAS PALAVRAS SOBRE O CRISTO DE PIER PAOLO PASOLINI

MAUREEN O'HARA POR 16 DIRETORES EM 20 FILMES E PERSONAGENS

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MAUREEN O'HARA POR 16 DIRETORES EM 20 FILMES E PERSONAGENS



ENTREVISTA: JOSÉ EUGENIO GUIMARÃES A EMERSON T. LIMA DO 'CRONOLOGIA DO ACASO'

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RELEMBRANDO: YONÁ MAGALHÃES, "DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL", GLAUBER ROCHA

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REMEMORANDO CLÁSSICOS: LEONE, MORRICONE, "IL BUONO, IL BRUTTO, IL CATTIVO"

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MÍRIAM SILVESTRE - RENÉ CLAIR: A PERMANÊNCIA NO TEMPO SEM OS JORNAIS DO AMANHÃ

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POEMA A ROBIN WILLIAMS, DE LUIS ESTRELA DE MATOS

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DILBERTO LIMA ROSA: TRÊS VEZES CINEMA

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DILBERTO LIMA ROSA: DJANGO E TARANTINO - BASTARDOS INGLÓRIOS

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DILBERTO LIMA ROSA: A CASA VAZIA

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ENQUETE STANLEY KUBRICK

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ENQUETE STANLEY KUBRICK

A HISTÓRIA IMEDIATA DE SARACENI OU "O FILME POLÍTICO EXEMPLAR", SEGUNDO GODARD

Meio século se passou. Conjunturalmente, é tempo considerável; estruturalmente, nem tanto. Porém, em qualquer plano permanece atual o ousado exercício cinematográfico realizado por Paulo César Saraceni em 1965. O desafio é manifesto político, afetivo, histórico e cinematográfico. Poucos filmes conseguiram a proeza de captar com tanta sobriedade e emoção o sentido (ou sua falta) de um determinado momento — tomado pela ressaca provocada pelo golpe de Estado de 1964, no Brasil, nos primeiros meses da implantação do regime militar. O roteiro enxuto e preciso, escrito pelo diretor em parceria com Vera Pedroso, faz a radiografia de uma derrota, absorvida intensamente, com sofreguidão, pelo jornalista Marcelo (Oduvaldo Viana Filho), identificado com os anseios e promessas de mudança varridos da cena pela ruptura institucional. A tensão e perplexidade do personagem são comunicadas pelos diálogos, pela câmera nervosa e ágil — operada manualmente — e por significativo e enraizado conjunto de composições musicais. Nem as idealizações do amor se tornam exequíveis num "tempo de guerra" e "sem sol". A apreciação a seguir é de 1993.







O desafio

Direção:
Paulo César Saraceni
Produção:
Paulo César Saraceni, Sergio Saraceni
Sant'Anna Produtora Brasileira de Filmes Ltda., Produções Cinematográficas Imago, Mapa Films
Brasil — 1965
Elenco:
Isabella, Oduvaldo Viana Filho, Sérgio Brito, Luiz Linhares, Joel Barcelos, Maria Bethânia, Zé Keti, Hugo Carvana, Gianina Singulani, Marilu Fiorani, Renato Graça Couto Filho, João do Vale, Nara Leão, Elis Regina, Gianina Singulani.



O diretor Paulo César Saraceni (1933-2012)



O título originalmente cogitado, No Brasil depois de abril, cedeu ao mais sintético e objetivo O desafio. É o segundo longa e quinta realização de Paulo César Saraceni, considerando-se na contagem o curta Caminhos (1957) — provavelmente perdido. A seguir vieram o documentário curto Arraial do cabo (1960), o longa Porto das Caixas (1962) e o média Integração racial (1964).


O desafio honra o nome. É um feito! Desafiou o momento, o espírito, a perplexidade e as próprias convenções do fazer cinema no Brasil. Em tudo é transgressor, como poucos títulos puderam ser. É marcadamente contemporâneo do início da ressaca política provocada por um desmoronamento: o golpe de Estado civil-militar de 1964. A intervenção liquidou os avanços democráticos e lançou o país em mais de duas décadas de violência policial e institucional. Ceifou física e politicamente três gerações. O protagonista Marcelo (Viana Filho), atordoado pelos acontecimentos, assemelha-se ao caminhante que cambaleia sem saber como avançar. Tenta tomar pé da situação. Mas a cabeça gira. Questiona a todo momento, como se perguntasse, à moda de Lênin: "O que fazer?". É um dos mais ousados e corajosos filmes brasileiros.


Marcelo, interpretado por Oduvaldo Vianna Filho


Dentre as realizações do Cinema Novo, O desafio se ajusta plenamente às propostas do movimento, principalmente ao lema "Uma câmera na mão e uma ideia na cabeça". Foi filmado em praticamente duas semanas, em maio de 1965, com equipe reduzida ao essencial — poucos atores e recursos cenográficos fornecidos pelos intérpretes, diretor e amigos. A câmera — sempre operada manualmente por Dib Lutfi e Guido Cosulich — acompanha a tudo nervosa e ágil. Não está reduzida à objetiva que apenas enquadra, observa e acompanha os intérpretes. É elemento constituinte da dramaturgia ao evoluir por ambientes diversos, explorados com permanente inquietação. Age cirurgicamente na exposição de nervos e tecidos, sem comiseração.



Acima e abaixo: a ressaca política repercute no relacionamento afetivo de Ada (Isabella) e Marcelo (Oduvaldo Viana Filho)


Depois de concluído, demorou a estrear comercialmente. Por razões óbvias, ficou quase nove meses retido no Departamento de Censura da Polícia Federal. Foi liberado somente em abril de 1966. O Desafio não se vale de subterfúgios. Informa claramente: houve um golpe de Estado; o país respira atmosfera banhada na incerteza quanto à legalidade institucional, principalmente com respeito às liberdades e garantias individuais. Os diálogos aludem às prisões arbitrárias, aos interrogatórios sem fim de suspeitos de subversão, empregos perdidos por motivos políticos e à situação de gente obrigada ao exílio.


Enquanto aguardava salvo conduto para exibição em escala ampliada, O desafio pôde ser visto no espaço restrito dos festivais nacionais. Saraceni revelou destemor ao inscrevê-lo, apesar das dificuldades, no Primeiro Festival Internacional do Filme (maio de 1965) sediado no Rio de Janeiro e patrocinado pelo Governador Carlos Lacerda — liderança civil do golpe — e sob Presidência de Honra do Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco — mandatário do novo regime. Não foi, evidentemente, selecionado para a mostra competitiva do certame. Mas teve vez nas sessões paralelas do finado Cine Alaska, Copacabana. A sala, lotada e tensa, contava com a presença ilustre e artisticamente marcante dos italianos Roberto Rossellini e Marco Bellochio. A eles Saraceni saiu abraçado e consagrado ao encerramento da exibição coroada de muitos aplausos. De cara, nesta primeira apresentação, O desafio fez jus ao prêmio Torre Nilsson da revista italiana Cinema Nuovo — fato solenemente ignorado pela organização do Festival. Logo chegaram convites para apresentações no exterior[1].


Em novembro de 1965, Paulo Emílio Sales Gomes — responsável pelos mais relevantes esforços para liberar o filme junto à Censura — consegue permissão especial do General Riograndino Kruel para exibi-lo no Festival de Brasília[2]. Considera fundamental a presença do diretor ao evento, inclusive de representantes do Cinema Novo a ele associados na distribuidora Difilm — atual Mapa Filmes, dirigida por Zelito Viana. As incertezas decorrentes da elevação da tensão política provocam um racha no grupo[3]. Glauber Rocha alegou que não iria, pois tinha Terra em transe para filmar e, além do mais, não queria ser preso. Exaltado, chamou Saraceni de irresponsável por ter feito um filme "provocador e marginal". Arrependeu-se em seguida[4]. O dado irônico repercute durante o festival. Um telefonema de David Neves ao diretor o informa da prisão, no Rio de Janeiro, na Escadaria da Glória — onde se passa a última cena de O desafio —, de Glauber junto com o diretor de fotografia Mario Carneiro, o cineasta Joaquim Pedro de Andrade, Flávio Rangel, Paulo Francis, Carlos Heitor Cony, Jayme Rodrigues e Antônio Callado — os "Oito da Glória" — em ato contra o regime militar[5]. A apresentação no Festival de Brasília tem sessão lotada. Parte do público se acomoda no chão ou fica de pé. O clima é tenso. Transcorridos alguns minutos do início, os militares começam a abandonar a sala[6].


Nada da Censura decidir. Os defensores da realização se mobilizam pela imprensa. Alex Viany, Paulo Emílio Sales Gomes, Eduardo Escorel, Rogério Sganzerla e Francisco de Almeida Sales publicam apreciações elogiosas, na contramão dos cronistas mais conservadores. Em geral, destacam o caráter inovador do feito de Saraceni, em forma e conteúdo. Relevam a ambientação essencialmente urbana, fincada nos anseios e contradições dos setores médios. Estes não surgem quais caricaturas ou abstrações. São representados por gente viva, real, antenada à ordem do dia e às questões mais prementes acerca dos compromissos individuais e coletivos. Contradições e incertezas pontuam os diálogos. As falas não decorrem de divagações arbitrárias e inoportunas. São reforçadas por teorias psicológicas, econômicas, políticas, históricas, amorosas, psicanalíticas e revolucionárias.


Ada (Isabella)

  
A liberação acontece sem prejuízos para a imagem. Ordenam-se poucos cortes no som[7]. Após tanta espera pelo pior, os danos foram mínimos. Meses antes, fora interditado o cartaz concebido por Rogério Duarte. Ilustravam a peça botas militares passando sobre os protagonistas[8]. O pôster substituto, nas cores principais da bandeira brasileira, destaca a sorridente Ada (Isabela) no quadrado amarelo inferiormente posicionado. O restante, em verde, apresenta dados da produção, elenco e direção.


A esta altura O desafio repercute amplamente no exterior. É convidado para mostras e festivais na Europa. Internamente foi mal compreendido. Com as honrosas exceções de sempre, amealhou a indiferença; quando muito, o desdém. A Censura e o Ministério das Relações Exteriores permitem a exibição internacional. Em Cannes, ganha os prêmios da Crítica e dos Historiadores do Cinema. Recebe temporada na Cinemateca Francesa, graças aos esforços do curador Henri Langlois. Tem frutífera temporada na Cinemateca de Lausanne, Suiça[9]. É convidado de honra do Festival de Berlim e recebe resenhas elogiosas de Robert Benayoun para a Positif, matéria no Le Monde e artigo de Jean Collet para a Film Nouveaux[10]. Jean-Luc Godard o elogia como "filme político exemplar"[11]. O distribuidor aliado do Cinema Novo, Claude Antoine, lança-o comercialmente no mercado europeu. A iniciativa rende dividendos ao diretor, segundo suas próprias palavras[12].


No Brasil, apesar de fracassar no grande circuito, torna-se referência. Divide o foco das atenções do Cinema Novo. Ganham centralidade as questões voltadas à intelectualidade de classe média que pensa o país e almeja transformá-lo. Antes, predominavam imagens do Brasil profundo vislumbrado pelo morro e sertão. Miséria, desemprego, menor abandonado, analfabetismo, seca, fome e misticismo sertanejo agora dividem espaço com o país urbano das políticas partidária, sindical, universitária, fabril e redações de periódicos. Logo virão Terra em transe (1967), de Glauber Rocha; Jardim de guerra (1970), de Neville de Almeida; Vida provisória (1968), de Maurício Gomes Leite; Fome de amor (1968), de Nelson Pereira dos Santos; A grande cidade (1966) e Os herdeiros (1970), de Carlos Diegues; Cara a cara (1967), de Júlio Bressane; O bravo guerreiro (1968), de Gustavo Dahl; São Paulo S. A. (1965), de Luís Sérgio Person; O Bandido da Luz Vermelha (1968), de Rogério Sganzerla etc. São filmes que pensam o país e tentam descortiná-lo a partir da perspectiva de uma suposta modernidade urbana. Buscam apreender com mais nitidez a dinâmica contemporânea de uma formação social efervescente, em seus avanços e retrocessos. Além de fazer o balanço do momento — a história imediata —, O desafio alimenta o germe de terrível premonição. O "tempo de guerra" da canção ilustrativa da perplexidade do personagem vivido por Oduvaldo Vianna Filho prevê o acirramento das contradições, tanto no seio das forças que se lançaram ao golpe como dos movimentos que lhe levantam oposição, com suas funestas consequências. Tempos mais duros viriam. Em 13 de dezembro de 1968 o Ato Institucional número 5 (AI5) liquida de vez as aparências democráticas e constitucionais do novo regime.


Marcelo (Oduvaldo Vianna Filho) e Ada (Isabella)


O desafio radiografa uma derrota política alimentada por perplexidade e inação. Trata de situação que avança do âmbito macro às relações afetivas. Passaram-se poucos meses do golpe de Estado de 1964. As promessas democráticas dos anos Jango se esfacelaram; junto a elas as esperanças dos avanços coletivos, da participação compromissada e ativa, cidadã, nos projetos de mudança de um país que parecia ir ao encontro de seus históricos anseios de justiça, distribuição e igualdade. Agora, vive-se a incerteza da intervenção que liquidou ilusões. Tempo de ressaca. Paulo César Saraceni amarga esse instante de indefinição. Abandona o projeto de filmar A Fera da Penha. Junta-se a Vera Pedroso e com alguma contribuição do marido desta, Luciano Martins, escreve o roteiro. Impossível haver peça mais afinada ao período retratado.


A crise política abate em cheio o jornalista Marcelo. Perturba irreversivelmente a relação tão promissora com a amante Ada, burguesa insatisfeita, esposa do industrial Mario (Brito), partidário da ruptura institucional. Os cenários pelos quais os protagonistas se posicionam ao contexto de tensão e incerteza são ilustrados por símbolos os mais diversos do tempo presente: literários, gráficos, musicais e cinematográficos. A câmera explora com ênfase livros de John Gerassi (A invasão da América Latina), Clarice Lispector, Jean-Paul Sartre, exemplares dos Cahiers du Cinéma, recortes de jornais na cobertura de fatos nacionais e internacionais, além de posters, reprodução de Guernica, de Picasso, o cartaz de Deus e o diabo na terra do sol (1964), de Glauber Rocha. Deste filme, a Bachiana número 5, de Villa-Lobos, comenta entre a melancolia e a paixão uma sequência de amor entre Marcelo e Ada. Há acima de tudo a rica trilha musical: composições aguerridas a denunciar amarguras cotidianas e históricas; misérias e vilanias — o melhor da música popular brasileira do período. As letras convocam, direta ou indiretamente, ao trabalho de transformações urgentes por fazer. Escrito por Armando Costa, Oduvaldo Viana Filho e Paulo Pontes, o show Opinião, dirigido por Augusto Boal, protagonizado por Zé Keti, João do Vale e Maria Bethânia (substituiu Nara Leão) está em alta. Marcelo, na plateia, remói ilusões entre o êxtase e a frustração na audição de canções que tratam das agruras de trabalhadores, retirantes e favelados. A interpretação de Bethânia para Carcará, de João do Vale, é emblemática. Com o rosto destacado em plano médio, brada com força os versos, como se enviasse um recado. No início do terço final do filme, o angustiado Marcelo perambula pela feira ao som de Arrastão, de Edu Lobo e Vinícius de Moraes, pela voz de Elis Regina. Mas é Eu vivo num tempo de guerra[13], de Edu Lobo e Gianfrancesco Guarnieri — letra calcada no poema Aos que vierem depois de nós, de Bertolt Brecht, e composta para a peça Arena conta Zumbi, de Guarnieri e Augusto Boal — que fornece a tônica aos anseios e estado de espírito do personagem de Viana Filho.


Ada (Isabella) e Marcelo (Oduvaldo Viana Filho)
"A porra deste golpe militar é que impede que a gente possa estar do mesmo lado"
  

O desafio expõe nervos e tensão por uma câmera inquieta, mas também pelos diálogos. É um dos filmes mais dialogados do cinema brasileiro. Os personagens se expressam verbalmente a todo momento. Mas canalizar a palavra é unicamente o que podem fazer. Falar revela o quanto estão atônitos e perdidos afetiva e politicamente; expõe a falta de sentido do mundo próximo que os rodeia.


Marcelo é como um bólido girando em torno de si mesmo enquanto busca significados e lições a tirar da situação. Saber o que fazer e aquietar a alma não soa possível. Enquanto não se resolve, suspende todos os projetos devido à falta de sentido do presente. Carlos (Barcelos), mais realista, coautor de um livro que escreveriam, opõe-se ao marasmo do amigo e colega. Pode-se não vencer, mas é fundamental sobreviver, mesmo em contextos desfavoráveis ao espírito, alega com base em Otto Maria Carpeaux. Em tempos como agora impõe-se "O décimo primeiro mandamento: Não se deixar corromper e não ter medo". Quanto ao mais, é viver e aprender; extrair do cotidiano as suas devidas lições e tentar seguir em frente. “É o tempo da conscientização. Nós ainda vamos agradecer a este tempo", acentua.


Marcelo (Oduvaldo Viana Filho) e Carlos (Joel Barcelos)


Marcelo não aceita o realismo otimista de Carlos. Parece-lhe conivência à nova ordem. Também refuta o cínico e debochado niilismo de Nestor (Linhares). Este simplesmente aceitou o sentido trágico da vida e se adequou às circunstâncias. É a saída, afirma. É o que todos deveriam fazer — pondera —, como se fossem abstrações plenamente ajustáveis aos mais diversos imperativos. Por pouco Marcelo não é enredado numa artimanha, ao aceitar convite para pernoitar na casa do colega: um expediente amoroso com a esposa (Singulani) do anfitrião enquanto este fingia sonolência devido à bebida. O jogo é recusado. O protagonista permanece fiel aos anseios de um mundo pleno de sentido, sem o predomínio da falsidade no seio das relações. Para isso acontecer — segundo a canção —, sabe: "...É preciso vencer/...é preciso lutar". Talvez seja "... Preciso matar", pois os tempos não são favoráveis a nenhuma forma concreta e plena de existir. A radicalização da luta contra a nova ordem desponta na lúcida e certeira previsão de O desafio.


Com Ada as circunstâncias impõem a mais sofrida ruptura. Os ideais do amor e da revolução estão desencontrados. Os anseios de participar ativamente da existência coletiva da parte do engajado Marcelo não encontram correspondência nos simples desejos de estabilidade da vida a dois concebidos pela amante. Para ele, é impossível separar a felicidade do indivíduo dos projetos de transformação do país. Amar não significa somente estar em sintonia com o parceiro. Ambos necessitam, também, de correspondência aos anseios coletivos. Amar se torna, pois, ato de responsabilidade, tanto existencial quanto política. Sem a adesão de Ada aos planos maiores de Marcelo a relação fracassará. Ela acredita que tudo depende do indivíduo e suas escolhas, ao passo que o companheiro está atento ao contexto das relações ampliadas nas quais o EU se insere de forma responsável. Ada não compreende tanta inquietação. Mesmo assim, recebe um ultimato: deve se decidir; abandonar a vida confortável, mas vazia e desprovida de sentido do casamento com Mario; deixar de encarar a felicidade a partir de uma perspectiva individualista; unir-se integralmente ao amante nos seus sonhos coletivos. Em meio às discussões, praticamente negociações, ouve-se em alto e bom som: "A porra deste golpe militar é que impede que a gente possa estar do mesmo lado".


Ada (Isabella) e Marcelo (Oduvaldo Vianna Filho)


Um dos últimos atos dos dois é a visita às ruínas do casarão que serviu de pensão e foi incendiado pelo desespero de um poeta sem meios para pagar a estadia. Antes, fervilhava em vida. Agora, marcas escuras estão gravadas nas paredes que testemunharam sonhos de felicidade. Em alguns cômodos o teto desabou. No quarto onde o incêndio começou, Marcelo encontra volume chamuscado de Invenção de Orfeu, longo poema subjetivo de Jorge de Lima, dividido em 10 cantos. Os versos, livres ou rimados, compõem uma epopeia. O lirismo se casa à crua visceralidade; o profano se une ao sagrado; a aventura humana se projeta entre a placidez e o desespero de idealizado estado de plenitude ao qual se chega por passagens infernais e paradisíacas. A obra, familiar aos amantes, acirra o desencontro de ambos. Nela, Marcelo está inteiramente representado, justamente naquela casa reduzida a cinzas e escombros. A metáfora do Brasil do momento está posta. Segundo palavras do diretor, também se faz a correspondência com o incêndio criminoso que destruiu a sede da União Nacional dos Estudantes nos dias seguintes ao golpe de Estado.


A partir daí Ada deve se decidir. Procura o marido na fábrica. Visita a linha de montagem onde os operários cumprem dura jornada de trabalho. O barulho das máquinas a atordoa. Parece sentir o peso da estrutura desabando sobre seu corpo. Os trabalhadores se confundem às engrenagens. Apavorada, corre para fora. A seguir, tenta se misturar aos milhares de homens e mulheres à saída do expediente. Deles depende o seu padrão de vida. Não consegue encará-los. Evita individualizá-los. Tem diante de si uma massa informe e sem rosto. Certamente, toma consciência dos problemas de maior amplitude que afligem Marcelo e se percebe sem forças para embarcar em outra e desconhecida proposta de vida, que parece se afigurar quixotesca e inútil contra o poder de uma orgânica e impenetrável estrutural social. Sucumbe aos pesos da impotência, insignificância e condição de classe. O rompimento está materializado. Marcelo, confiante, aguardou por ela, inutilmente. O pacto é impossível. O tempo é de guerra e sem sol. Não há esperanças imediatas. Será preciso lutar.


A descida final de Marcelo (Oduvaldo Viana Filho)
"É um tempo de guerra/É um tempo sem sol"


O dia amanhece. O protagonista, frustrado, deixa a casa de Nestor. Desce rua praticamente vazia, prolongada por imensa escadaria. A canção de Edu Lobo e Gianfrancesco Guarnieri o acompanha em seus passos incertos. Encostada a um degrau uma criança pobre se aproxima e lhe estende a mão. Marcelo olha para ela, compungido, entre a dor e o horror. Retoma a descida, alternando passos lentos e acelerados. Às vezes estanca. Os olhos de Ada surgem num relance enquanto divisa o horizonte incerto. Encerra o trecho e desaparece; a canção também chega ao fim: "Se você chegar a ver/essa terra da amizade/onde o homem ajuda o homem/pense em nós só com bondade!/É um tempo de guerra/é um tempo sem sol/É um tempo de guerra/é um tempo sem sol/Essa terra eu não vou ver!".


Final mais premonitório, impossível, ainda mais se visto pelos que acompanharam de perto os percalços da trajetória brasileira nos 30 anos seguintes à realização. A arquitetura de O desafio permanece intacta, ousada, instigante, mesmo em sua concepção — enganadoramente — simples. O cinéfilo atento — também movido pelos imperativos do coração — deve se preparar para uma cena comovente, de alto impacto, em forma de homenagem referencial na relação do sertão ao "mar": Ada em primeiro plano, posicionada à esquerda do quadro, tem do outro lado o cartaz de Deus e o diabo na terra do sol enquanto se ouvem acordes da Bachiana número 5.


Bastidores da filmagem: com a objetiva na mão, o operador de câmera e diretor de fotografia Dib Lutfi se prepara para filmar Isabella - intérprete de Ada - em um dos mais belos e significativos planos do cinema brasileiro


Operadores de câmara e direção de fotografia (preto e branco): Dib Lutfi, Guido Cosulich. Imagens do Show Opinião: José Medeiros e Dib Lutfi. Sincronia de som: Eduardo Escorel. Som: Atlântida. Laboratório: Líder. Assistente de direção: Paulo Bastos Martins. Montagem: Ismar Porto, Miguel Borges. Negativo: Paula Cracel. Roteiro: Paulo César Saraceni, Vera Pedroso com base em história de Oduvaldo Vianna Filho. Músicas: É de manhã (Caetano Veloso), Arrastão (Vinícius de Moraes, Edu Lobo), com Elis Regina, Sonata K378 (Mozart), Bachianas n. 5 (Villa-Lobos), Minha desventura (Vinícius de Moraes, Carlos Lira), Notícia de jornal (Zé Keti), com Zé Keti, Carcará (João do Vale, José Cândido), com Maria Bethânia, Eu vivo num tempo de guerra (Edu Lobo, Gianfrancesco Guarnieri). Produção associada: Mario Fiorani. Decoração: José Henrique Bello. Assistente de câmera: José Medeiros. Joias de Isabella: Nathan. Penteados: Rosinha. Calçados: Fernando Bellini. Maquiagem: Germaine Monteil. Tecidos: Nuance. Tempo de exibição: 94 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1993)



[1] Cf. SARACENI, Paulo César. Por dentro do Cinema Novo: minha viagem. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. p. 195.
[2] Ibidem. p. 202.
[3] Ibidem. p. 196.
[4] Ibidem. p. 201.
[5] Ibidem. p. 201 e 202.
[6] Ibidem. p. 202.
[7] Os cortes no som atingiram as falas "É bom mergulhar na merda", "Vá à merda", "Merda", "Antes do golpe era assim" e"Agora mais do que nunca, acredito não podermos ser livres'".
[8] Cf. SARACENI, Paulo César. Op. cit. p. 198.
[9] Cf. Ibidem. p. 213.
[10] Cf. Ibidem.
[11] Cf.Ibidem.
[12] Cf. Ibidem. p. 212.
[13] " Eu vivo num tempo de guerra/Eu vivo num tempo sem sol/Só quem não sabe das coisas/É um homem capaz de rir/Ah, triste tempo presente/Em que falar de amor, de flor,/é esquecer que tanta gente/está sofrendo tanta dor/Todo mundo me diz/que eu devo comer e beber./Mas como é que eu posso comer?/Mas como é que eu posso beber?/Se eu sei que eu to tirando/o que eu vou comer e beber/de um irmão que tá com fome,/de um irmão que tá com sede./De um irmão./Mas mesmo assim,/eu como e bebo./Mas mesmo assim,/essa é a verdade!/Dizem crenças antigas/que viver não é lutar./Que sábio é o que consegue/ao mal com o bem pagar./Quem esquece a própria vontade/quem aceita não ter o seu desejo/é tido por todos um sábio/é isso que eu sempre vejo/é a isso que eu digo NÃO!/Eu sei que é preciso vencer/eu sei que é preciso brigar/eu sei que é preciso morrer/eu sei que é preciso matar!/É um tempo de guerra/é um tempo sem sol/É um tempo de guerra/é um tempo sem sol/sem sol, sem sol, tem dó/sem sol, sem sol, tem dó/Eu vivi na cidade no tempo da desordem/Eu vivi no meio da gente minha no tempo da revolta/Assim vivi os tempos que me deram pra viver/É um tempo de guerra/é um tempo sem sol/É um tempo de guerra/é um tempo sem sol/E você que me prossegue/e vai ver feliz a terra/lembre bem do nosso tempo/desse tempo que é de guerra/É um tempo de guerra/é um tempo sem sol/É um tempo de guerra/é um tempo sem sol/Veja bem que preparando/o caminho da amizade/não podemos ser amigos ao mal/ao mal vamos dar maldade!/É um tempo de guerra/é um tempo sem sol/É um tempo de guerra/é um tempo sem sol/Se você chegar a ver/essa terra da amizade/onde o homem ajuda o homem/pense em nós só com bondade!/É um tempo de guerra/é um tempo sem sol/É um tempo de guerra/é um tempo sem sol/Essa terra eu não vou ver!".