quarta-feira, 11 de novembro de 2015

EDUARDO COUTINHO: CINEASTA E DOCUMENTARISTA BRASILEIRO


Eduardo Coutinho (1933-2014)


Eduardo de Oliveira Coutinho queria ser advogado, mas o jornalismo, teatro e cinema lhe atravessaram o caminho. Na segunda metade dos anos 50 venceu concurso sobre Charles Chaplin. Com o dinheiro do prêmio se estabeleceu em Paris. Em 1957, matriculado no Institut des Hautes Études Cinématographiques (IDHEC), estudou direção e montagem.


Na volta ao Brasil, três anos depois, incorporou-se ao CPC da UNE (Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes). Em princípio esteve ligado aos grupos de teatro. Mas logo se aliou aos jovens realizadores do Cinema Novo, principalmente Leon Hirszman, Marcos Farias e Joaquim Pedro de Andrade — envolvidos na realização do episódico Cinco vezes favela (1962), do qual se tornou gerente de produção. Acompanhou as caravanas da UNE Volante pelos sertões do Nordeste brasileiro e conheceu Elizabeth Teixeira, viúva de João Pedro Teixeira — líder de trabalhadores rurais assassinado no município de Sapé, Pernambuco, em 1962, devido às mobilizações e reivindicações em prol da reforma agrária por conta das Ligas Camponesas de Francisco Julião.


Elizabeth Teixeira, viúva do líder João Pedro Teixeira, com os filhos


O acontecimento atraiu o interesse de Coutinho, ao qual planejou um filme estruturado como ficção de fundo histórico. As filmagens de Cabra marcado para morrer foram interrompidas pelo golpe de Estado de 1964 e consequente implantação da ditadura militar de 21 anos no Brasil. Os atores eram personagens reais que, de uma forma ou outra, vivenciarem os eventos. Dentre eles estava Elizabeth Teixeira — visada por policias e proprietários fundiários. Ela e a família tomaram a decisão de desaparecer, por segurança, após o golpe. Cada membro do grupo tomou paradeiro diferente e incerto. O material filmado foi dado como perdido após a prisão do diretor e membros da equipe por suspeita de subversão.


Cena da realização interrompida de Cabra marcado para morrer


Em 1981, passados 17 anos, o país respirava os ares da abertura política sob o mandato do General João Batista Figueiredo. Uma boa notícia animou Eduardo Coutinho. As imagens de Cabra marcado para morrer apareceram. Foram escondidas por um membro da equipe. O projeto, retomado, foi amplamente modificado. A realização passou a reconstituir, em forma de documentário, os eventos que lhe deram origem, e assumiu o compromisso de localizar os envolvidos nas filmagens — nunca mais vistos desde que foram abruptamente encerradas. O novo Cabra marcado para morrer conseguiu, após muita pesquisa, reencontrar Elizabeth Teixeira e filhos. Graças ao filme a família foi reunida. A realização atualiza a história das lutas dos trabalhadores rurais no Brasil, defende a necessidade imperiosa da reforma agrária, denuncia a concentração fundiária fortemente ampliada durante o regime militar e a constante insegurança em que viviam e ainda vivem as lideranças sindicais no campo. Concluído em 1984, chegou ao circuito exibidor também nesse ano.


Depois da interrupção das filmagens da primeira versão de Cabra Marcado para Morrer, Coutinho se aventurou no cinema de ficção. Dirigiu O pátio, segmento do episódico ABC do amor (1966) e O homem que comprou o mundo (1968). Continuou a ligação com Leon Hirszman, para quem escreveu os roteiros de A falecida (1965) — uma das melhores adaptações de Nelson Rodrigues — e Garota de Ipanema (1967). A atividade de roteirista prosseguiu na década seguinte: Os condenados (1973), de Zelito Viana, Lição de amor (1975), de Eduardo Escorel, e Dona Flor e seus dois maridos (1976), de Bruno Barreto. Na direção, enveredou pela paródia com Faustão (1971), no qual transpõe Falstaff — personagem de algumas peças de Shakespeare, imortalizado no cinema por Orson Welles em Falstaff - O toque da meia noite (Campanadas a medianoche, 1965) — para o universo do cangaço. Prossegue no jornalismo. Faz revisão e crítica de cinema para o Jornal do Brasil. A partir de 1975, integrado às equipes de reportagem da TV Globo, produz e dirige episódios para o programa Globo Repórter. É quando consolida a vocação de documentarista.


Cartaz do definitivo Cabra marcado para morrer com imagem de Elizabeth Teixeira


O trabalho na TV Globo avança até a retomada de Cabra Marcado para morrer. A carreira vitoriosa do documentário, artística e financeira, encoraja Coutinho a tentar a vida apenas como cineasta. Uma aposta arriscada, perdida para as crônicas instabilidades da realização cinematográfica no Brasil. Acaba prestando serviços — como diretor e autor de roteiros — para diversas organizações no campo do audiovisual. Realizou série para o Centro de Criação da Imagem Popular, centrada nos temas da Educação e Cidadania; voltou à TV, no caso à Rede Manchete, para roteirizar a série Noventa anos de cinema: uma aventura brasileira, dirigida por Eduardo Escorel e Roberto Feith, e Caminhos da sobrevivência, sobre São Paulo e a poluição.


Nesse período de incertezas realizou documentários curtos e médios que passaram praticamente despercebidos. Destacam-se: Santa Marta - Duas semanas no morro (1987), Volta Redonda - memorial da greve (1989), Boca de lixo (1993), Mulheres no front (1996) e Romeiros do Padre Cícero (1994) — encomendado pelo canal alemão ZDF Arte e apontado como insatisfatório pelo próprio realizador.


Em 1997 a TV Educativa (TVE) interrompeu antes do início a série Identidades Brasileiras, para a qual Coutinho executaria o trabalho de pesquisa. Porém, nem tudo foi perdido. Surgiu daí a ideia de um documentário sobre a religiosidade do brasileiro ou as diversas formas da relação popular com o sagrado. Santo forte, lançado em 1999 com apoio da Rio Filmes — presidida à época pelo jornalista e crítico José Carlos Avellar —, é um dos trabalhos mais inspirados e emocionantes do cineasta.


Cartaz de Santo forte - o renascimento de Eduardo Coutinho


Santo forte é a oportunidade de novo renascimento. A partir daí Coutinho consegue se estabelecer com certa regularidade na realização. Contribui para isso o apoio da Vídeo Filmes dos irmãos e cineastas João e Walter Moreira Salles. Desde então realizou ao menos sete documentários de renome, com boa repercussão, dentre os quais Babilônia 2000 (1999), Edifício Master (2002), Peões (2004) e As canções (2011). É premiado em diversas mostras e festivais; volta a ganhar o reconhecimento da crítica, como nos tempos de Cabra marcado para morrer. Em fevereiro de 2014, aos 80 anos, Coutinho foi assassinado em casa, pelo filho esquizofrênico. Na ocasião, finalizava documentário montado a partir de entrevistas com adolescentes matriculados em escolas públicas do Rio de Janeiro. O projeto foi concluído pelo colega, amigo e produtor João Moreira Salles. Ganhou o título de Últimas conversas e teve lançamento em 2015. Um ano antes de falecer, Coutinho recebeu homenagens da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e Festa Literária Internacional em Paraty (FLIP). É justamente reconhecido como o maior documentarista do cinema brasileiro.


Eduardo Coutinho durantes as filmagens de Babilônia 2000


FILMOGRAFIA E PRÊMIOS


1. O pacto, segmento para o episódico El ABC do amor (1966, 95 minutos). Rodolfo Kuhn e Hélvio Souto dirigiram, respectivamente, os segmentos Noche terrible e Mundo mágico.

2. O homem que comprou o mundo (1968, 90 minutos).

3. Faustão (1970, 103 minutos).

4. Cabra marcado para morrer (1984, 119 minutos). Recebeu o prêmio da FIPRESCI (Fédération Internationale de la Presse Cinematográfica) no Fórum Novo Cinema do Festival de Berlim (1985). Nos mesmos ano, fórum e festival mereceu o prêmio da Interfilm. Premiado com o Delfim de Ouro no Festival Internacional do Filme de Troia (1985).

5. Santa Marta - Duas semanas no morro (1987, 50 minutos).

6. Volta Redonda, o memorial da greve (1989, 40 minutos), codirigido por Sérgio Goldemberg.

7. O fio da memória (1991, 115 minutos). Premiado em caráter honorário com a Margarida de Prata da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), 1991.

8. A lei e a vida (1992, 34 minutos).

9. Boca de lixo (1993, 50 minutos). Recebeu o prêmio Margarida de Prata da CNBB (1994).

10. Os romeiros de Padre Cícero (1994, 35 minutos).

11. Seis histórias (1995, 27 minutos).

12. Mulheres no front (1996, 35 minutos).

13. Santo forte (1999, 80 minutos). Recebeu os troféus Candango de Melhor Filme e Melhor Roteiro no Festival de Brasília (1999). Fez jus ao Prêmio Especial do Júri e foi indicado ao Kikito de Ouro como Melhor Filme no Festival de Gramado (1999). Laureado como Melhor Filme pelo Serviço Social do Comércio (SESC), 1999. Recebeu a Margarida de Prata da CNBB, 1999, e o Troféu da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) como Melhor Filme, 2000.

14. Babilônia 2000 (1999, 80 minutos). Recebeu o Grande Prêmio Cinema Brasil de Melhor Documentário, 1999, quando também foi indicado na categoria de Melhor Direção. Mereceu o Troféu Passista de Melhor Fotografia em Documentário de Longa Metragem no Festival de Recife (2001) e o prêmio da APCA de Melhor Documentário (2002).

15. Porrada (2000, 5 minutos).

16. Edifício Master (2002, 110 minutos). Indicado ao Grande Prêmio Cinema Brasil de Melhor Documentário, Melhor Diretor e Melhor Roteiro Original (2002). Premiado com o Kikito de Ouro de Melhor Documentário Longo no Festival de Gramado (2002). Mereceu a Menção Especial como Melhor Documentário no Festival de Havana (2003). Laureado com a Margarida de Prata da CNBB (2002). Recebeu o Troféu APCA de Melhor Documentário (2002). Venceu o Prêmio da Crítica como Melhor Documentário no Festival Internacional do Filme de São Paulo (2002).


Cena de Edifício Master


17. Peões (2004, 85 minutos). Venceu o Troféu Candango de Melhor Filme e o Prêmio da Crítica no Festival de Brasília (2004). Recebeu o Troféu APCA de Melhor Filme (2005).



Cartaz de Peões


18. O Fim e o Princípio (2005, 110 minutos). Premiado pela Associação de Correspondentes da Imprensa Estrangeira no Brasil (ACIE) como Melhor Documentário (2006). Indicado ao Grande Prêmio Cinema Brasil de Melhor Diretor e Melhor Documentário (2005). Laureado pelo Júri como Melhor Direção de Documentário pelo Prêmio Contigo de Cinema (2006). Recebeu o Prêmio Humanitário no Festival Internacional do Filme de São Paulo (2005).


Momento de O fim e o princípio


19. Jogo da cena (2007, 100 minutos). Recebeu o Prêmio da ACIE como Melhor Documentário e foi indicado pela Melhor Direção (2008). Indicado ao Grande Prêmio Cinema Brasil por Melhor Roteiro Original (2008). Laureado com o Alhambra de Ouro no Festival Cines del Sur de Granada (2008). Premiado pelo Júri do Prêmio Contigo de Cinema por Melhor Direção de Documentário (2007). Premiado pelo SESC nas categorias de Melhor Filme e Melhor Diretor (2008).


Eduardo Coutinho entrevista a atriz Marília Pêra em Jogo de cena


20. Moscou (2009, 78 minutos). Recebeu o Prêmio da Critica como Melhor Documentário no Festival de Paulínia (2009). Indicado pelo Júri como Melhor Direção de Documentário ao Prêmio Contigo de Cinema (2009).


Momento de Moscou 


21. Um dia na vida (2010, 94 minutos).

22. As canções (2011, 90 minutos). Recebeu o Prêmio da ACIE como Melhor Documentário (2011). Indicado ao Grande Prêmio Cinema Brasil de Melhor Direção e Melhor Documentário (2011). Indicado pelo Júri na categoria de Melhor Direção em Documentário ao Prêmio Contigo de Cinema (2011). Mereceu o Prêmio Première Brazil de Melhor Documentário e Prêmio do Público no Festival Internacional do Filme do Rio de Janeiro (2011). Venceu o Prêmio do SESC como Melhor Documentário (2012).


Cartaz de As canções



23. Últimas conversas (2015, 85 minutos), finalizado por João Moreira Salles.


Eduardo Coutinho durante as filmagens de Peões


(José Eugenio Guimarães, 2015)

4 comentários:

  1. Qué bien nos lo cuentas, amigo. Muy interesante. Gracias por compartírnoslo.

    Abrazos

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    1. Gracias por el aprecio, José Valle Valdés, porque Eduardo Coutinho es importante, un cineasta que no merece ser olvidado.

      Abraços.

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  2. Eugenio,

    Não conheço profundamente o trabalho do Coutinho e, por não gostar de Cabra Marcado Para Morrer, assim como por ouvir elogios demais a fita, sinto-me na obrigação de rever com mais atenção e mais vontade este filme. Não é possível que somente eu não ame tanto esta fita. Irei por lá novamente.

    Por um outro lado, se eu não conhecesse 2 formidáveis trabalhos deste documentarista/diretor eu não teria conhecido um pouco mais outros lados da vida humana.

    E o Coutinho conseguiu me mostrar isto em Edificio Master/02 e em As Canções/11.

    São duas joias raras e além de preciosíssima do cinema brasileiro. Fitas que quem não as viu deve sair às carreiras para conhece-las, pois ali se consegue ver, captar e absorver, além de se sensibilizar profundamente, nos muitos instantes de muitas vidas e instantes onde muitos de nós estamos enquadrados fatalmente.

    Ser dono destas duas criações pode se fazer uma medição do que mais pode existir de perfeito e aproveitável de sua obra, razão pela qual caminho sempre de olhos atentos ao que se passa na TV, para o caso de não perder nada feito por este grande homem do cinema.
    .
    Edifício Master e As Canções não são dois filmes simples e sim dois preciosos achados dentro deste universo tão variável.

    jurandir_lima@bol.com.br

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    1. Jurandir,

      Já que gostou tanto dos preciosos EDIFÍCIO MASTER e AS CANÇÕES, procure ver, obrigatoriamente, SANTO FORTE. É um dos mais felizes e sinceros trabalhos que um cineasta poderia ter realizado. Veja-o, o quanto antes. Não ira se arrepender.

      Abraços.

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