domingo, 3 de fevereiro de 2013

A DOR DO INDIZÍVEL PELAS LENTES DE KANETO SHINDÔ

Essencialmente são apenas pai, mãe e dois filhos. Estão reduzidos ao básico mais extremo. Habitam e cultivam exíguo, íngreme e seco monturo largado em meio ao mar. A ilha nua (Hadaka no shima, 1961), de Kaneto Shindô, trata do indizível. Palavras lhe são inteiramente dispensáveis. O filme pode ser compreendido como um tratado sobre a condição humana. É, com todo o sentido, considerado o equivalente cinematográfico japonês para Vidas secas, de Graciliano Ramos.







A ilha nua
Hadaka no shima

Direção:
Kaneto Shindô
Produção:
Kindai Eiga Kyodai
Toho Company
Japão - 1961
Elenco:
Nobuko Otowa, Tayi Tonoyama, Shinji Tanaka, Masanori Horimoto.



O diretor Kaneto Shindô



O cinema neorrealista italiano foi pródigo na realização de filmes sobre a "condição humana". Mas, provavelmente, nenhuma das obras assinadas por Vittorio De Sica, Luchino Visconti, Roberto Rossellini e Federico Fellini — expoentes incontestes do movimento — levou a questão a limites tão extremos como o japonês Kaneto Shindô em A ilha nua, vencedor do Grande Prêmio do Festival de Moscou de 1961. É produção simples, de orçamento reduzidíssimo, que dispensa palavras para se comunicar. As imagens sinceras, comoventes e despojadas, captadas em preto-e-branco por Kyioshi Kuroda, preenchem a realização com elementos essenciais à compreensão. Mas não é fácil assisti-la. Do início ao fim a dor mais aguda se instala como companheira de viagem. A lha nua faz parte de um tipo de cinema cada vez mais raro atualmente: aquele que obriga à reflexão sobre nós mesmos, resgatando questões fundamentais sobre o "ser" e o "existir". Na atualidade, filmes assim foram reduzidos ao nível de abstrações inúteis frente à emergência de um tipo de pensamento que esgota a vida nos escaninhos do pragmatismo e da instrumentalização.


A ilha nua é crônica angustiante, lamento pungente e seco ajustado ao compasso das estações. Fala de pessoas condenadas a viver; obrigadas aos imperativos da adversidade que transforma cada dia num campo de batalha; envolvidas na rotina atroz de uma jornada de interminável sofrimento que somente a conformação e o silêncio podem abrandar. Os personagens anônimos — pai (Otowa), mãe (Tonoyama) e filhos (Tanaka e Orimoto) — têm existências reduzidas ao básico. Habitam pequena ilha costeira, de relevo íngreme e acidentado, similar a um calombo que se ergue desde os limites com o mar. O meio líquido circundante forma um cruel paradoxo com a falta de água potável no lugar. Dependem dela para tudo, principalmente para a irrigação dos cultivos aos quais se dedicam nos parcos espaços de terra aproveitável que sobram.



Pai, mãe e filhos: Nobuko Otowa, Tayi Tonoyama, Shinji Tanaka, Masanori Horimoto


Verão: os dias começam muito antes de o sol nascer. Pai e mãe atravessam a faixa líquida e salgada em barco a remo, em busca de água, no continente. Cada qual transporta dois pesados baldes ajustados nas extremidades de varas cuidadosamente apoiadas sobre os ombros. É dia claro quando retornam à ilha e começam a escalar, lenta e penosamente, a encosta íngreme e acidentada, evitando o mínimo derramamento. A subida, filmada sem pressa por uma câmera perspicaz, aguda na exposição de detalhes, é angustiante. Realizada a primeira tarefa diária, servem-se rapidamente do alimento preparado pelos filhos. Não há tempo a perder. Recomeça a lida. Com uma caneca o pai rega cuidadosamente as plantas, uma a uma. Passa o dia nessa atividade. A câmera focaliza o terreno seco, esturricado pelo sol, embebido pela água rapidamente absorvida.


A ilha nua: a condição humana reduzida ao mais básico dos níveis
  
Enquanto isso, a mãe cruza outra vez o mar. Leva o filho mais velho à escola e dois baldes que retornarão cheios. Ao outro filho deixa as atividades do lar, inclusive a pescaria que complementa a subsistência familiar. Ela passa o dia nos remos e no transporte de água para a plantação, subindo arqueada a encosta sob o peso dos baldes. Num descuido, escorrega e desperdiça todo um volume. O marido se desespera. Furioso, passa a agredi-la.Depois, ajuda-a com a sobra. A tarde se faz alta quando o último percurso do dia é realizado: ela volta à ilha com o filho, trazendo, como sempre, dois baldes repletos para as atividades domésticas e banho de todos. Na mesma água lavam-se os dois filhos, seguidos do pai e da mãe. Comem. A exaustão não impede os afazeres artesanais. O dia seguinte será igual a todos os outros. E assim vai.


Os 93 minutos de A ilha nua exasperam, principalmente pela total ausência de diálogo. O banimento completo da palavra, tão simbólica, humana e singular, dá a impressão da mais extrema desumanização. Parece que a elaboração cultural foi integralmente substituída pela dimensão física, que obriga os corpos à completa entrega na luta pela sobrevivência. As vidas presenciadas conjugam, praticamente, somente verbos alusivos ao esforço: carregar, subir, cultivar, trabalhar, comer, suportar etc. Tudo o que lembra carinho, afeto, amor está suprimido, contido, oculto pelo embrutecimento que impede contornos suportáveis ao viver.



Pai e mãe, marido e mulher: Nobuko Otowa e Tayi Tonoyama


Tanto sofrimento encontra explicação: em A ilha nua Kaneto Shindô reatualiza, em parte, lembranças da própria infância no seio de uma família pobre e numerosa do Japão Ocidental . um lugar conhecido por Mar Interior. As memórias do cineasta ficaram impregnadas pela visão do duro trabalho dos pais, entregues ao cultivo do arroz sob o abrasador sol de verão, e às penosas atividades de colheita e beneficiamento durante o outono. Mas é a imagem da mãe, sempre silenciosa, transportando sobre os ombros, dia após dia, "dois pesados baldes de água" — à semelhança da personagem interpretada por Tayi Tonoyama —, que mais impressões deixou no diretor. Principalmente pelo fato de que ela jamais extravasou qualquer palavra ou expressão de desabafo[1]. Por isso, o filme não apresenta diálogos[2]. O silêncio, por outro lado, comunica e valoriza a luta dos camponeses frente às limitações da terra e da natureza[3].


A mãe e esposa vivida por Tayi Tonoyama: as palavras são desnecessárias para expressar a dura labuta de todos os dias
  
Mas tudo tem seu tempo. Alguns momentos de catarse são permitidos. Parecem determinados por uma ordem previamente estabelecida pelo ritmo da vida e ajustados às oscilações da natureza. Assim, no outono, pouco antes da colheita, realizam-se festejos no continente, dos quais toda a família participa. É uma sequência que rapidamente se esgota, acentuando o caráter efêmero do evento. Dura o período necessário, suficiente à recomposição da humanidade dos personagens. É quando o espectador ouve os primeiros sons humanos, ecos de cantos e risos somente, passados 40 minutos de exibição.


Iniciada a colheita, tudo volta ao normal. Uma etapa de muito trabalho dá lugar a outra, de beneficiamento e embalagem da produção, embarcada e comercializada na cidade. Feito isso, o casal volta para casa com alguns víveres, diferentes dos costumeiros. No fim do outono, um acontecimento fortuito é motivo de alegria para todos: os filhos pescam enorme peixe, mantido vivo em aquário natural cavado na rocha e, depois, vendido na cidade. Com o dinheiro apurado, a família se diverte: almoça fora, passeia, adquire roupas. Novos risos, os últimos, são ouvidos aos 52 minutos da projeção.


O inverno começa, época chuvosa dedicada à colheita de algas que adubam o solo para o próximo cultivo. Com menor intensidade prossegue a busca por água. A preocupação é com a precipitação excessiva, que pode inviabilizar o solo preparado para o semeio na entrada da primavera quando, novamente, maiores volumes de água se farão necessários. Na entrada dessa estação a tragédia se abate sobre a família. Falece o filho mais velho, esperança de futuro melhor.


O sepultamento do filho mais velho com a presença dos colegas da escola


Nas sequências em torno da morte do menino, a câmera de Kaneto Shindô faz viva exposição do desespero e da impotência diante do imponderável. Ordena tomadas que acentuam, nos personagens e no espectador, a sensação de pequenez, fragilidade e inutilidade. Pai e mãe estão fora, buscando água. Na ilha, o primogênito jaz no chão da casa. Enquanto isso, o irmão movimenta-se desesperado. Sai repetidas vezes para divisar o mar, sempre vazio. Por fim, avista os pais e acena. O gesto é imediatamente compreendido: o pior aconteceu. Momentos antes, o espectador foi levado à mesma conclusão. No barco, as remadas aumentam em intensidade. Mas o tempo parece congelado; o espaço a romper assemelha-se ao sem fim. Os planos transmitem a estranha e paradoxal sensação da imobilidade que se instala nos momentos de tragédia e desespero, quando, apesar de toda a pressa, aparentemente nada parece fluir ou sair do lugar. 


Pai e mãe finalmente chegam. Ela corre a amparar o filho. Ele retorna ao barco, daí ao continente, em busca do médico que demora a ser encontrado. A câmera acompanha a corrida do pai, de casa em casa, estrada afora. Algumas vezes se afasta e se eleva, até reduzi-lo a um ponto insignificante em desabalada carreira pelo vazio. Por fim, o doutor é localizado. Segue-se a muda travessia. Mas é tarde para tudo. Ao enterro, realizado na ilha, comparecem a professora e os colegas da escola. Pai e mãe transportam o caixão. Estão contritos, calando a dor estampada em rostos que revelam dureza, inexpressividade e mutismo. Não há choro, apenas conformação ao inexorável. Mas é explícita a sensação de dor e perda. A imobilidade é suficiente para descrevê-la e realçá-la. De repente a mãe corre para casa. Volta com um brinquedo do filho, depositado na cova. Silenciosos e ordenados, os companheiros de escola auxiliam o pai a concluir o sepultamento num plano de pura comoção, o que não parece nada diante de um filme o tempo todo comovedor.



Acima e abaixo, a mãe e esposa vivida por Tayi Tonoyama

A vida continua. O filho experimenta a perda e a solidão, acompanhando, inquieto, a partida do barco que devolve ao continente os colegas do irmão. Mas não há tempo para luto e choro. Pai e mãe retomam às atividades quotidianas, de buscar água e cultivar. Nesses instantes finais, a personagem materna deixa explodir todo o inconformismo represado. Lança toda a água ao solo, permitindo-se um pranto aliviador. O marido, com o semblante mudo, não esboça o menor gesto. Somente observa e compreende. Logo volta à faina. Ela, numa expressão que mistura raiva, surpresa e vergonha, estanca, enxuga a face e se ergue. Retoma também o trabalho. O filme chega ao fim. A câmera se eleva e abandona os personagens no topo do calombo, até isolá-los no meio do oceano imutável.


A solidão do filho que resta: esperança de dias melhores?
  
As principais críticas ao filme foram praticamente unânimes em apontar a inadequação do comentário musical de Kikaru Kayashi, considerado monótono, medíocre, repetitivo e excessivamente ocidental. As adjetivações parecem justas. Mesmo assim, a trilha soa adequada aos propósitos de Shindô. Afinal, ilustra vidas monótonas, medíocres e repetitivas. Traduz com justeza o que as imagens comunicam.





Roteiro: Kaneto Shindô. Fotografia (preto-e-branco): Kiyoshi Kuroda. Música: Hikaru Hayashi. Assistentes de direção: Mitsunori Kanaoka, Takahisa Katsume. Tempo de exibição: 93 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1998)


[1] Cf. SADOUL, Georges. Dicionário de filmes. Porto Alegre: L&PM, 1993. p. 195.
[2] Ibidem.
[3] Ibidem.