Alguns filmes são pródigos em conduzir as plateias por
indescritíveis jornadas sensoriais. Vê-los somente uma vez jamais será o
bastante. É o caso, segundo meus critérios, de Lawrence da Arábia (Lawrence
of Arabia, 1962), de David Lean; 2001: uma odisseia no espaço (2001:
a space odyssey, 1968), de Stanley Kubrick; Um rosto na noite (Le
notti biachi, 1957), de Luchino Visconti; Limite (1931), de Mário
Peixoto; Terra em transe (1967), de Glauber Rocha; As 4 faces do medo (Kaidan,
1964), de Masaki Kobayashi; Rastros de ódio (The
searchers, 1956), de John Ford; Solaris (Solyaris, 1972), de
Andrei Tarkovsky; e, desse mesmo diretor, O espelho (Zerkalo, 1974). São
realizações que elevam. Deixam o espectador humanamente engrandecido e,
paradoxalmente, nunca completamente saciado. Sentirá a compreensível compulsão
de revisitá-las periodicamente, indefinidamente, sempre como se fosse a
primeira vez. Algo de novo permanentemente se revelará, transformando-as em
experiências intermináveis. Já perdi a conta de quantos turnos reservei à
redescoberta de O espelho, desde 1992, quando do primeiro encontro com este
radical mergulho do cinema na subjetividade. Absorvê-lo no sentido meramente
racional é impossível. Diante das imagens oníricas obtidas pela direção de
fotografia de Georgii Rerberg o melhor, mesmo, é se deixar levar, e guardar a
certeza de voltar a elas em atendimento aos inexplicáveis anseios disto que
chamamos de alma. É um dos filmes mais carregados de afetos e referência
pessoais. Tais características, felizmente, não valem somente para o cineasta. Atingem
profundamente o âmago dos espectadores dispostos a acompanhar uma urgente e
irrecusável prestação de contas pelas vias da rememoração. Se há muita
religiosidade no cinema, O espelho é uma das melhores
oportunidades a um religare. A
apreciação a seguir é de 1992.
O espelho
Zerkalo
Direção:
Andrei Tarkovsky
Produção:
Erik Waisberg
Mosfilm
URSS — 1974
Elenco:
Margarita Terekhova, Ignat
Daniksev, Larisa Tarkovskaya, Anatny Solonitzin, Nikolai Grinko, Alla Demidova,
Tamara Ogoradnikova, Yuriy Nazarov, Oleg Yankovsky, Filipp Yankovsky, Yuri Sventisov,
Tamara Reshetnikova, Innokentiy Smoktunovskiy, Arseniy Tarkovskiy, E. Del
Bosque, Ángel Gutiérrez, Tatiana Del Bosque, Teresa Del Bosque, L. Correcer,
Diego García, Teresa Rames e os não creditados Olga Kizilova, Aleksandr
Misharin.
O cineasta Andrei Tarkovsky Abaixo, na preparação da cena de levitação da personagem interpretada por Margarita Terekhova em O espelho |
Agostinho de
Hipona — o santo — escreveu provavelmente em Confissões: "A
verdadeira vida é a memória". Não há, aqui, o propósito de recuperar o
sentido literal desse dizer. Tem-se apenas a intenção de frisar como perfeitamente
se ajustam a este enigmático e belíssimo O espelho, o mais pessoal e difícil trabalho
de Andrei Tarkovsky. Provavelmente, é a mais bem acabada e radical experiência
de mergulho do cinema na subjetividade. É a sétima realização do cineasta.
Sucede a Solaris (Solyaris, 1972). Teve parto dos mais
complicados devido aos pendores dos burocratas da Goskino — a estatal de cinema
da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), responsável pela
aprovação dos projetos que resultariam em filmes —, sempre obediente aos
estreitos limites da objetividade do Realismo Socialista. Diante de tão rígidos
cânones, O espelho é, no mínimo, desconcertante. Para começar, não conta
uma história no sentido tradicional, à qual a maioria dos espectadores foi
(mal) habituada. Quase tudo o que se vê está mergulhado em simbolismo e carece
de profundo trabalho de interpretação — um permanente esforço de extração de
significados. Não é filme para plateias simplesmente amestradas ao consumo
passivo de imagens.
Como opera a
memória, ainda mais ao processar todo um conjunto de lembranças de uma história
de longo curso, submetida à urgência da prestação de contas com a experiência
vivida? Certamente, não haverá ordenação objetiva das rememorações, capaz de recuperar
a integridade de eventos, sonhos, anseios, relações, emoções e dramas
experimentados segundo o ritmo cronológico da vida. Não há associação entre
memória e ordenamento objetivo. Reminiscências puxam outras, totalmente
diferentes. Recordações são recuperadas e reordenadas segundo circunstâncias as
mais diversas, sem sentido ou coerência, por maior que seja o esforço mental
para lhes atribuir lógica e consistência da parte de quem rememora. Uma dada
memória não existe em campo próprio, particular e íntegro. Conecta-se a outros
percursos existenciais, sujeita-se a fantasias, omissões, confusões,
atordoamentos, enfim, a toda sorte de impactos. O que parecia claro em uma
época pode ser envolvido na mais completa obscuridade em outra; ou camuflado por
tons cinzentos favoráveis às miragens e invenções.
Como atribuir
sentido a um turbilhão de recordações? Pode-se inferir que, de início, Tarkovsky
tenha concebido a memória como um todo complexo e coerente, mas tão frágil como
o vidro de um espelho, pronto a se romper em múltiplos fragmentos de tamanhos
variados e lançados a distâncias diversas. Alguns cacos serão diminutos,
outros, microscópicos. Não será possível processá-los; talvez nem sejam
encontrados. O que sobra da fragmentação são blocos de tamanhos diferenciados,
uma dispersão de lembranças espatifadas, incompletas, vazias e não lineares.
Quanto mais avançado em idade é alguém que recorda, mais frágil, pode-se geralmente
dizer, será o trabalho de atribuir sentido às lembranças, de organizar os
blocos rompidos. Assim se apresenta O espelho. É um filme estruturado na
forma de pequenos conjuntos narrativos, esparsos, cada qual contendo fragmentos
de tempo que desorganizam o continuum
entre passado, presente e futuro. Nenhuma dessas estações se assoma objetiva em
sua totalidade. Ou assim são até certo ponto, pois a imaginação — com capacidades
para fantasiar, idealizar e confundir — transforma-as em dados plenamente
subjetivos, produtos de emoções, paixões, racionalizações e afetividades.
Não é à toa que O espelho,
ainda em projeto, embaralhou as cabeças dos burocratas da Goskino, prisioneiros
da lógica objetiva e linear. Tinham diante de si as intenções de um filme que
só poderia encontrar plena forma de comunicação se as imagens se expressassem
como o mais metafórico dos poemas, com os fragmentos de lembranças trabalhados quais
versos de uma epopeia da subjetividade. Além desse entrave, Tarkovsky se
defrontou consigo mesmo. Ao que se sabe, a partir do próprio cineasta, desde
1964 afloraram as primeiras concepções de O espelho. A partir daí, em parceria
com Aleksandr Misharin, se entregou à elaboração do roteiro sujeito a diversas
variações. Até a concretização da obra, em 1975, ele se debruçou inúmeras vezes
sobre o material filmado. O corte final, satisfatório, só foi obtido na
trigésima segunda edição.
O espelho é pleno de afeto
e referências pessoais. Percorre, acima de tudo, as memórias do cineasta.
Porém, não é apenas o indivíduo Tarkovsky — como instância fechada nela mesma —
que alimenta o filme. A história política e social russo-soviética está
presente, não apenas internamente. Imagens de arquivo recuperam momentos do
envolvimento do país com a Guerra Civil Espanhola, Segunda Guerra Mundial e
Revolução Chinesa. Também há uma infinidade de alusões às artes europeias em
geral, nos campos da literatura, música e pintura. A música tem importância
fundamental no acompanhamento do lento e reflexivo fluxo de imagens, nas quais
parecem se dissolver os acordes de Pergolesi, Purcel e Bach, sem esquecer a
pontuação de Eduard Artemiev, composta originalmente para o filme.
Se há uma
finalidade plenamente racional, com sentido cartesiano, em O espelho, é a de revelar
a matéria básica que compõe a humanidade e da qual se separou em função dos
ordenamentos e processos que impuseram a vitória do imediatismo e da
instrumentalização. Logo no começo, envolvidos na grandiosidade verde de um
cenário natural, a mãe Maroussia — uma das personagens interpretadas por
Margarita Terekhova — está sentada sobre uma cerca, entregue à desinteressada
contemplação ou envolvida nos próprios pensamentos. O médico vivido por
Anatoliy Solonitsyn, de passagem, solicita informações. Aproxima-se, como se
estivesse animado pela elementar disposição de estar em contato com outra
pessoa e confabular. Buscando sintonia com Maroussia, adianta: "Não
estamos confiando na natureza e em nós, esquecemos o tempo de parar e
pensar". As pessoas, tão apressadas, perdem contato com o que realmente
importa: o instante da reflexão e absorção da realidade circundante. Dispor
desse tempo é essencial para não nos tornarmos escravos de fluxos organizados à
nossa revelia. Nesse desatino, perde-se o que é essencial. O espelho é um esforço de
domar o tempo fugidio, de refletir sobre ele, a nossa condição e os significados.
Margarita Terekhova como Maroussia |
Maroussia (Margarita Terekhova) e o médico (Anatoliy Solonitsyn) |
A realização
transcende os acontecimentos em tela e atinge de cheio os espectadores. Diante
das reflexões tão pessoais dos personagens, o público é convidado a elaborar as
suas próprias, a congelar o tempo e reexaminar trajetórias vividas: refazer o
presente alimentado pelo passado e a partir daí ensaiar projeções a uma
realidade somente idealizada, feita de futuro. Viver plenamente, segundo o
filme, envolve imaginar, especular e refletir sobre as três dimensões temporais. Não para menos, graças
a esses verbos, o nome da realização é O espelho. O espelho, utensílio,
forma imagens pelas quais esquadrinhamos, elucubramos, retratamos,
reproduzimos, representamos, espelhamos, revelamos, projetamos, aparecemos e
transparecemos. O título é um ensaio pelo qual o cineasta paralisa diversos
recortes temporais para rever, reexaminar, pesar e ponderar sobre as
influências dos mais diferentes e marcantes eventos, e os significados que ficaram
gravados na memória.
Concluída a
montagem, os problemas com a burocracia soviética perduraram. A duras penas houve
liberação para exibição limitada no próprio território da URSS. A participação
no Festival de Cannes foi bloqueada. Felizmente, o Brasil não foi atingido.
Aqui O
espelho cumpriu carreira, graças principalmente ao VHS.
Em cena estão
reminiscências do próprio Tarkovsky. A realização é, na justa medida,
autobiográfica. Inicia-se nos anos 30 e se prolonga, com idas e vindas, até
meados da década de 70. O cineasta assume a identidade de Aleksei desde os
cinco anos de idade. Nessa etapa, é vivido por Filipp Yankovskiy, e na pré-adolescência
por Ignat Daniltsev. Porém, são as rememorações e delírios de Aleksei adulto —
manifestadas basicamente pela voz de Innokentiy Smoktunovskiy —, doente e à
beira da morte, que formam o escoadouro de imagens de O espelho. O personagem, poeta,
luta para fazer o balanço da vida e, no limite, averiguar se o viver valeu a
pena. A fragilidade provocada pela doença dificulta a prestação de contas. Incapaz
de produzir uma sequência coerente dos eventos essenciais de seu percurso,
Aleksei procura, do jeito que pode, se lembrar ao máximo do que possível for. É
uma missão urgente, a cobrar o sacrifício de critérios racionais. Emana da
rememoração um amálgama de imagens dissociadas acerca de dados eventos, às
vezes entrelaçadas a outras, na tentativa de reconstruir experiências da
infância à adolescência, da vida conjugal, dos problemas do amor, da amargura
e, por fim, da solidão. Em meio a tudo sobram flashes da história maior à qual o indivíduo está ligado,
percorrida sobre o sempre visível pano de fundo de uma natureza viva, envolvente
e permanente.
O jovem Aleksei (Ignat Daniltsev) |
A memória
acelerada de Aleksei gera uma narrativa complexa. Percorre diversas estações
temporais da trajetória de um indivíduo imerso em dado contexto político e
social. Considera a atmosfera tensa da URSS no duro período dos expurgos
stalinistas e as repercussões decorrentes dos temores aí acumulados no seio da
família. A mãe, Maroussia, é funcionária da gráfica estatal e corre riscos de
cometer erros que poderiam ser fatais. Os anos de forte privação material vividos
pelo país durante a Segunda Guerra Mundial, quando o grosso da população se
organizou como podia para sobreviver, são igualmente considerados: Maroussia
complementa os rendimentos domésticos no pequeno e ambulante comércio de bijuterias;
aos filhos faltam calçados; as vestes estão rotas.
Maroussia (Margarita Terekhova) corre para a gráfica na qual trabalha |
Não importa em
qual tempo se localize a narrativa, as imagens são sempre perpassadas por um
clima de mistério, como se fossem captadas diretamente de um sonho traduzido em
forma de suave poesia impregnada por sensações de nostalgia, melancolia,
abandono e carinho.
Também se percebe
o esforço a um só tempo físico e mental de Aleksei para dar forma às
divagações, como uma criança balbuciante no ardente desejo de pronunciar
corretamente as palavras. Essa dificuldade do narrador é problematizada por
Tarkovsky logo no começo. Imagens em preto e branco apresentam o atendimento de
uma fonoaudióloga a um jovem com dificuldades para falar. A profissional, por
meio da hipnose, auxilia-o a organizar pensamentos e sons para, enfim,
compreender e se fazer compreendido. O paciente — qual Aleksei em corrida
contra o relógio — também tenta recuperar o período que passou impedido de canalizar
ideias e sensações com outros. Ainda está inseguro e confuso. De início, após a
cura, nem tudo para ele e interlocutores soará claro. Mas o processo avançará rumo
à paulatina e coerente compreensão de significados. De certo modo, o mesmo acontece
a Aleksei, porém, em sentido oposto. O narrador busca no passado as muitas
linhas de uma história prestes a encerrar. O rapaz curado pela fonoaudióloga
ainda escreverá a sua. Portanto, um espelho de possibilidades abertas o aguarda.
Aleksei, da mesmo maneira, está diante da própria realidade espelhada. Porém,
em seu caso particular, tenta o ordenamento do que ficou para trás, também com
coerência. A lógica que preside a construção de O espelho é de outra
ordem: emocional e poética; livre e errática. Exemplo transparente disso é o
pássaro prisioneiro e moribundo visto em uma mesa de cabeceira. Milagrosamente
renasce ao ser posto em liberdade, condição que o obriga a recuperar, do jeito
que puder, o dom perdido de voar.
O espelho, pausado e
contemplativo, também expande as fronteiras do real. Aliás, melhor seria dizer
que faz pouco caso da realidade como instância objetiva, de ordem geral, a
partir da clara opção de reinterpretá-la como anseio de uma subjetividade
delirante, sonhadora, nostálgica e imaginativa. O real, entendido como tempo
linear, é alterado aleatoriamente ou ao bel prazer do cineasta imerso na
consciência de Aleksei. O substrato natural — matas, rios, chuvas, chamas — é
transformado numa espécie de morada do encantado, um ente de direito próprio,
suprarreal. Chuva e vento, sempre presentes, ganham vida — algo sem paralelo em
todo o cinema.
Maroussia (Margarita Terekhova) diante do celeiro em chamas |
O andamento
narrativo é propositalmente lento. Os planos são longos. Os movimentos
intraplanos são suaves. Tudo é concebido para facilitar ao espectador a plena
imersão em um mundo de contemplação e a absorção de considerável quantidade de
finíssimos detalhes visuais. Tem-se de fato a sensação de se ver o tempo
passar, em todas as suas tessituras, como convém a um trabalho de rememoração.
A presença
materna é uma constante. Margarita Terekhova faz Maroussia, a mãe de Aleksei,
mas também fornece vida a Natalya, esposa do poeta moribundo e mãe de Ignat
(Daniltsev). Entretanto, a própria mãe do cineasta, Maria Ivanova Vishnyakova —
reconhecidamente, a figura mais importante da vida de Tarkovsky — aparece como
atriz não creditada, em linha de continuidade com as representações de
Terekhova. Dadas as idades reais e díspares de ambas, percebe-se que estão
separadas no tempo, mesmo que dividam a cena como nos belíssimos e intrigantes momentos
finais. É uma forma de O espelho comunicar o sentido da
permanência ou da imortalidade. Somos alimentados por outros que nos precederam
numa existência que se faz em
fluxo. A relação do presente com o passado, e do futuro que
se alimenta de ambos, é informada pelo tratamento conferido até aos objetos.
Não são coisas, simplesmente. A mesa utilizada pelo neto serviu ao pai e ao avô,
está impregnada de tempo e memória. Os espelhos nos quais os personagens se
miram já refletiram as imagens dos mais velhos e falecidos, recuperados apenas
pela recordação. A vida é um fio contínuo, que ata o indivíduo aos que se foram
e ao porvir.
Maroussia (Margarita Terekhova) |
Outras
personagens reais e essenciais à biografia de Tarkovsky marcam presença: Larissa
Tarkovskaya, segunda esposa do cineasta, surge em um interlúdio como a dona de
casa transformada em potencial cliente de Maroussia. A filha Olga Kizilova atua
como interesse amoroso de Aleksei. Arseny Tarkovsky, pai do diretor e um dos
grandes poetas russos — do qual o filho cresceu afastado — comparece
rapidamente, interpretado por Oleg Yankovskiy. Porém, é a própria voz paterna
que narra os poemas que vez ou outra comentam e ilustram passagens
significativamente relevantes do filme.
Outro fator de
extrema importância afetiva e com vistas à autenticidade exigiu, da parte de
Tarkovsky, a reconstrução da casa onde passou a infância e que serve de cenário
ao filme. O lugar não mais existia quando as filmagens estavam por começar.
Restavam, no solo, apenas as marcas dos alicerces. Com a ajuda de fotografias a
edificação foi plenamente refeita, o que levou às lágrimas Maria Ivanova
Vishnyakova.
Natalya (Margarita Terekhova) e Ignat (Ignat Daniltsev) |
A trilha musical
sempre foi elemento de prestígio nos filmes de Tarkovsky, não apenas para
comentar determinados trechos ou servir de marcação a personagens. Em geral,
são composições que, em conjunto, apreendem todos os significados das
realizações. Em O espelho não seria diferente. Os temas originais de Eduard
Artemiev, somados a movimentos rigorosamente escolhidos de Bach, Pergolesi e
Purcell, formam um repertório conveniente a uma ideia de sacralização, no
sentido de que contribuem à imobilização do tempo — a eternização.
Maria IvanovaVishnyakova, mãe de Andrei Tarkovsky, e Margarita Terekhova |
A direção de
fotografia a cargo de Georgii Rerberg, um dos mais famosos cinegrafistas russos,
é simplesmente brilhante. São imagens oníricas, em tomadas internas a revelar intimidades,
ou nas externas que evocam a dimensão anímica da natureza. Poucas vezes o preto
e branco foi tão bem conjugado às cores. Há instantes sombrios, revestidos por
aura de assombro, que comunicam estados de tensão, principalmente em sequências
marcadas pela ausência de cor. Já em muitas passagens coloridas, geralmente em
contato com a natureza, a câmera de Rerberg adquire um dinamismo ímpar, com
alto poder de criar sensações. A objetiva parece flutuar pelo cenário, sem
pressa, ressaltando detalhes de personagens e objetos, contribuindo para
instalar na sensibilidade do espectador o estado contemplativo ou meditativo,
capaz de dissolver o tempo, fundamental para a experiência estética de O
espelho se fazer completa. Como a maior parte da narrativa é construída
pelas memórias do narrador, essa opção funciona muito bem. A câmera esculpe
imagens quais estados mentais de alguém em viagem por lembranças muito
próprias, na busca daquilo que é mais carregado de sentido e proximidade:
palavras e olhares da mãe, folhas carregadas pelo vento, o estado de
instrospecção dos filhos, o sorriso da esposa, a chuva revivificadora. O espelho
é a mente em movimento.
Os espectadores que se deixarem capturar por esse inventário
afetivo de sons e imagens não ficarão imunes. Serão convidados a se exercitar,
a explorar a própria capacidade de perceber e apreender flagrantes das próprias
vidas e a interagir afetivamente com esses momentos únicos.
Música: Eduard Artemiev, movimentos de Bach, Pergolesi, Purcell.
Roteiro: Aleksandr Misharin, Andrei
Tarkovski. Poemas: Arseniy Tarkovski. Direção
de fotografia (preto e branco, cores): Georgii Rerberg. Cenografia: Nikolay Dvigubskiy. Montagem: Lyudmila Feyginova. Figurinos: Nina Fomina. Maquiagem: Vera Rudina. Assistentes de direção: Mariya
Chugunova, Larisa Tarkovskaya. Planejamento
do set: A. Merkulov. Som: Semyon
Litvinov. Efeitos especiais: Yuri
Potapov. Operador de câmera: Alexey
Nikolaev. Efeitos especiais:
Mosfilm. Tempo de exibição: 110
minutos.
(José Eugenio Guimaraes, 1992)
Deu vontade de assistir e passar algum tempo nessa viagem no tempo passado, presenteando-o e projetando-o para um futuro que espero ser melhor que hoje. Obrigada por nos conduzir a esses estímulos tão pouco usuais nos tempos presentes.
ResponderExcluirLérida, querida!;
ExcluirNo Youtube, encontrará cópia completa e legendada de "O espelho". VEJA! Aí está o link: https://www.youtube.com/watch?v=41mHMd0aXcA.
Beijos.
Hola Eugenio, cuanta razón tienes en que hay películas que son una necesidad el visitarlas varias veces ya que en cada nuevo visionado además de disfrutar, siempre se recogen matices nuevos que tal vez antes no te hubieras dado cuenta. Personalmente hay películas que he visto entre 10 y quince veces. Respecto a la película evaluada hoy, El Espejo me ha despertado gran interés, no la conocía y me gustaría verla.
ResponderExcluirUn excelente análisis como es habitual en ti, mis sinceras felicitaciones.
Un abrazo Eugenio.
Hola, Miguel;
ExcluirEsta película, según mis criterios, es obligatoria. No deje de verla si haya la oportunidad. Tal vez a encuentre en el Youtube. Sé que en esta sítio hay copia legendada en portugués. Ciertamente, encontrará alguna versión con legendas en español.
Saludos y fuerte abrazo.