Em 1994, nos Estados Unidos, O
preço do trigo (A corner in wheat) mereceu justa inclusão
no National Film Registry da Biblioteca do Congresso. Ganhou o status de obra
de preservação obrigatória. Ao concebê-lo em 1909, David Wark Griffith já
contava com aproximados 190 títulos na filmografia. Estreou como cineasta em
1908, 17 meses antes. Depois de muito observar e experimentar, arriscou-se com
uma narrativa ousada para a época. Conta, em 14 minutos, história complexa e
diferenciada. Certamente, apresentou dificuldades para ser plenamente
compreendida pelo público. A ação é distribuída em seis cenários ou
blocos narrativos articulados pelo recurso da montagem paralela. Econômico na
inserção de intertítulos explicativos, Griffith confiou plenamente na capacidade
dos espectadores para atribuir sentido e coesão ao conjunto. O
preço do trigo é um conto moral como as parábolas bíblicas; um libelo
contra a especulação, a ganância e a exploração dos pobres. Também pode ser percebido
como porta-voz de mensagens anticapitalistas. Não custa imaginar o potencial
revolucionário que teria como instrumento de agitação, conscientização e
propaganda. Se viesse à luz nos anos 40, o diretor correria sério risco de ser
denunciado ao Comitê de Investigação de Atividades Antiamericanas do Senador
Joseph McCarthy. Conservador e puritano descendente de aristocrática família
sulista arruinada pela Guerra de Secessão, Griffith geralmente se posicionava
ao lado dos socialmente excluídos em muitos filmes que realizou — apesar do
acintoso e grotesco racismo de O nascimento de uma nação (The
birth of a nation, 1914). Filmou mais de 500 títulos em 23 anos de
carreira. Desse conjunto, O preço do trigo é pioneiro na
revelação de uma consciência socialmente comprometida. Segue apreciação escrita
em 1985.
O preço do trigo
A corner in wheat
Direção:
David Wark Griffith
Produção:
American Briograph
EUA — 1909
Elenco:
Os não creditados Frank Powell,
Grace Henderson, James Kirkwood, Linda Arvidson, W. Chrystie Miller, Gladys Egan,
Henry B. Walthall, Kate Bruce, William J. Butler, Charles Craig, Frank Evans,
Edith Haldeman, Robert Harron, Ruth Hart, Arthur V. Johnson, Henry Lehrman,
Jeanie Macpherson, Owen Moore, George Nichols, Anthony O'Sullivan, Billy Quirk,
Gertrude Robinson, Mack Sennett, Blanche Sweet, Dorothy West.
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O cineasta pioneiro David Wark Griffith |
Além da
curiosidade cinéfila, sinto enorme prazer em ver ou rever os filmes marcantes
dos primeiros anos do cinema — como o pouco referenciado e praticamente
esquecido O preço do trigo. É fascinante acompanhar os esforços dos
primeiros cineastas para romper com a simplicidade dos registros objetivos de
flagrantes da vida real e enveredar por trilhas abertas pela imaginação. Ou
iniciar pesquisas por processos que permitissem contar histórias mais complexas
e diferenciadas. Aos olhos de hoje, frente aos avanços da narrativa fílmica, o
título em apreço, de 1909, é estruturalmente singelo em seus parcos 14 minutos
de duração. No entanto, expõe história multifacetada que, certamente, apresentou
dificuldades à plena compreensão das plateias do final da primeira década do
século 20. Com o agravante de que é distribuída por cenários distantes uns dos
outros e alguns são praticamente estanques. Portanto, via de regra, não há qualquer
interação entre os personagens dos seis blocos narrativos: a plantação de
trigo, o escritório do especulador, a padaria, a sala de jantar/festas, a bolsa
de valores e os silos de armazenamento do cereal. Todavia, tudo se articula
maravilhosamente bem. O preço do trigo é conjunto dos mais
integrados, coerentes e dinâmicos da primeira dentição do cinema. Ao mesmo
tempo em que tecia os fios de uma narrativa complicada para “aqueles tempos”,
Griffith não teve receios em tratar os simplórios espectadores como gente dotada
de racionalidade e perspicácia, apta a interagir inteligentemente com as
imagens e compreender relações de causa e efeito.
Griffith estreou
no cinema em 1908, com As aventuras de Dollie (The
adventures of Dollie). Em pouco mais de 17 meses, até dirigir O
preço do trigo, trouxe à luz cerca de 190 títulos. Durante esse tempo,
nada inventou. Simplesmente observou o trabalho de colegas, organizou ideias e
materiais, experimentou técnicas e aperfeiçoou processos — principalmente de
Edwin S. Porter, responsável por O grande roubo do trem (The
great train robbery, 1903). Nesse filme, ações simultâneas em
diferentes locais foram combinadas pela atualmente comum e essencial montagem
paralela. Griffith também estudou o tempo de duração dos planos. Com isso, dotou-os
de especificidades dramáticas em acordo com o pretendido por interpretações,
ângulos, iluminação e enquadramentos. Fixou uma gramática, um repertório de
expressões, uma linguagem apta a ser comunicada, absorvida e compreendida pelo poder
de percepção do espectador.
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As tomadas do plantio em O preço do trigo ilustram a pintura The sower, de Jean-François Millet |
Em O
preço do trigo, a montagem paralela se presta a algo mais. Não é
elemento gerador de suspense ou simples apresentação das relações que perfazem o
fluxo da vida. Aqui, o recurso produz comparações entre ações díspares, aparentemente
desconectadas, nem sempre intencionais, mas geradoras de amplas consequências. Também
permite contrapontos irônicos e críticos. São avanços consideráveis para os
filmes silenciosos dos primórdios. Quer dizer: é o cinema se valendo dos próprios
meios para se comunicar. Tanto é que Griffith sempre foi parcimonioso na
utilização de intertítulos explicativos. Comprova, com O preço do trigo, pleno
domínio da arte de enquadrar atores e acompanhá-los na aproximação e
afastamento da câmera. Controla expressões corporais e gestos; trata consistentemente
o tempo de exposição; faz mediações discretas entre cenas diferentes; e, acima
de tudo, aprende a usar a câmera e a iluminação para sugerir atmosferas, climas
e sensações diversas.
O preço do trigo é, talvez, a primeira
realização social e economicamente relevante de Griffith. É impactante. Exageradamente,
alguns a consideram porta-voz de mensagens revolucionárias de cunho socialista.
Não há dúvidas de que se presta a esse propósito. No entanto, o cineasta
descende de aristocrática e puritana família sulista arruinada pela Guerra de
Secessão. Assim, é mais prudente acreditar que o recado veiculado é, sem
dúvida, favorável aos agricultores arruinados do Sul. Foram explorados por
empresários monopolistas e financistas inescrupulosos do Norte, ávidos por oportunidades
de enriquecimento fácil. No entanto, O preço do trigo corresponde mais às
parábolas bíblicas na sincera manifestação de simpatia aos remediados e
deserdados, dependentes dos próprios esforços para sobreviver em condições
adversas.
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O agricultor (James Kirkwood) e família: a esposa (Linda Arvidson), a filha (Gladys Egan) e, ao fundo, o pai (W. Chrystie Miller) |
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O especulador (Frank Powell) - sentado - e assistentes |
Porém, sabe-se
que o artista, de certa forma, perde a exclusividade dos direitos que detinha sobre
a criação após entregá-la à apreciação do público. A peça concebida passa a receber
diversas interpretações de acordo com interesses e intenções de quem a vê. De pequeno
libelo contra a ganância, a usura e a exploração em geral, O preço do trigo, do
conservador e moralista David Wark Griffith, se transformou em reflexão sobre o
capitalismo e a especulação desmedida. Dá até para imaginar — afinal, nada
custa — o próprio Lênin impressionado com o didatismo das imagens. O líder
revolucionário russo certamente teria a realização em mente — caso a conhecesse
— quando afirmou, anos depois: “Dentre todas as artes o cinema é para nós a
mais importante”.
O roteiro
elaborado pelo diretor em parceria com Frank E. Woods toma por base a novela The
pit, de Frank Norris. Já as imagens iniciais são literalmente
inspiradas na pintura The sower (o semeador), de
Jean-Francois Millet. A câmera, invariavelmente fixa, é operada pelo lendário
G. W. Bitzer. Uma família de sitiantes remediados marca presença na abertura.
Diante da esposa (Arvidson) e filha (Egan), o agricultor (Kirkwood) devota
respeito quase religioso às sementes de trigo que cultivará na companhia do pai
idoso (Miller). Paralelamente, na metrópole, um ganancioso empresário (Powell)
pensa na ampliação dos próprios ganhos. Resolve se tornar o Rei do Trigo. Na
bolsa de valores, manipula o mercado e adquire todos os estoques do cereal. Por
meio de controle minucioso, comercializa-o em pequenas quantidades, por valores
exorbitantes. Os preços dos derivados do trigo aumentam exponencialmente. Para
muitos, é impossível adquirir o pão pelo dobro do que custava. Instauram-se a
fome e o desespero. A polícia é chamada para conter os tumultos. Nem os agricultores
do começo da história possuem recursos para comprar pão.
Em meio à
carestia generalizada, o empreendedor comemora os elevados lucros em festas e
jantares. Pouco se importa com os resultados de suas ações. Diante da alienação
geral, não há explicações racionais para a alta dos preços. Os famintos
imploram por pão; o padeiro precisa comercializá-lo sem prejuízos; a polícia
reprime; o empresário se preocupa somente com seus interesses imediatos; Entretanto,
pagará caro pela ganância. Durante visita aos armazéns é atingido pela
fatalidade. Tropeça e cai no interior de um silo. Morre soterrado sob toneladas
de grãos aí lançadas para armazenamento. O filme retorna ao cenário inicial. O agricultor
(Kirkwood), como representação geral de seus iguais, prossegue no ciclo
interminável de arar e semear a terra. Vive apenas para as obrigações do presente
com poucas perspectivas de futuro. A morte de um especulador específico não
será suficiente para melhorar a vida precária que leva. Os ricos continuarão a lucrar
com a exploração dos mais pobres. Um lento escurecimento (fade-out) encerra O preço do trigo.
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Em consequência da especulação, o consumo de pão se torna inviável para os pobres |
São
particularmente memoráveis os planos iniciais: pai e filho avançam lentamente
para a câmera no rotineiro trabalho de semear o solo. Saem do campo visual e
retornam em movimento contrário. Há um clima de desolação nessa tomada, tal
qual na abertura: as pobres vestes da mãe e filha são levemente agitadas pela
corrente de ar. A natureza imutável é valorizada juntamente com os personagens
integrados à terra e à paisagem. As cenas, carregadas de sensibilidade e
respeito pelo trabalho de quem produz, também comportam lamentos. Fluem calmamente,
diferente das ações apressadas nos artificiais ambientes metropolitanos.
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O especulador (Frank Powell) recebe do assistente (Henry B. Walthall) a informação sobre a elevação de sua fortuna pessoal |
Vinte e três anos
depois, em 1932, o cineasta dinamarquês Carl Theodor Dreyer praticamente rendeu
homenagens a Griffith nos impactantes momentos finais de O vampiro (Vampyr).
O personagem do médico (Jan Hieronimko) morre no interior de um silo, soterrado
por grãos, tal qual o especulador de O preço do trigo.
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A morte alcança o especulador (Frank Powell) |
A importância pioneira
da realização foi imediatamente percebida e registrada pela imprensa da época.
Em Nova York, O preço do trigo se tornou o primeiro filme a merecer matéria
específica nos moldes das críticas cinematográficas. Certamente, os jornais
sempre trataram de cinema. Porém, título algum, até então, fora brindado com
apreciação toda própria.
Roteiro
(não creditado): David Wark Griffith, Frank E. Woods, com base na novela The
pit, de Frank Norris, e inspirado na pintura The sower, de
Jean-Francois Millet. Música (inserida
posteriormente/não creditada): Robert Israel. Direção de fotografia: Johann Gottlob Wilhelm “G. W.” Bitzer (não
creditado). Montagem: Jimmy Smith
(não creditado). Tempo de exibição:
14 minutos.
(José Eugenio Guimarães, 1985)
Olá, tudo bem?
ResponderExcluirAdoro filmes antigos! Vou procurar esse por aqui!
Seguindo seu blog, parabéns pelo trabalho!
Excelente escolha do filme para comentar .
ResponderExcluirUm filme antigo ,mas o assunto bem atual .
Sensacional!