O cineasta japonês Eizô Sugawa
(1930-1998) integrou, em 1996, o júri da Vigésima Mostra Internacional de
Cinema de São Paulo. O cinéfilo interessado sabe: sobre ele é difícil encontrar
referências e fontes substantivas. O Brasil é honrosa exceção, graças aos esforços
de cineastas e críticos da capital paulista. Por incrível que pareça, é pouco
conhecido na terra natal e no resto do mundo. No entanto, devido ao empenho de
cronistas — Leon Cakoff, Inácio Araújo, Jairo Ferreira; cineastas — Carlos
Reichenbach, Walter Hugo Khoury, Luís Sérgio Person; e estudiosos — Ismail
Xavier, José Fioroni Rodrigues, é possível afirmar: Sugawa é “coisa nossa”. O
significativo contingente nipônico na população da cidade de São Paulo transformou-a
em privilegiado polo para a exibição de filmes oriundos do Japão. Com 22
títulos na filmografia, o diretor marca presença nas telas paulistanas desde o
começo dos anos 60. Logo despertou a atenção. Por mera curiosidade e acaso
conheci na Cinemateca do Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro, em 1997, a 'trilogia das
feras': Morte à fera (Yajû shisubeshi, 1959), Na
trilha das feras (Kemonomichi, 1965) e Caça
às feras (Yajû gari, 1973). São dramas policiais influenciados pelo noir estadunidense. Geralmente
problematizam os rumos do Japão moderno — potência capitalista que emergiu
derrotada da Segunda Grande Guerra — em diálogo com os fundamentos tradicionais
do país. Em Caça às feras o detetive Akira Funaki (Fujioka) investiga o
sequestro do presidente de filial japonesa de uma multinacional de
refrigerantes. O caso levanta questões sobre globalização, poder do Estado, capitalismo,
identidade e valores nacionais. Eizô Sugawa fez assistência de direção em
filmes do conterrâneo Mikio Naruse. Infelizmente, foi impossível levantar
imagens de boa qualidade — cartazes e fotos — para ilustrar esta matéria
escrita em 1997.
Caça às feras
Yajû gari
Direção:
Eizô Sugawa
Produção:
Sanezumi
Fujimoto, Ryu Yasutake
Toho
Japão — 1973
Elenco:
Hiroshi Fujioka, Junzaburô Ban,
Mayumi Nagisa, Tetsuo Tomikawa, Yoshizô Yamaguchi, Kazutaka Sugawara, Tsutomu
Hiura, Mariko Nakamura, Yoshio Inaba, Kazuo Katô, Jun'ichirô Oki, Tetsuya Kaji,
Haruo Suzuki, Yûsuke Nishimoto, Fran Setzer, Shizuo Chûjô, Kuniyasu Atsumi,
Toby Kadoguchi, Noboru Mitani.
Caça às feras encerra a
trilogia iniciada por Eizô Sugawa com Morte à fera (Yajû shisubeshi, 1959) e
mediada por Na trilha das feras (Kemonomichi, 1965). O cineasta é
praticamente desconhecido dos brasileiros. As notáveis exceções se concentram
em São Paulo, capital. Aí, o significativo contingente nipônico da população favoreceu
a exibição de variados títulos dos mais diversos diretores conterrâneos de Akira
Kurosawa, Kenji Mizoguchi, Yasujirô Ozu e Nagisa Ôshima — principalmente ao
longo das décadas de 60 e 70. Aliás, não é exagero afirmar que a relativa
notoriedade internacional angariada por Eizô Sugawa decorre de setores formados
por cineastas e críticos paulistanos que o descobriram ao tempo da exibição de Morte
à fera.
Caça às feras é história de
detetive com tinturas trágicas. De início, passa a sensação de estranhamento. Em
regra, os congêneres estadunidenses são melhor conhecidos. Daí deriva a
surpresa: Sugawa — propositadamente ou não — ancora a realização no melhor que
o cinema policial made in USA
produziu, notadamente na corrente noir
de personagens e histórias marcadas por desencanto, ceticismo e niilismo. As
mesmas características são percebidas em Caça às feras. Na retaguarda está o
ponto de vista amargo lançado pelo cineasta ao Japão urbano e moderno, potência
industrial, capitalista e transnacional — apesar da derrota sofrida na Segunda
Guerra Mundial.
Akira Funaki
(Fujioka), jovem investigador, é reflexo desse Japão em mutação. Segundo se
depreende das imagens, ele e o país estão incertos quanto ao rumo a tomar. O
personagem individualista e de postura independente está em conflito com os
valores sociais mais arraigados da terra, apoiados sobre tradição, hierarquia e
família. Vive relação conturbada com o pai Chôtarô Funaki (Ban), policial da
velha guarda. Na corporação também não é bem avaliado devido aos métodos
próprios utilizados nas diligências. Quase sempre faz pouco caso das determinações
superiores. O drama é acompanhado no contexto de uma crise política que deflagra
a ação. É maio de 1978. A
Frente Negra, organização radical de esquerda, sequestra o presidente da filial
japonesa da Pop-Cola — a semelhança com os nomes de “outras” marcas não é mera
coincidência —, indústria transnacional de refrigerantes com matriz em Nova
York. Para libertá-lo exige que a fórmula da bebida seja divulgada publicamente.
Caso contrário será morto. A empresa não cede. Prefere oferecer dinheiro à
organização, apesar da discordância da polícia. Porém, a Frente Negra concorda
com os novos termos. Ao fim, os resultados são trágicos. O refém é executado.
Ao mesmo tempo o cerco policial se fecha sobre os sequestradores, mortos um
após outro enquanto mensagem gravada divulga ao público o manifesto do grupo e as
razões do ato.
Com Caça
às feras Sugawa antecipa, em 1973, preocupações tão em voga no tempo de
agora — marcado pela aceleração do processo de globalização. O poder de fogo de
empresas transnacionais — praticamente autônomas em relação às forças do Estado
— é evidente. A Pop-Cola é apresentada como estrutura sem rosto e francamente
poderosa. Em Nova York toma decisões que afetam completamente os rumos da
investigação policial em solo japonês. Também se nota a ausência de
alternativas de longo alcance, capazes de gerar soluções para a crescente fragmentação
e perda de valores. A Frente Negra representa a síntese desesperada frente ao
beco sem saída da valorização nacional. Significativamente, tem os líderes encurralados
e mortos no alto de um arranha-céu. Entretanto, o insatisfeito Akira de certo
modo contribui com uma das exigências da organização esfacelada: não interrompe
a exigida leitura do manifesto político — um libelo anticapitalista irradiado
continuadamente aos quatro ventos.
Caça às feras recebeu da crítica
paulistana o prêmio de Melhor Lançamento Estrangeiro de 1996 — um exagero,
certamente. Em geral, é considerado o mais fraco componente da “trilogia das
feras”. Principalmente pelo fato de Sugawa suavizar a crítica às instituições
japonesas — no caso, a polícia. Esta recebeu miradas mais severas em Morte
à fera e Na trilha das feras.
O fim concede a Akira
uma espécie de redenção ou absolvição: comparece ao enterro de Onimaru (Inaba) —
policial da velha guarda e amigo de Chôtarô —, morto em consequência dos
ferimentos recebidos durante atentado. Esse gesto reverencial transcende,
segundo a visão de Sugawa, o campo dos afetos pessoais. Seria uma forma de render
respeito à tradição, de acordo com as pretensões do cineasta.
Roteiro: Zenzô Matsuyama, Osamu Nishizawa, autores da história
adaptada por Eizô Sugawa. Música:
Kunihiko Murai. Direção de fotografia
(cores): Daisaku Kimura. Desenho de
produção: Kazuo Satsuya. Gerente de
produção: Toshiro Tokumasu. Assistente
de direção: Fumisake Okada. Som:
Eishirô Hayashi. Eletricista-chefe: Hiromitsu
Mori. Tempo de exibição: 83 minutos.
(José Eugenio Guimarães, 1997)
Curioso como la ciudad paulista acoge a un director japonés y lo hace referencia suya y particular. En lo personal nada conocía de este director, aunque he de decir que en los últimos años el cine nipón está despertando mi interés por las buenas producciones que han ido cosechando. Buen análisis de esta trilogía de las fieras.
ResponderExcluirUn abrazo Eugenio y feliz domingo.
Hola, Miguel Pina!
ExcluirTenga un buen domingo.
El más curioso es intentar encontrar materias e imágenes de las películas o del director en internet. Cansé de buscar y nada encontré. No hay cosa alguna en el Youtube. São Paulo, como toda metrópoli, tiene esas peculiaridades. Yo aún sólo asistí a las películas de la trilogia de SUGAWA por mera curiosidad y acaso. Sin embargo, puedo afirmar que es un director original, capaz de actualizar y reciclar temas de géneros cinematográficos consolidados. Como São Paulo, el cine japonés también es una caja de sorpresas.
Abrazos y saludos.
Sou fã do cinema japonês. Esse filme eu gostei muito.
ResponderExcluirGostei da "crítica" que o filme faz com as diferenças culturais com o ocidente.
Excelente publicação
Pena que essas filmes do Sugawa são raríssimos, Marina. Muito difícil encontrá-los nos dias de hoje. Grato pela presença e comentário.
ExcluirBeijos.