Um dos filmes mais dilacerantes
que vi é o premiado A viagem da esperança (Reise der hoffnung/Umud'a yolculuk/Journey of
hope, 1990), coprodução entre Turquia, Suíça, França e Inglaterra sob
direção de Xavier Koller. Conta história simples, tão pungente quanto
verdadeira, acerca da trágica situação comum a refugiados e imigrantes ilegais.
Estes, tangidos pelo desespero da sobrevivência em condições minimamente dignas,
buscam quase sempre a Europa cada vez mais predisposta a não recebê-los. O
roteiro escrito pelo diretor em parceria com Feride Çiçekoglu toma por base um
acontecimento fartamente noticiado pelos jornais europeus em 1988: a morte por
frio e cansaço de um menino de oito anos que tentava, acompanhado dos pais e de
outros desesperados, vencer as geladas escarpas alpinas e encontrar
possibilidades de existência na Suíça. No filme, o pequeno se chama Ali (Emin
Sivas). É o caçula de Meryem (Nur Sürer) e Haydar Sener (Necmettin Çobanoglu em
desempenho exemplar). O trio, parte de numerosa família da etnia curda, provém de
terras áridas e improdutivas na Turquia. A narrativa direta, despojada e sóbria
é forte e honesta ao acompanhar o desenrolar de um turbilhão de sensações
concentradas principalmente nas esperanças de Haydar — o pai que hipotecou a
vida e o futuro, inclusive da família, para tentar realizar uma utopia barrada
pelos aspectos mais ásperos e inexpugnáveis de uma geografia indiferente e
cruel em suas variações físicas e humanas. Segue apreciação escrita em 1991.
A viagem da
esperança
Reise der
hoffnung/Umud'a yolculuk/Journey of hope
Direção:
Xavier
Koller
Produção:
Alfi Sinniger,
Peter-Christian Fueter, Enzo Purcell, Bernd Hellthaler.
Gatpicsund,
Condorfeatures, SRG/SSR, Antea Cinematografica, Dewe Heltthaler International, Cinerent
Filmequipment Service AG, Film Four International, Cineverde, Eurimages, Département
Fédéral de l'Intérieur (Suíça), Schweizer Fernsehen (FS), Schweizerische Radio-
und Fernsehgesellschaft (SRG), Télévision Suisse-Romande (TSR)
Suiça,
Turquia, França, Inglaterra — 1990
Elenco:
Necmettin
Çobanoglu, Nur Sürer, Emin Sivas, Yaman Okay, Erdinç Akbas, Selahattin Firat,
Meryem Çaki, Yasar Güner, Yaman Tarkan, Hasan Dündar, Ali Demirbas, Hseyin
Mete, Semiha Dicleli, Saadet Türköz, Sevin Metin, Sebastiano Filocamo, Ihsan
Karasubasi, Selahattin Karadag, Kutay Köktürk, Yasar Kutbay, Dietmar Schönherr,
Teco Celio, Theo Marti, Fritz Denoth, Herbert Leiser, Mathias Gnädinger, Abbas
Manis, Mehmet Sugan, Erdal Merdan, Francesco Migliaccio, Konstantin A. Schmidt,
Andrea Zogg, Hansjörg Schneider, Nicolaï Mylanek, Liliana Heimberg, Jürgen
Cziesla, Joseph Scheidegger, Albert Freuler, René Peier, Mastrocinque, Mustafa,
Mehmet, Fatma, Sükran, Zeynep, Elif.
![]() |
O diretor Xavier Koller com o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro por A viagem da esperança |
A crítica brasileira
em geral torceu o nariz ou apresentou reações mornas para A viagem da esperança. Em
parte pelo ressentimento decorrente de motivo francamente fútil: essa
despretensiosa produção sobre o drama de imigrantes da etnia curda que trocam
as certezas e falta de possibilidades da Turquia na qual habitam pela insegura utopia
do “paraíso” suíço desbancou, na corrida ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro,
o franco-favorito Cyrano (Cyrano de Bergerac, 1990), de
Jean-Paul Rapenneau. Algumas crônicas, firmadas quando do lançamento da
dolorosa epopeia de Xavier Koller, preferiram trocar o exercício da apreciação
e análise por protestos quanto ao suposto equívoco da Academia de Artes e
Ciências Cinematográficas de Hollywood. Outros setores da crítica, igualmente
inconformados, optaram por se perder em discussões bizantinas a respeito de Xavier
Koller e o filme serem favoráveis ou contrários aos curdos e turcos.
Deixando de lado
as idiossincrasias do Oscar e a questão partidária de fundo maniqueísta, é impossível
não se sensibilizar com as vigorosas imagens descritivas da tragédia que aos
poucos se acerca dos passageiros de A viagem da esperança. Cabe
assinalar, acima de tudo, a entrega sincera e despojada do elenco, com amplo
destaque para Necmettin Çobanoglu — visto em Yol (Yol, 1982), de Serif
Goren e Yilmaz Güney — no papel de Haydar Sener, marido de Meryem e pai do
garoto Ali — soberbamente interpretados, respectivamente, por Nur Sürer e Emin
Sivas. Çobanoglu é daqueles atores capazes de concentrar toda a força do personagem
na expressividade do olhar repleto de nuances que comunicam todos os
sentimentos do mundo.
![]() |
O garoto Ali Sener interpretado por Emin Sivas |
![]() |
Na árida Turquia, Haydar Sener - desempenho soberbo de Necmettin Çobanoglu - sonha com a Suíça |
![]() |
A família Sener: a mãe Meryem (Nur Sürer), Ali (Emin Sivas) e o pai Haydar (Necmettin Çobanoglu) |
A direção de
Xavier Koller revela genuíno grau de sensibilidade e perfeita precisão rítmica na
orquestração das peças que formam o inenarrável drama encenado na alpina
solidão gelada. O filme é seco e nem por isso desprovido de emoção. A
viagem da esperança está entre as mais tristes e dramáticas histórias encenadas
pelo cinema. O roteiro de Koller e Feride Çiçekoglu parte de uma notícia de
jornal que deixou funda impressão no diretor: a morte por frio e cansaço de um garoto
turco de sete anos. Acompanhado dos pais e de um punhado de conterrâneos
desesperados, tentava, em outubro de 1988, entrar ilegalmente na Suíça pela
mais inexpugnável das rotas.
Incentivado pelo
exemplo do irmão Cemal — que trocou a árida e pedregosa paisagem rural da
Turquia pela promessa de leite e mel da terra suíça da “promissão” —, Haydar
resolve se desprender das madrastas raízes. Vende o pouco que tem, distribui
sete dos oito filhos entre os parentes e parte com o caçula e a esposa em busca
do “paraíso”. Confia o futuro a uma rede clandestina de agenciadores
inescrupulosos e embarca em navio cargueiro da rota Istambul-Nápoles. Na cidade
italiana a família consegue carona com o simpático e solidário caminhoneiro
Ramser (Gnädinger) até a fronteira com a Suíça. O sonho, aparentemente tão
fácil, termina no posto de inspecção. Haydar, Meryen e Ali são barrados. Voltam
a Nápoles e encontram compatriotas igualmente clandestinos em busca do mesmo
sonho. Juntos e dispostos a tudo confiam em uma quadrilha local de exploração
de imigrantes ilegais formada basicamente de turcos. A “organização” irá
introduzi-los na Suíça pela porta dos fundos: os Alpes íngremes e gelados.
Haydar e companhia se submetem a um insuportável estágio na invernal estação do
inferno, sem direito à aprovação. A geografia, tanto a física — a escarpa
traiçoeira, o vento cortante e constante, o frio mortal — como a humana — sarcasmo,
ganância, falta de escrúpulos, indiferença, rigorismo burocrático da fria e
impessoal racionalidade legal —, logo revela implacável crueza e resistência à penetração
de estranhos.
![]() |
A família Sener - Meryem (Nur Sürer), Ali (Emin Sivas) e Haydar (Necmettin Çobanoglu) - com o solidário caminhoneiro Ramser (Mathias Gnädinger) |
![]() |
Ramser (Mathias Gnädinger) e Ali (Emin Sivas) |
Momentos antes,
com um comentário amargo e resignado diante das dificuldades, Haydar concluiu: o
país pretendido, que se recusava a recebê-los, não era de fato para eles. Porém,
foram longe demais para retornar. Os Alpes, percebidos à distância, pareciam tranquilizadores.
Lembram a paisagem mediterrânea elevada e pedregosa da Turquia das origens —
descontados os tons acinzentados do horizonte e a quase imperceptível capa
branca dos cumes nevados. Porém, basta o contato real com a obrigação
extenuante e perigosa da escalada para qualquer referência de familiaridade se
perder. Na noturna solidão gelada da montanha, Haydar e Meryem sofrem a suprema
provação de ver ceifadas as raízes que lhes dariam continuidade e validariam a
arriscada empreitada: Ali não resiste ao frio e morre. O pai experimenta a dura
provação de sobreviver à descendência. O expressivo olhar de Çobanoglu é
perfeito na comunicação da brutal sensação da perda, traduzida como fracasso, inutilidade
e falta de sentido.
![]() |
Acima e abaixo, a família Sener - Meryem (Nur Sürer), Ali (Emin Sivas) e Haydar (Necmettin Çobanoglu) - entre apreensivas esperas e deslocamentos |
Duas fotografias
assumem particular e capital importância em A viagem da esperança. A primeira
é o cartão postal enviado por Cemal. Parece menosprezar ou ocultar, na
exposição da paisagem verdejante e acolhedora em primeiro plano, o monótono e
trágico som da música soprada pelo cortante e mortal vento dos Alpes
localizados ao fundo. A outra é o retrato obtido por Ali do caminhoneiro que
conduziu a família à fronteira suíça. Mostra, de frente, o rosto brincalhão de
Ramser apontando a língua. Esse instantâneo inocente, de jocosa puerilidade, parece
traduzir, ainda que acidentalmente, o desprezo da Europa pelos aflitos deserdados
que lhe rondam as fronteiras.
![]() |
Ali Sener (Emin Sivas) |
Além do Oscar, A
viagem da esperança arrebatou, no Festival de Locarno, o Leopardo de
Bronze pela Melhor Direção.
Roteiro: Xavier Koller, Feride Çiçekoglu, a partir de
notícia de jornal. Direção de fotografia
(cores) e câmera: Elemér Ragályi. Segunda
câmara: Pio Corradi. Assistentes de
câmeras: Claudios Kelterborn, Marco Barberi, Marco Barberi, Imre Sisa, Heike
Huber. Montagem: Daniel Gibal, Galip
Iyitanir. Música: Jean Garbarek,
Terje Rypdal, Arild Andersen, Egberto Gismonti. Produção musical: Manfred Eicher. Assistente de direção: Konstantin Schmidt. Continuidade: Heike Huber. Produtor
associado: Sabina Woolf. Direção de
arte: Kathrin Brunner. Figurinos:
Grazia Colombini. Gerente de produção:
Raimondo Esposito. Coordenação de
construções: José Matos. Contrarregra:
Bele Schneider. Assistente de pós
produção de som: Michael G. Gunther. Ruídos
de sala: Andreas Schneider. Alimentação
e assistência de produção: Ernst Meyer. Contabilidade: Roberto Ornaro. Agradecimentos
a: Edi Hubschmid. Tempo de exibição:
110 minutos.
(José Eugenio Guimarães, 1991)
Hello, Tony. Thanks very much for your visit.
ResponderExcluirI also visited his blog on this page: http://carbikewallpapwer.blogspot.com.br/.
Hugs and have a Happy 2018.