Holiday (1938), de George Cukor, é a segunda transposição para o
cinema de famosa peça teatral de Philip Barry. Para azar do personagem
principal, o íntegro e esforçado plebeu Johnny Case (Cary Grant), a realização recebeu
no Brasil o estúpido e mentiroso título de Boêmio encantador. Nas emissoras de
televisão não teve sorte melhor: foi rebatizada para Brotinho encantador e,
nesse caso, alude ao papel da centrada e magnânima Linda Seton (Katharine
Hepburn). A direção é de um mestre na condução de comédias sofisticadas
valorizadas por situações enfáticas e diálogos precisos: George Cukor, que
tantas confirmações de talento apresentou com As quatro irmãs (Little
women, 1933), David Copperfield (The
personal history, adventures, experience, & observation of David
Copperfield the younger, 1935), Núpcias de escândalo (The
Philadelphia story, 1940), Fatalidade (A double life, 1947), Nasce
uma estrela (A star is born, 1954) e, entre
outros, Minha bela dama (My fair lady, 1964). Boêmio
encantador é a quarta das onze associações do diretor com a talentosa
Katharine Hepburn. Ela e Grant estão afinadíssimos nessa comédia desenvolvida
basicamente em
interiores. Contam com o suporte de atores talentosos, dentre
os quais o sempre impagável Edward Everett Horton como o espirituoso e sagaz
Professor Nick Potter. Nos anos ainda quentes da Grande Depressão e do New Deal de Franklin Delano Roosevelt, o
filme elogia o mito da iniciativa individual característica dos pioneiros que
ergueram os Estados Unidos e, supostamente, perseveraram sem sacrificar a
integridade pessoal. Por outro lado, encena leve e divertido ataque à ética
puritana da valorização do acúmulo da riqueza material a qualquer preço. Segue
apreciação escrita em 1996.
Boêmio encantador
Holiday
Direção:
George
Cukor
Produção:
EUA — 1938
Elenco:
Katharine
Hepburn, Cary Grant, Doris Nolan, Lew Ayres, Edward Everett Horton, Henry Kolker,
Binnie Barnes, Jean Dixon, Henry Daniell, os não creditados Marion Ballou,
Beatrice Blinn, Thomas Braidon, Maurice Brierre, Ralph Brooks, Mabel Colcord,
Luke Cosgrave, Beatrice Curtis, Ann Doran, Neil Fitzgerald, Bess Flowers,
Bobbie Hale, Mitchell Harris, George Hickman, Howard C. Hickman, Maude Hume,
Raymond Lawrence, Eric Mayne, Tom McGuire, Matt McHugh, Frank McLure, Edmund
Mortimer, George Pauncefort, Esther Peck, Hilda Plowright, Alexander Pollard,
Charles Richman, Cyril Ring, Lillian West, Eric Wilton e em participações excluídas
na montagem de Harry Allen, Frank Benson, Aileen Carlyle, Edward Cooper,
Margaret McWade, Frank Shannon, Charles Trowbridge.
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O diretor George Cukor - à esquerda - com os atores John Howard, Katharine Hepburn e Cary Grant Bastidores de Núpcias de escândalo (The Philadelphia story, 1940) |
Katharine
Hepburn, atriz fetiche de George Cukor, atuou sob sua direção em onze filmes. Boêmio
encantador — exibido na televisão brasileira como Brotinho encantador — é o
quarto. Os anteriores: Vítimas do divórcio (A
bill of divorcement, 1932), As quatro irmãs (Little
women, 1934) e Vivendo em dúvida (Sylvia
Scarlett, 1935). Reencontraram-se em Núpcias de escândalo (The
Philadelpia story, 1940), O fogo sagrado (Keeper
of the flame, 1942), À meia luz (Gaslight, 1944), A
costela de Adão (Adam’s rib, 1949), A
mulher absoluta (Pat and Mike, 1952), Amor
entre as ruínas (Love among the ruins, 1974) e O coração
não envelhece (The corn is green, 1979). Os dois
últimos foram realizados para a TV.
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Katharine Hepburn como Linda Seton |
Além de Boêmio
encantador, Hepburn estrelou, ao lado de Cary Grant, Vivendo
no abandono, Levada da breca (Bringing
up baby, 1938), de Howard Hawks — considerada por muitos a melhor comédia
maluca do cinema — e Núpcias de escândalo.
Boêmio encantador é a segunda adaptação
para as telas da peça teatral de Philip Barry. A primeira, de 1930, resultou em
Holiday,
de Edward H. Griffith, interpretada por Ann Harding, Mary Astor, Edward Everett
Horton e Heda Hopper. Originalmente foi encenada no Teatro Plymouth de Nova
York, em 1928. Na oportunidade, Hope Williams interpretou a protagonista Linda
Seton. Coincidentemente, para o caso de imprevistos, Katharine Hepburn estava escalada
como atriz substituta. Permaneceu três meses no posto e nunca foi acionada: Williams
jamais faltou às apresentações. Importa, no caso cinematográfico: a estrela
favorita de George Cukor estava familiarizada com o argumento e o papel quando foi
chamada para viver Linda Seton no cinema. A princípio, a personagem seria de
Irene Dunne — descartada por pressões do diretor quando Hepburn se apresentou disponível.
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Cary Grant e Katharine Hepburn nos papéis de Johnny Case e Linda Seton |
São controversas
as informações a respeito do desempenho de Boêmio encantador nas bilheterias.
No artigo Cary Grant, um galã
sofisticado, A. C. Gomes de Mattos atesta: “A fita não veio a ser o triunfo
que a Columbia esperava”[1].
Porém, João Lepiane sustenta em Um
monstro sagrado chamado Katharine Hepburn: o título foi “O segundo maior
sucesso de bilheteria da Columbia naquele ano (1938)”[2].
O filme é uma
comédia em tom menor, de nível infinitamente superior a qualquer uma das
desmioladas produções cômicas do cinema estadunidense de hoje. Apesar de sofrer
os implacáveis efeitos do tempo, permanece agradabilíssima. Está entre as muitas
saudações prestadas por Hollywood, durante os anos 30 — época da Grande
Depressão e do New Deal de Franklin
Delano Roosevelt — à consciência liberal de “boa cepa”. Traduzindo: Boêmio
encantador elogia a mítica iniciativa individual característica dos
pioneiros que ergueram os Estados Unidos: seres determinados que construíram
suas vidas a partir do próprio esforço e não admitiram sucumbir aos apelos da
riqueza fácil conseguida, muitas vezes, às custas da integridade pessoal. O
personagem Johnny Case (Grant) busca a felicidade anunciada pelos pais
fundadores da nação e prometida em declarações, cartas de direitos e na própria
Constituição.
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Johnny Case (Cary Grant) discute matrimônio, negócios e futuro com a noiva Julia Seton (Doris Nolan) e o quase sogro Edward Seton (Henry Kolker) |
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Julia Seton (Doris Nolan) e Johnny Case (Cary Grant) surpreendidos por Linda Seton (Katharine Hepburn) |
Case é um jovem
plebeu. Apaixonou-se por Julia Seton (Nolan) sem saber que é milionária
herdeira do banqueiro Edward Seton (Kolker). O pai — esquecido das pobres
origens familiares — desaprova o pretendente. Depois de muitas ressalvas aceita
o matrimônio. Porém, pretende enquadrar o futuro genro ao modo de vida da
família. Júlia, carne e sangue de Edward, concorda. Parece não se importar com as
ideias próprias do noivo. Afinal, a ele é oferecido importante e bem remunerado
cargo nas empresas do patriarca. O que mais um pobretão poderia querer?
No entanto, as
pretensões à independência do inconformado Johnny são apoiadas pela rebelde e
infeliz Linda (Hepburn), irmã de Julia e, em menor escala, pelo mano Ned
(Ayres). Para ela, a insaciável sanha do pai por dinheiro e posição social
provocou a morte prematura da mãe. Quanto a Ned, é tolhido na vocação musical e
obrigado a prestar serviços “mais úteis” no banco da família.
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Doris Nolan, Katharine Hepburn, Cary Grant e Lew Ayres vivem, respectivamente, Julia Seton, Linda Seton, Johnny Case e Ned Seton |
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Linda Seton (Katharine Hepburn) e Johnny Case (Cary Grant) |
No começo, Linda
supunha que o rosto juvenil de Johnny ocultava apenas um inescrupuloso caçador
de fortunas. Conhece-o melhor durante as muitas controvérsias em torno do matrimônio.
Apaixonam-se, como é óbvio. Porém, a infeliz garota também é magnânima. Vê no
casamento de Julia com o rapaz uma oportunidade de salvá-la do mal familiar.
Assim, afasta-se. Evidentemente, o roteiro encontra um jeito de reordenar as
situações e reaproximar os sonhos de felicidade individual de Johnny Case com o
desejo de emancipação de Linda. O jovem rompe o noivado ao perceber que Julia pretende
submeter a união às determinações paternas. Pouco antes do momento crucial,
Edward Seton vai ao cúmulo de organizar por conta própria o roteiro para a
lua-de-mel. Desgostoso, Case abandona tudo e parte em viagem na companhia do
casal amigo Nick Potter (Horton) e Susan Elliott (Dixon). No navio, tem a grata
surpresa de encontrar Linda. Ela largou tudo para ficar ao lado dele.
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Johnny Case (Cary Grant), Nick Potter (Edward Everett Horton) e Susan Elliott (Jean Dixon) |
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Johnny Case (Cary Grant) e Linda Seton (Katharine Hepburn) |
Boêmio encantador é leve e
divertido ataque à ética puritana da valorização do acúmulo da riqueza material
a qualquer preço. Antes de entrar para o cinema nos primeiros tempos do sonoro,
Cukor dirigiu no teatro várias comédias idênticas. Tornou-se especialista no
gênero. Compensa a pouca movimentação e os limites do cenário fechado — a ação se
desenrola quase que totalmente na mansão dos Seton — com diálogos e comentários
afiadíssimos. Atualmente, quase sessenta anos após a realização, permanecem
como principal fonte de interesse. Um exemplo: Edward Seton revela a Júlia as
dúvidas quanto ao caráter de Johnny. Acaba aludindo à segurança proporcionada
pelo charuto preferido, do qual conhece a procedência: “Sei que não explodirá
na minha cara”, sustenta. Os atores estão bem, principalmente Cary Grant em
animada e solta interpretação. Infelizmente, o divertido casal Potter —
contraponto ao modelo de casamento sonhado por Julia — tem poucas cenas. Edward
Everett Horton e Jean Dixon estão ótimos, principalmente na festa de celebração
do noivado fracassado. No salão de entrada à mansão dos Seton, Nick não se
contém e comenta para a esposa: “Isto aqui lembra o palácio de Calígula”. O
ambiente, tomado pela grã-finagem esnobe, deixa-os totalmente deslocados.
Roteiro: Donald Ogden Stewart, Sydney Buchman, com base em
peça de Philip Barry. Direção de fotografia
(preto e branco): Franz Planer. Montagem:
Otto Meyer, Al Clark. Direção de arte:
Stephen Goosson, associado a Lionel Banks. Decoração:
Babs Johnstone. Costumes: Robert
Kalloch. Joias: Paul Flato, Eugene
Joseff (não creditado). Direção musical:
Morris Stoloff. Música (não creditada):
Sidney Cutner, Paul Mertz (música de estoque), Joseph Nussbaum (música de
estoque), Ben Oakland (música de estoque). Assistente
de direção: Cliff P. Broughton (não creditado). Som: Lodge Cunningham (não creditado). Sistema de Mixagem de som: Western Electric Mirrophonic Recording. Tempo de exibição: 95 minutos.
(José Eugenio Guimarães, 1996)
Vou rever porque não me lembro mais de detalhes do filme. Mas valeu a leitura de os seus...
ResponderExcluirMuito obrigado pela visita e comentário, Lérida. Sempre revejo com prazer estas comédias, das quais o diretor George Cukor sempre foi um mestre.
ExcluirAbraços.
Hola Eugenio, una conjunción de tres astros para el cine. George Cukor, Cary Grant y Katharine Hepburn. Solo por eso ya merece ser la película evaluada y recordada. Evidentemente el tema de las traducciones fue, es y seguirá siendo una vergüenza para el mundo del cine. Y bueno aunque calificas a la comedia de un tono menor siempre es apetecible volverla a ver, teniendo en cuenta el panorama en la comedia del cine actual.
ResponderExcluirAbrazos y saludos.
Hola, Miguel.
ExcluirPara mí, es siempre un placer volver a estas películas como las de George Cukor y a casi todas que se realizaron en esta época. Parece que hay algo de atemporal en ellas. exalan muy optimismo y generosidad. Sin olvidar que fueron dirigidas con muchos toques de clase, con diálogos sabrosos y excelentes interpretaciones, por encima de todo, carismáticas. Como se dice en Brasil, dejan las comedias de hoy en la zapatilla.
Saludos e abraços.
Olá, Eugenio!
ResponderExcluirSempre encantada com as fotografias que ilustram suas impecáveis resenhas.
Beijos!
Muito obrigado por sua visita e apreciação. Sandra. Muito grato pelas palavras. Tenha um Feliz 2018.
ExcluirBeijos.