Se houvesse a necessidade de se eleger a realização mais
autoral e transgressora de François Truffaut, coincidentemente a menos conhecida
de uma filmografia composta de 27 títulos, Atirem no pianista (Tirez
sur le pianiste, 1960) levaria a palma. É o seu segundo longa. Veio à
luz um ano após Os incompreendidos (Les quatre cents coups). Revela-o
como experimentador ousado, mais parecido ao espírito desgarrado e não
vocacionado à autoafirmação. Certamente, é o trabalho que mais aproxima
Truffaut do inovador rebelde, autor do roteiro de Acossado (À
bout de soufle, 1959), de Jean-Luc Godard. Se em Os incompreendidos a
narrativa se arma em torno de um centro temático desenvolvido com estabilidade
e coerência — a problemática infância de Antoine Doinel (Jean-Pierre Léaud) —,
o pianista Charlie Kohler (Charles Aznavour) será o protagonista do que pode
ser classificado como aventura de desconstrução cinematográfica. A realização
não se interessa por apreender o personagem a partir de uma específica experiência
vital. Ao longo de concisos e dinâmicos 81 minutos, Truffaut não ordena fatos.
O que faz é ilustrar momentos de uma trajetória existencial. Para tanto, vale-se
unicamente do vasto menu de opções oferecidas pelo cinema. Atirem no pianista é
assumidamente uma homenagem à produção "B" estadunidense, notadamente
o filme noir. Porém, sua composição
aproxima inspirações cômicas, melodramáticas, psicológicas, do suspense e romantismo.
O amor, longe de ser elemento de superação, se apresenta qual fatal e trágica
impossibilidade na existência amargurada e descolorida de Charlie Kohler,
aliás, Edouard Saroyan. O roteiro de François Truffaut e Marcel Moussy é
livremente inspirado no romance policial Down there, do estadunidense David
Goodis. Atirem no pianista fracassou nas bilheterias. A apreciação a
seguir é de 1997.
Atirem no pianista
Tirez sur le pianiste
Direção:
François Truffaut
Produção:
Pierre Braunberger
Les Films de la Pléiade
França — 1960
Elenco:
Charles
Aznavour, Marie Dubois, Michèle Mercier, Nicole Berger, Serge Davri, Claude
Mansard, Richard Kanayan, Jean-Jacques Aslanian, Daniel Boulanger, Claude
Heymann, Alex Joffé, Boby Lapointe, Catherine Lutz, Albert Rémy e os não
creditados Laure Paillette, Alice Sapritch.
François Truffaut durante as filmagens de Atirem no pianista |
Anos 50: François
Truffaut firma posição como um dos mais polêmicos críticos dos Cahiers
du cinéma. Em artigos radicais concilia concisão, objetividade, vigor
estilístico e veneno na demolição de toda uma tendência do cinema francês.
Defenestra realizadores os mais diversos: René Clément, Henri-Georges Clouzot,
Claude Autant-Lara, Jean Delannoy etc. Agrupa-os indistintamente sob a capa do
pior e mais pesado academicismo. Não poupa sequer o lendário René Clair, ponta
de lança, durante os anos vinte, de amplo movimento de renovação artístico-cultural:
a Avant-garde.
Os comentários
apaixonados, que abrem para alguns as portas do inferno, servem também à
celebração extremada da permanente genialidade e jovialidade de poucos conterrâneos
— Jean Renoir, Max Ophüls, Jacques Tati, Jean Cocteau etc. — e de alguns endeusados
estadunidenses — Alfred Hictchcock e Howard Hawks —, seguidos de talentos
notabilizados na produção “B” como Nicholas Ray e Samuel Fuller. Para Truffaut,
contra a empolação do academicismo o melhor remédio é a linguagem simples,
direta e ágil dos “B” movies made in USA: produções baratas, rápidas,
vigorosas e frescas. Afirma: nelas o cinema francês deveria se mirar para
romper com as estruturas decadentes que o imobilizavam.
Truffaut e seus
companheiros de geração — Jean-Luc Godard, Claude Chabrol, Éric Rohmer, Louis
Malle etc. — desenvolvem argumentos que balizarão teoricamente o
desencadeamento da Nouvelle Vague —,
movimento que injeta sangue novo na cinematografia francesa e mundial. Contra
um padrão de realização apoiado no “bom gosto literário”, sacrificador da fluidez
e da leveza ao rigor da encenação, a Nouvelle
Vague incorpora o dinamismo, a liberdade narrativa e a aparente ausência de
regras formais do filme “B” estadunidense aos métodos de cineastas formados na
pós-Segunda Guerra Mundial. Disso, o melhor exemplo é o primeiro longa de Jean-Luc
Godard, baseado em roteiro do próprio Truffaut: Acossado (À
bout de soufle, 1959), inclusive dedicado a uma companhia produtora
menor dos Estados Unidos, a Monogram Pictures — declaradamente de segunda ou terceira
linha.
Truffaut revê
muitas de suas impiedosas avaliações, em particular as endereçadas aos
compatriotas, depois de se estabelecer como realizador. Mas nada lhe arrefece o
entusiasmo pelo melhor que o cine estadunidense, segundo suas considerações,
havia gerado. É no filme “B” que busca inspiração para Atirem no pianista, seu
segundo longa metragem. O primeiro é Os incompreendidos (Les quatre
cents coups, 1959). Antes desse, realizou os curtas Une
visite (1954) e Os pivetes (Les mistons, 1957).
Charles Aznavour como Charlie Kohler, aliás, Edouard Saroyan |
Ao piano, Charlie Kohler (Charles Aznavour) acompanhado do irmão Chico Saroyan (Albert Rémy) |
Percebe-se no
Truffaut de Atirem no pianista o experimentador ousado, corajoso, livre,
sem estilo próprio, movendo-se como rebelde em busca de afirmação. Disso
resulta uma obra extremamente pessoal, marcada pela espontaneidade de uma
narrativa que não se prende propriamente a um centro de atenção. Desdobra-se em
várias frentes. Atirem no pianista segue um personagem e sua vida. Descarta a
fácil opção de ordenar fatos. Prefere ilustrá-los.
Em Os
incompreendidos Truffaut lida com um “grande tema”, a própria infância
repleta de percalços, estruturalmente recriada em narrativa estável e coerente
protagonizada pelo alter ego Antoine
Doinel (Jean-Pierre Léaud). Em Atirem no pianista não é a biografia
de Charlie Kohler (Aznavour) que interessa, mas a maneira de contá-la. Truffaut
pratica um cinema de desconstrução. Aproxima-se do gênero policial para fazer
curiosa e desconcertante mistura de elementos que envolvem comédia, drama,
melodrama, filme psicológico, noir,
suspense, amor etc. Em vez de recortar a vida — como o cinema costuma fazer —
para recompô-la pela observação de um de fragmento (exercício de abstração),
Truffaut recorre à manipulação das mais variadas ordens narrativas como se
buscasse apreender o todo, no qual se percebem várias rupturas de tons — como na
vida real.
Os rompimentos abundam
em Atirem
no pianista. Perto dele, Os incompreendidos parece obra
acadêmica, certinha, formalmente bem comportada. O público sentiu a diferença.
Desnorteou-se diante dos muitos desvios temáticos que a todo momento alteram o
rumo e o tom da narrativa. Resultado: fracasso nas bilheterias. Atirem
no pianista é um dos menos conhecidos filmes de Truffaut, salvo por uma
camada muito restrita de cinéfilos. Costuma ser o último título lembrado em
exercício de ordenação mental de sua filmografia. Geralmente, sequer é incluído
nas retrospectivas dedicadas ao cineasta.
Entretanto,
segundo Truffaut, dentre os filmes que realizou Atirem no pianista é o
que lhe deu maior prazer. É uma produção que levou adiante sem propósitos
elevados. Teve como meta apenas a vontade de se divertir[1].
Por isso, deu asas à experimentação ao tentar um “pastiche respeitoso”[2]
dos “B” movies estadunidenses que
tanto contribuíram para seu aprendizado[3].
Permitiu-lhe também satisfazer o desejo de trabalhar com o ator-cantor Charles
Aznavour, como há muito pretendia.
David Goodis,
autor da predileção de Truffaut, é o autor de Down there, romance
policial que deu origem ao roteiro. A adaptação usou de liberdade extrema, a
ponto de subverter totalmente o espírito do original. Há explicações para isso:
mais que o livro de Goodis, foi uma imagem suscitada pela leitura que levou
Truffaut a realizar o filme: “Uma casinha na neve, pinheiros e uma pequena
estrada enladeirada na qual desliza um carro sem que se ouça o barulho do
motor. Tive vontade de realizar essa imagem”[4]
— vista próximo do epílogo. É como se fosse um quadro que remete à ideia de
fragilidade, algo que pode ser desmanchado a qualquer momento. Nesse cenário de
instabilidade Charlie Kohler estará às voltas com mais uma costumeira tragédia.
A paisagem
nevada, a casa, o carro e a estrada: o filme se ordena de forma a conduzir o
espectador a esse cenário. É onde Léna (Dubois) encontrará a morte, por amor a
Charlie Kohler — o pianista introspectivo, de passado nebuloso, que foge de
problemas e parece predestinado à solidão. Aparenta retraimento inclusive quando
está acompanhado — lembra Léna. Charlie tem motivos para tanto: sofreu sempre
que manifestou interesse por alguém. Assim, prefere o isolamento a qualquer
envolvimento afetivo sério. Mantém relações descompromissadas com Clarisse
(Mercier) — generosa prostituta vizinha que o ajuda a cuidar de Fido (Kanayan),
o irmão caçula.
Charlie Kohler (Charles Aznavour) e Clarisse (Michèle Mercier) |
Atirem no
pianista começa à noite. Chico (Rémy), irmão mais velho de Charlie,
corre pelas ruas qual um Monsieur Hulot desesperado. Foge dos gângsters Momo
(Mansard) e Ernest (Boulanger), que parecem saídos das páginas em quadrinhos de
Tintim[5].
Vai de encontro a um poste e tomba atordoado. É acudido por um desconhecido (Joffe)
que puxa conversa sobre questões familiares. Caminham juntos por um tempo. Após
as despedidas, Chico retoma a corrida. Entra no bar de Plyne (Davri), onde
Charlie trabalha como pianista.
Conversam
rapidamente. Surge outro irmão, Richard (Aslanian), falsário como Chico. Ludibriaram
Ernest e Momo. Agora é o momento do ajuste de contas. Charlie não está disposto
a ajudar. É o honesto da família. Assumiu a guarda do caçula para livrá-lo das
más influências domésticas. Tem rosto inexpressivo, característica ressaltada
pelo semblante algo apático de Aznavour.
No bar, Charlie
toma lugar ao piano. Os clientes dançam, inclusive uma moça que se movimenta de
forma peculiar, em descompasso com o parceiro. Por isso, é esbofeteada. É
rápida a aparição da transgressora. Parece que entrou em cena apenas para se
mostrar e apanhar. Entretanto, não tem participação gratuita. Ela simboliza o
Truffaut de Atirem no pianista, refratário a qualquer norma e orientação,
aberto exclusivamente à satisfação de desejos e vontades.
Chico toma
assento ao lado do irmão. Observa-o tocar. Ernest e Momo irrompem no salão.
Charlie, que pretendia não se envolver, provoca uma confusão e atrapalha a
movimentação dos bandidos. Chico aproveita a oportunidade e foge. Em acordo com
máxima “o espetáculo não pode parar”, o cantor e compositor Boby Lapointe (o
próprio) toma o microfone e interpreta a estranha e bem-humorada canção Avanie
et framboise, da qual é autor.
O tom burlesco cede lugar ao drama
introspectivo. Léna, a garçonete, está interessada em Charlie. Porém , tem
dificuldades para se aproximar — como sugere a caminhada que fazem juntos ao
fim do expediente. Adiante, um flashback
explica o comportamento arredio do personagem cujo nome é, na verdade, Edouard
Saroyan, outrora pianista renomado. Mudou a identidade e optou pelo ostracismo
medíocre depois de passar por uma tragédia pessoal da qual a esposa Thérèse
(Berger) foi a causa.
Edouard não
sabia, mas se tornou famoso devido a Thérèse. Para projetá-lo, ela se entregou
ao empresário Lars Schmeel (Heymann). Passado algum tempo e sob pressão da
culpa, revela tudo ao companheiro. Sente-se suja e enojada e, por isso, não
pode mais amá-lo. Atordoado, Edouard percebe que não conhecia a mulher sequer o
amor — ao menos na forma manifestada por Thérèse. Abandona-a. Ela, sozinha e
desesperada, comete suicídio.
Thérèse (Nicole Berger) e Edouard Saroyan (Charles Aznavour) |
A culpa persegue
Edouard, já conhecido como Charlie. Condena-se ao isolamento. Assume a guarda de
Fido e arruma trabalho de faxineiro no bar de Plyne, até descobrir um piano
abandonado. Oferece-se para tocá-lo. Daí em diante não parou mais. Charlie
trouxe vida nova ao lugar, tornou-se a alma do Plyne’s Bar — estranho paradoxo
para quem teve a vida e a própria alma destruídas.
Léna descobre o
segredo de Charlie pela leitura de jornais antigos. Com dificuldade, fura o
bloqueio sentimental erguido pelo pianista. Qual Thérèse, também é generosa —
porém, de outra maneira. Sinceridade no relacionamento é tudo o que pede. Quer
ser avisada quando o amor acabar. Charlie diz que usará um boné se este dia
chegar. Os primeiros planos no rosto de Léna, na companhia do parceiro, são
raros em beleza e suavidade. Foram obtidos por uma câmera que ama os
personagens, característica permanente do cinema de Truffaut.
Léna manifesta o
desejo de devolver Edouard Saroyan à carreira perdida. Aparentemente, Charlie desaprova
a ideia, mas não opõe resistência. O amor irrompe novamente em sua vida, mas o
imponderável prepara armadilhas. Plyne também ama Léna, silenciosamente.
Acreditou que Charlie jamais se interessaria por ela. Enganado e desesperado, atraca-se
com o pianista. É morto em legítima defesa. Ferido e abalado pela culpa, Charlie
se esconde da polícia. Ernest e Momo, nesse meio tempo, atacam novamente. Sequestram
Fido, para pressionar Chico e Richard. Partem com a garoto rumo ao sítio da
família Saroyan, onde é encenada a paisagem afetiva que originou o filme. São
seguidos por Charlie, os irmãos e Léna.
Acima, ao centro, abaixo: Léna (Marie Dubois) e Charlie Kohler (Charles Aznavour) |
No destino, ela
se afasta momentaneamente, para levantar informações sobre a situação do amado.
Descobre vizinhos do Plyne's Bar dispostos a inocentá-lo. Aliviada, retorna com
a boa notícia. Chega praticamente ao mesmo tempo que os gângsters. O carro de
Ernest e Momo se aproxima silenciosamente da “casinha na paisagem nevada”,
cercada de pinheiros, pela “estrada enladeirada”. Começa o tiroteio. Fido
escapa; Chico e Richard também. Ernest e Momo são fatalmente apanhados na
explosão que destrói a casa. Tudo parece terminar bem. Porém, Léna perece
baleada. Curtido pela tragédia, Charlie retorna ao piano e ao bar, agora gerenciado
pela irmã (Sapritch/não creditada) de Plyne. Atirem no pianista chega
ao fim sem conceder ao protagonista oportunidade de reencontrar a felicidade
perdida.
Léna (Marie Dubois) e Charlie Kohler (Charles Aznavour) |
Quando começa, o
filme se parece a uma comédia pastelão. Logo assume dimensões de drama
intimista. A seguir, alinha-se ao gênero policial e ganha contornos melodramáticos
nas lembranças de Charlie. Retorna ao policial. Termina do mesmo modo que um film noir: o personagem derrotado
retorna conformado à vida de sempre. É uma obra dominada pela melancolia do
início ao fim, entrecortada por fugazes instantes de plenitude e felicidade. Truffaut
trata mesmo da vida instável e misteriosa, cercada por duros e radicais contrastes,
feita de sonhos e pesadelos, certeza e precariedade, luzes e sombras. No fundo,
é um filme sobre o amor — em suas várias formas — e tudo o que pode afetá-lo. Por
amor sofre Edouard, Thérèse se corrompe e Léna encontra a morte. Léna ama
Edouard e é amada por Plyne. Este, no desespero de se ver preterido, também
perde a vida. Tanta instabilidade afetiva combina com a maneira aparentemente
despreocupada de Truffaut filmar a história: movimenta a câmera livremente,
importa-se pouco com a pureza fotográfica e a limpeza das cenas, une bruscamente
os planos. Não é o diretor de toques delicados, contidos e gentis aos quais foi
habituado. Em Atirem no pianista é muito mais o roteirista de Acossado
que marca presença. Concebeu, à sua maneira, um filme radical, transgressor,
que não titubeia em incluir uma rápida e insólita passagem de humor: um dos
sequestradores, para distrair Fido, brinca ao afirmar que usa um casaco de
metal japonês. Diante da dúvida do garoto, jura pela mãe — que cairá morta se
estiver mentindo. É o que acontece. Ao término da fala do gângster, corta-se
para a rápida imagem, tomada em outro lugar, do falecimento de uma mulher (Paillette/não
creditada).
Apresentação: Pierre Braunberger. Roteiro: François Truffaut, Marcel Moussy, com base no romance Down
there, de David Goodis. Diálogos:
François Truffaut. Desenho de produção:
Jacques Mély (não creditado). Direção de
fotografia (Dyaliscope, preto e branco): Raoul Coutard. Canções: Dialogue d'amoureux, de
Félix Leclerc, interpretada por Félix Leclerc e Luciene Vernay; Avanie
et franboise, de e com Boby Lapointe. Direção de produção: Serge Komor. Administrador de produção: Roger Fleytoux. Script girl: Suzanne Schiffman. Assistentes de direção: Francis Cognany,
Robert Bober, Björne Johansen. Som:
Jacques Gallois. Montagem: Claudine
Bouché, Cécile Decugis. Música: Jean
Constantin, Georges Delerue. Maquiagem:
Jacqueline Pipard (não creditada). Assistente
de som: Jean Philippe (não creditado). Operador
de câmera: Claude Beausoleil (não creditado). Assistentes de câmeras (não creditados): Raymond Cauchetier, Jean-Louis
Malige. Secretaria da produção: Luce
Deuss. Tempo de exibição: 81
minutos.
(José Eugenio Guimarães, 1997)
Parabéns pelo blog :))
ResponderExcluirMuito obrigado, caro Felipe Pires!
ExcluirAbraços.
Super fotos /comentários
ResponderExcluirAgradeço mais uma vez por visita e gentileza do comentário, Marina.
ExcluirBeijos e abraços.