domingo, 16 de abril de 2017

A ENIGMÁTICA E DESCONCERTANTE "STORIA DI PIERA" POR MARCO FERRERI

O cineasta italiano Marco Ferreri (1928-1997) jamais facilitou a vida do espectador. Seus filmes são invariavelmente desconcertantes, provocadores e desafiadores. As intenções e os objetivos não se revelam de imediato. Incautos e prisioneiros do mal definido "bom gosto" geralmente os classificam como grotescos e francamente apelativos. No entanto, está entre as mais notáveis almas livres do cinema, sempre pronto a surpreender e a fazer pouco caso das convenções morais e limitações dos padrões narrativos estabilizados. Assisti a 13 dos 34 títulos que assinou em 37 anos de carreira. Os mais palatáveis, aos meus critérios, são os famosos e cáusticos A comilança (La grande bouffe, 1973) e Crônica de um amor louco (Storie di ordinaria follia, 1981). De 1983 é A estória de Piera (Storia di Piera/Die geschichte der Piera/La histoire de Piera), coprodução entre Itália, França e República Federal da Alemanha. Belissimamente filmado, com interpretações magistrais de Marcello Mastroianni, Hanna Schygulla, Isabelle Huppert e da garota Bettina Grühn, acompanha por aproximados 30 anos, em narrativa repleta de lacunas e desconexões, a trajetória da personagem do título — desde o nascimento à afirmação como atriz de sucesso. Piera cresce no seio de uma família fora do esquadro e tem relações no mínimo pouco ortodoxas com o pai e a mãe. É filme que exige muita atenção, ainda mais se há o propósito de se descobrir as pretensões de Marco Ferreri. Será que me saí bem na empreitada? A conferir. Segue apreciação escrita em 2002.







A estória de Piera
Storia di Piera/Die geschichte der Piera/La histoire de Piera

Direção:
Marco Ferreri
Produção:
Erwin C. Dietrich, Achille Manzotti
Ascot Film GmbH, Faso Film S.r.l., Sara Films, T. Films
Itália, França, República Federal da Alemanha — 1983
Elenco:
Isabelle Huppert, Hanna Schygulla, Marcello Mastroianni, Angelo Infanti, Tanya Lopert, Bettina Grühn, Renato Cecchetto, Maurizio Donadoni, Aïché Nana, Girolamo Marzano, Lidia Montanari, Laura Trotter, Marina Zanchi, Lina Bernardi, Elisabetta Ambrosini, Fiammetta Baralla, Serena Bennato, Rita Caldana, Cristina Forti, Daniela Nicosia, Pino Tosca, Vincenzo Aronica, Monica Assante, María Badmajew, Domenico Coppola, Salvatore Jacono, Silvia Nebbia, Fausto Schermi, Patrizia Roncati Negri, Solveyg D'Assunta, Laura Morante, Isabella Ippoliti e a não creditada Loredana Berte.



O diretor Marco Ferreri entre as atrizes Hanna Schygulla e Isabelle Huppert durante as filmagens de A estória de Piera



Marco Ferreri pertence ao seleto grupo das almas livres do cinema. Dele não se espera a normalidade de temas e encenações. De filme para filme, está sempre pronto a surpreender e desconcertar. Lançar o público na zona do desconforto diante de imagens provocadoras, até grotescas, parece ser a profissão de fé adotada desde que se fez cineasta com Los chicos (1959) passando pelos 34 outros títulos assinados até encerrar a atividade com o documentário Nitrato d'argento (1996), inédito comercialmente no Brasil. O rompimento com as convenções morais e limitações dos padrões narrativos são evidentes ao menos nestes títulos chegados ao meu conhecimento: Leito conjugal (Una storia moderna — L'ape Regina, 1963), La donna scimmia (1964), A semente do homem (Il seme dell'uomo, 1969), Dillinger morreu (Dillinger è morto, 1969), Liza (La cagna, 1972), Não toque na mulher branca (Touche pas à la femme blanche, 1974), A última mulher (La dernière femme, 1976), Ciao maschio (Ciao maschio, 1978), O futuro é mulher (Il futuro è donna, 1984) e A carne (La carne, 1991). Na comparação, os cáusticos e mais conhecidos A comilança (La grande bouffe, 1973) e Crônica de um amor louco (Storie di ordinaria follia, 1981) parecem realizações bem comportadas em forma e conteúdo.


A estória de Piera segue a Crônica de um amor louco. É das mais desconcertantes realizações de Ferreri, pela qual foi indicado à Palma de Ouro de Melhor Direção no Festival de Cannes/1983. Na oportunidade, Hanna Schygulla — pelo papel de Eugenia — venceu na categoria de Melhor Atriz. Repetiu o feito, como intérprete estrangeira, na disputa aos prêmios Sant Jordi (Barcelona), inclusive por Casanova e a revolução (La nuit de Varennes, 1982), de Etore Scolla. Neste certame, o companheiro de elenco Marcello Mastroianni foi igualmente premiado como Melhor Ator Estrangeiro pelos dois títulos.


Não é realização consistente. Cobre cerca de 30 anos, desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Apresenta muitas lacunas e desconexões. Cabe ao espectador preencher os vazios e atribuir sentido à narrativa, ao menos se demonstrar interesse em acompanhar a trajetória, desde o parto, da personagem do título.


A ainda menina Piera (Bettina Gruhn) e a mãe Eugenia (Hanna Schygulla)


Piera é parte de uma família fora dos padrões. Os momentos iniciais, do nascimento da personagem, compreendem um rápido prólogo de aproximadamente três minutos descontada a belíssima sequência de abertura — um amanhecer — com apresentação dos créditos ao som de inspirado arranjo instrumental de Les feuilles mortes. O pai, Lorenzo (Mastroianni), é professor e quadro do Partido Comunista. Aparentemente, é figura distante ou a esta condição foi relegado pela impotência. Apesar de tudo, é carinhoso e demonstra preocupação pelo futuro da filha, com a qual tem relação mais que paterno-filial. A mãe, Eugenia (Schygulla), sexualmente insatisfeita, é dada a escapadelas noturnas, quase sempre de bicicleta. Busca companhia em praias, terminais de transporte e bares. Completam o núcleo as amigas de Eugenia — geralmente reunidas em um ateliê de costura —, principalmente a muito próxima Centomila Lire (Montanari) e um irmão de Piera, de pouca importância para a história.


Centomila Lire (cem mil liras) é o apelido predominante ao nome real e desconhecido da personagem. É a primeira a ser vista em cena, no balcão de um apartamento, despedindo-se efusivamente de soldados aliados que participaram da libertação da Itália. A Segunda Guerra Mundial chega ao fim. Nesse contexto, o apelido se revela emblemático. Provavelmente, nos anos de maior carência material provocada pelo conflito, entregou-se à prostituição para sobreviver. Assim teria feito jus à denominação, provavelmente o valor cobrado por um programa. Eugenia, decerto, também se lançou ao trottoir com as mulheres de seu círculo de convívio, agora costureiras. Parte significativa desse grupo a acompanha no trabalho de parto, inclusive Centomile Lira. Piera nasce sem dor. A mãe, de olhar e sorriso enigmáticos — como esfinge no questionamento da vocação materna ou a duvidar da paternidade da concebida —, parece vacilar antes de assumir responsabilidade por ela. No entanto, logo exclama: "Piera, minha filha!".



Acima e abaixo: Bettina Grühn como Piera e Hanna Schygulla no papel de Eugenia


Segue-se salto de aproximadamente 15 anos. Piera, interpretada por Bettina Grühn, é garota sardenta e aparentemente entediada. Preocupa-se com a mãe. Sai à noite para procurá-la, vestida como mulher madura. O caminhar é provocante. O pai supostamente não se preocupa. Nesses primeiros momentos se percebe como Marco Ferreri filma muito bem. Os enquadramentos, nada convencionais, são belíssimos. Valorizam rostos e olhares como poucas vezes se viu. O ritmo é propositalmente lento, como se pretendesse permitir ao espectador um exercício de contemplação.


Tem-se a impressão de que Piera pretende seguir os passos da insatisfeita Eugenia. Às vistas de todos, participa de brincadeiras ousadas com os garotos de igual idade. Ninguém se importa. Sempre que pode está com a mãe. Não se adapta à escola. Assim, opta pelo corte e costura. Menstrua durante o aprendizado. A partir daí, participará mais ativa e afetivamente da companhia de Eugenia, que a inicia no sexo da forma a mais naturalizada: no campo, com homem que se banhava no rio. O precoce furor sexual de Piera preocupa as amigas da mãe. Convencido do problema, Lorenzo indica a filha a um médico. O tratamento pouco ajuda. O próprio ambiente familiar é centro da mais completa desinibição, inclusive nas relações libidinosas de Piera com o pai e a mãe. Até o amor homossexual a garota experimenta, passados 43 minutos de projeção quando se torna adulta e interpretada por Isabelle Huppert.


Piera (Bettina Grühn)

  
Eugenia e Piera, sempre juntas, chamam a atenção por onde passam. São submetidas a estranho momento de agressão por rapazes, uma tentativa noturna de estupro no cenário algo fantástico de um carrossel saído de sonhos fellinianos, iluminado pelos faróis dos veículos. Foram aparentemente salvas pela reação intempestiva e violenta de Eugenia, ao menos Piera: correu para casa insuflada pela mãe. Esta sequência é divisora de águas. A partir daí, Lorenzo e Eugenia ficam mais debilitados mental e fisicamente. O pai, inutilizado pela impotência, inclusive política, é internado com sinais acentuados de demência. Para animá-lo, a própria Piera se exibe para ele, além de tocá-lo genitalmente. Após a morte de Lorenzo — com o qual vivia ultimamente às turras —, Eugênia assume comportamento mais irracional e distante. Também é submetida a cuidados médicos. Nesta altura, Piera se estabelece artisticamente. É atriz de teatro, televisão, cinema e fotonovela. Tem Medeia como personagem favorito.


Piera (Isabelle Huppert) - à esquerda -  em família: a mãe Eugenia (Hanna Schygulla), o irmão e o pai Lorenzo (Marcello Mastroianni)

Lorenzo (Marcello Mastroianni), Eugenia (Hanna Schygulla) e a pequena Piera (Bettina Grühn)



O filme termina ao crepúsculo vesperal, com uma comunhão entre mãe e filha na praia deserta. Eugenia, de cabelos cortados devido à infestação de piolhos contraída no hospital, foge da reclusão com Piera. Parece buscar a liberdade que não mais terá. À beira mar, despe-se completamente. Obriga a filha a acompanhá-la no gesto. Abraçam-se, riem, beijam-se. Uma lamenta a fogosa cabeleira rala. A outra sente saudades do pai. Uma estranha confraternização não fosse um filme dirigido por Marco Ferreri. Ter sempre em mente esse cineasta excêntrico é fundamental para acompanhar com mais facilidade o tão incomum A estória de Piera, realização que zomba abertamente de todos os códigos morais.


Eugenia (Hanna Schygulla)

Piera (Isabelle Huppert) e Eugenia (Hanna Schygulla)


Qual seria o objetivo de Ferreri com este filme, que não simplesmente o de provocar perplexidade? Não é obra vazia, como muitos pensaram. Ele próprio nunca se preocupou em tecer explicações. Assim, aventuro-me a dizer, com justificado receio, que os momentos iniciais são fundamentais à compreensão de A estória de Piera. A Segunda Guerra Mundial na Itália — país que experimentou o fascismo, a ocupação nazista e foi porta de entrada dos aliados na libertação da Europa — cobrou altíssimo preço da geração que a vivenciou. Eugenia e Lorenzo são representativos desse período. Desarticularam-se nos anos de carência e permissividade decorrentes do conflito. Não conseguiram se posicionar coerentemente, nos padrões da normalidade, na ordem que se seguiu. Permaneceram como almas erráticas, em busca de um lugar de pertencimento jamais encontrado. A filha Piera, com todas as fragilidades e problemas, resulta desse processo. Tentará, ao longo dos anos, o ajuste à realidade que a ela se apresenta, mas também diante dos desafios, incertezas e promessas de novos tempos. Ela é fruto de uma relação dialética estruturada como tragédia. Não tem lugar garantido à segurança e estabilidade, muito menos emocional. Não para menos apresenta semblante tão enigmático e avesso à aceitação de certezas. Só lhe resta seguir em frente, alimentada pela falta de horizontes do pai e pelo caráter errático da mãe. Assim, tatibitate, é o que posso afirmar diante da perplexidade com as imagens e a narrativa apresentadas por Marco Ferreri em A estória de Piera.





Roteiro: Marco Ferreri, Piera Degli Esposti, Dacia Maraini. História: Piera Degli Esposti, Dacia Maraini com base em livro de ambos. Produção executiva: Luciano Luna. Música: Philippe Sarde, Loredana Berte (canção Sei bellissima, interpretada por Loredana Berte), Joseph Kosma e Jacques Prévert (excertos de Les feuilles mortes), Edoardo Vianello (canção Guarda come dondolo, interpretada por Edoardo Vianello), Evangela Papageorgeou (Fata Morgana, de Marisa Koch), Pierino Codevilla (Mi corazon, por Renato Angiolini). Direção de fotografia (Eastmancolor): Ennio Guarnieri. Montagem: Ruggero Mastroianni. Desenho de produção: Lorenzo Baraldi, Luciana Levi. Decoração: Francesco Frigeri. Figurinos: Nicoletta Ercole. Gerentes de produção: Gérard Gaultier, Claudio Gaeta, Gianni Stellitano. Som: Georges Prat. Músico: Stan Getz (solo de saxofone). Penteados: Gilda De Guilmi. Planejamento da maquiagem: Giancarlo Del Brocco. Maquiagem: Anni Nöbauer, Alfredo Tiberi. Primeiro assistente de direção: Fulvio Marcolin. Assistente de direção: Paolo Trotta. Pintura: Agostino Bivi. Assistente de desenho de produção: Giancarlo Capuani. Contrarregra: Luciano Targuini. Mixagem de som: Fausto Ancillai. Operador de boom: Fabio De Paolis. Efeitos de som: Aurelio Pennacchia. Edição de som: Donato Ungaro. Efeitos especiais: Giovanni Corridori, Tonino Corridori. Fotografia de cena: Domenico Cattarinich. Eletricista-chefe: Amilcare Cuccoli. Fotografia especial: Romolo Eucalitto. Operador de câmera: Aldo Marchiori. Assistentes de câmera: Ennio Picconi, Roberto Schettini, Gianfranco Torinti. Operador de câmera: Marco Sperduti. Segundo assistente de figurinos: Maria Rita Barbera. Confecção de figurinos: Franca Celli, Maria Carmela Rimini. Assistente de figurinos: Tiziana Mancini. Primeiro assistente de montagem: Cecilia Catalucci. Colorista: Renato Serafini. Assistente de montagem: Rosanna Landi. Continuidade: Beatrice Banfi. Voz de Hanna Schygulla em italiano: Solveyg D'Assunta. Ambientação: Marco Ferreri. Assistente de gerente de unidade: Claudio Gaeta. Secretaria da produção: Emanuele Gaeta, Tommaso Pantano. Voz de Bettina Grühn: Isabella Ippoliti. Assistente de dublagem: Novella Marcucci. Contabilidade: Dorina Mari, Raffaello Saragò. Voz de Isabelle Huppert: Laura Morante. Editora do livro: Bompiani. Estúdio de dublagem: C.V.D. Edição musical: National Music, Milão. Ateliers de figurinos: Annamode 68, Costumi Artistici M. Ferroni. Sets: Arredamenti Cineteatrali G.R.P., L'Immaginoteca. Estúdio da pós produção: Cinecittà. Filmes: Eastman Kodak. Calçados: I.C.P. Fornecimento de joias: Nino Lembo. Câmeras e equipamentos de filmagem: Panavision. Empresa de iluminação: R.E.C. Fornecimento de perucas: Rocchetti e Carboni. Fornecimento de tapetes: Sanchini. Tempo de exibição: 107 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 2002)

4 comentários:

  1. Hola Eugenio.

    A excepción de La carne en 1991 no he tenido la oportunidad de seguir muchas películas más de Marco Ferrari. No sé, si en su ánimo estaría la pura provocación con esta cinta, pues como dices nunca parece que explicó del todo como porqué hizo esta película. Lo que sí invita a repasar la cinta, más que su interés puramente artístico son sus actores y actrices casi como curiosidad del cine.
    Un abrazo y gracias por tu completisima evaluación.

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    1. Se puder, veja a película, Miguel. Acredito que seria uma experiência interessante. Atualmente, ando em busca de películas, para mim inéditas, de Marco Ferreri para assistir.

      Abraços.

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  2. Sinceramente é daquele tipo de filme que nunca veria. Seleciono muito aquilo que vejo e este estaria completamente fora da lista

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