Promissor, o cineasta brasileiro Francisco Cassiano
Botelho Jr. — Chico Botelho — sequer esquentou lugar. A meteórica carreira de
realizador resultou em apenas dois longas: Janete (1982) e o esteticamente interessante
e falho Cidade oculta (1986). Faleceu em 1991, aos 43 anos. Professor
de cinema da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo
(ECA-USP), também dirigiu curtas, escreveu roteiros, foi operador de câmera e
diretor de fotografia. Tanto Janete como Cidade oculta revelam
atração pelo tema da marginalidade urbana. O primeiro aborda a trajetória de
uma garota pobre, empurrada para a prostituição, criminalidade e detenção pelos
imperativos imediatos da sobrevivência. O segundo, de concepção mais arrojada,
é misto de musical e policial ambientado quase que invariavelmente nas áreas
marginais de São Paulo. O roteiro, repleto de improvisações, mira a violência e
arbitrariedade da polícia em relações espúrias com o tráfico de drogas,
extermínio de indesejáveis e ambientes esfumaçados das casas noturnas. Nestas, brilha
a escolada trambiqueira e dançarina Shirley Sombra (Carla Camurati),
sobrevivente anti-heróica, conhecedora dos segredos para se orientar
convenientemente entre os perigos à espreita nas vielas e quebradas. Do mesmo
traquejo não goza o perdedor Anjo (Arrigo Barnabé), predestinado a ser devorado
pela enigmática e sempre mutável noite paulistana. A apreciação a seguir é de
1987.
Cidade oculta
Direção:
Chico Botelho
Produção:
Wagner Carvalho, Walter Rogério,
Nikkey Palace
Orion Cinema e Vídeo, Embrafilme
Brasil — 1986
Elenco:
Carla Camuratti, Arrigo Barnabé,
Cláudio Mamberti, Celso Saiki, Jô Soares, Jayme Del Cueto, Chiquinho Brandão,
Wilson Sampson, Christina Sano, Renata Giglioli, Paulo Barnabé, Goemon, Itamar
Assunção, Beth Coelho, Ana Kfoury, Lali Krotoszynk, Manfredo Bahia, Satã,
Raimundo Mattos, Uady Filho, M. Antônio Araújo, Michel, Tânia Celidônio,
Marcelo Higussi, Fernanda Marmorato, Guilherme Werner, Juarez Estevan, Daniele
Cataldi, Fábio Moreira, Tonhão Parlato, Robson Azevedo, Clemente, Ronaldo
Passos, Pato Papaterra.
O cineasta Chico Botelho, falecido precocemente em 1991, aos 43 anos |
Quatro anos após
estrear no longa metragem com Janete (1982), Chico Botelho apresenta
o instigante, diferente, curioso e pouco satisfatório Cidade oculta, grande
vencedor do Rio-Cine Festival de 1986: acumulou prêmios para melhor filme,
direção, música, fotografia, trilha musical e ator coadjuvante (Mamberti). Pode-se
afirmar que é obra única na atualmente muito devastada paisagem cinematográfica
brasileira. Por aqui, até o momento, nada lhe faz paralelo. Esse aspecto deve
ter sensibilizado os jurados do Rio-Cine, ávidos por novidades.
Quando fez Janete,
Botelho contou com a estreita colaboração de Arrigo Barnabé e Walter Rogério. O
trio considerou a experiência frutífera. Assim, resolveu conjugar esforços em
outro trabalho. A partir de um fiapo de ideia sugerido por Barnabé — na noite
paulistana, um veículo de transporte se acidenta ao ser atingido por uma pedra —,
nasceu o roteiro de Cidade oculta, premiado pela Embrafilme em concurso realizado
na capital de São Paulo[1].
A ideia germinal
foi mantida. O próprio Arrigo Barnabé interpreta o outsider Anjo, personagem principal da trama e condenado a sete
anos de prisão por envolvimento acidental com o tráfico de drogas. Tudo porque,
premido pela necessidade, aceitou transportar uma carga não revelada. No
trajeto noturno, capota quando um bloco de concreto é arremessado contra o
veículo. Ferido e preso nas ferragens, Anjo teme o pior. Aconselha o
acompanhante Japa (Saiki), que escapou ileso, a se afastar do local. Depois de testemunhar
o roubo de embalagens de cocaína ocultas no carregamento, é preso pelo notório Delegado
Nestor Fraga (Mamberti), conhecido como implacável e incorruptível defensor da
lei. Porém, transforma-se, à noite, no criminoso Ratão — toxicômano demente,
traficante, líder de quadrilha formada por policiais corruptos e
exterminadores.
Anjo (Arrigo Barnabé), ferido em acidente |
Anjo (Arrigo Barnabé) e Japa (Celso Saiki) |
Cláudio Mamberti como o corrupto delegado de polícia Nestor Fraga, vulgo Ratão |
Libertado e
desempregado, Anjo encontra abrigo entre as instalações e equipamentos de
dragagem do Rio Pinheiros. Passa o tempo revirando o fundo turvo das águas em
busca de algo de valor. Numa noite reencontra Japa, que o questiona sobre o
acidente e o verdadeiro teor da carga acidentada. Fecha-se em evasivas. Mas passa
a revisar as circunstâncias que o levaram à prisão. Começa a investigar por
conta própria. Conhece, no cabaré SP-Zero, a enigmática Shirley Sombra
(Camurati). A garota, autoconfiante e individualista, parece saber de muita
coisa. Na realidade, é uma criminosa travestida de dancing girl.
Carla Camurati como a dançarina e trambiqueira Shirley Sombra |
Por meio de
Shirley, Anjo acumula e cruza informações. Descobre que caiu em armadilha
preparada pelo próprio Ratão. O violento misto de policial e bandido não
titubeia diante de ameaças: livra-se delas, de imediato. Mas não goza de tanta autonomia.
É controlado por Bozo (Del Cueto), proprietário da SP-Zero. Porém, ciente de
que Anjo está cada vez mais perto da verdade, trama para eliminá-lo de vez.
Acompanhado dos asseclas, cerca-o num sobrado mantido sob violento tiroteio.
Japa morre. Anjo é o próximo a tombar, eliminado pessoalmente pelo policial
matador. Shirley chega tarde para ajudá-lo, mas a tempo de eliminar Ratão. A
seguir, transforma-se em lenda ao desaparecer na misteriosa noite de São Paulo.
Ao centro, Japa (Celso Saiki) e sua gang |
Aficionados pelo
gênero policial — tanto os filmes quanto a literatura barata (em quadrinhos e bolsilivros) vendida em bancas de
jornais — sabem que o argumento de Cidade oculta não é pródigo em novidades. Chico Botelho
e parceiros de roteiro são os primeiros a reconhecer a falta de originalidade
da trama. Confessam — e a narrativa revela de imediato — que a história recicla
influências dos filmes noir, de
antigos seriados criminais, das aventuras de Spirit escritas por Will
Eisner e até de novelas radiofônicas como as protagonizadas pelo Sombra —
aquele que sabe do mal oculto nos corações dos homens. Provavelmente, veio
desse personagem o sobrenome de Shirley. Além do mais, ela se revela profunda
conhecedora da natureza humana, à semelhança do vingador radiofônico.
Ratão (Cláudio Mamberti) e Shirley Sombra (Carla Camurati) |
Mas essa história
banal é apenas o fio pelo qual Botelho, Barnabé e Walter Rogério revelam algo
mais sedutor: a capital paulista fotografada por ângulos inusitados,
principalmente à noite. A metrópole — reduto do caos, da desesperança e da
vacuidade — é a verdadeira estrela do filme, razão de todo o seu interesse e
fascínio. Recriada pelas lentes e luzes expressionistas da fotografia escura e
densa de José Roberto Eliezer, São Paulo se apresenta sedutora, misteriosa e ambivalente.
É uma estrutura que não se revela totalmente; como se fosse a própria esfinge ameaçadora
e impiedosa: devora quem não a decifra, principalmente aqueles que desconhecem
os códigos para se orientar por suas regiões mais escuras e intestinas. O romântico
Anjo está entre esses perdedores. Tomba por falta de jogo de cintura para
encarar a cidade. Essa ambivalência é essencial à sobrevivência de Shirley — espécie
de alma gêmea da selva de néon e concreto: publicamente, não se entrega nem se
deixa tocar.
Anjo (Arrigo Barnabé) e Shirley Sombra (Carla Camurati) |
A música enérgica
e instigante de Arrigo Barnabé mistura sem o menor pudor gêneros e estilos os
mais diversos e díspares. Vão da valsa ao rock, do jazz ao brega, do samba ao
soul, sem deixar de lado as contribuições de autores clássicos. Tudo isso reforça
a ousadia do visual. Confere sentido aos planos, magnetiza a imagem, traduz o
convite que São Paulo oferece para conduzir os incautos ao emaranhado de
perdições que a metrópole encerra. Arrigo Barnabé é um talento que, espera-se,
deve se firmar. Como compositor criativo há muito disse a que veio. Agora,
mostra-se promissor no campo das trilhas de cinema. Contribuiu para o
equivocado e horroroso Tensão no Rio (1981), de Gustavo
Dahl; Estrela nua (1984), de Ícaro Martins e José Antônio Garcia; Vera
(1986), de Sérgio Toledo; e Janete. Suas composições ilustram e
comentam as imagens. Não se reduzem a meros acompanhamentos aleatórios, como
acontece em muitos casos.
A montagem de
Danilo Tadeu é outro trunfo. Faz a história fluir com leveza e agilidade. Os
figurinos predominantemente negros de Ana Mara Abreu acrescentam mais pontos ao
esforço de produção.
Porém, se há, de
um lado, as excelências da fotografia, da música, da montagem e dos figurinos, sobram,
de outro, as deficiências provocadas pelo roteiro tolo e interpretações frágeis
— exceções para Carla Camurati, tão desenvolta sob a irrequieta cabeleira negra;
e Cláudio Mamberti, valorizador de qualquer papel. Arrigo Barnabé como ator é
lastimável. Por causa dos descompassos entre os elementos cinestéticos, Cidade
oculta tem unidade quebrada ou é apenas uma suntuosa embalagem plástica
desprovida de conteúdo à altura e desenvolvimento convincente. Então, não se
deve estranhar se em muitos momentos tudo se parece com um interminável clip como os exibidos pelo Fantástico
da Rede Globo de Televisão.
Chiquinho Brandão,
como uma mistura de mágico e ventríloquo, apresenta e comenta a história.
Shirley Sombra (Carla Camurati) e Riperti (Jô Soares), receptador de produtos roubados |
Curiosa é a forma
como Jô Soares conseguiu o papel de Riperti, receptador de produtos roubados —
uma pequena ponta, na verdade. Ao saber que o filme buscaria inspiração nos
quadrinhos de Will Eisner — um dos seus autores preferidos —, entrou em contato
com a produção e implorou pela participação.
A nota dissonante
vem da censura — dama de triste memória, incansável morta-viva que tanto nos
assombra. Ordenou o corte da cena na qual Ratão se injeta de cocaína. A
supressão acontece momentos antes de Shirley ser conduzida à presença do
personagem, depois de aprisionada na loja do receptador. Felizmente, a sequência
se apresenta completa na cópia em vídeo.
Anjo (Arrigo Barnabé) |
Argumento e roteiro: Chico Botelho, Arrigo Barnabé, Walter Rogério, com
a colaboração de Luiz Gê. Produção
executiva: Wagner Carvalho. Fotografia
(cores) e câmera: José Roberto Eliezer. Triha musical e direção musical: Arrigo Barnabé. Maquiagem: Maria antônia Lombardi. Continuidade: Inês Villares. Assistentes de câmera: Lito Menezes da
Rocha, Cláudia Davino. Iluminação do
show de Shirley Sombra: Sérgio Lima. Assistente
de cenografia e figurinos: Renato de Moraes. Consultor de figurinos: José Carlos Ribeiro. Coordenação de produção: Durval Ferreira. Canção título: Arrigo Barnabé, Eduardo Gudim, Roberto Riberti. Produção associada: Secretaria de
Estado da Cultura de São Paulo, Arrigo Barnabé, Wagner Carvalho, Walter Rogério,
Nikkey Ltda. Produção de elenco e
assistente de direção: Maria Madalena Ionescu. Coreografia: Rosane Maia. Direção
de produção: Ivan Novais. Produção
de campo: Patrícia do Amaral. Som
direto: Walter Rogério. Montagem:
Danilo Tadeu. Cenografia e figurinos:
Ana Mara Abreu. Intérpretes das canções:
Tetê Espíndola, Ney Matogrosso, Vânia Bastos, Paulo Barnabé. Tempo de exibição: 75 minutos.
(José Eugenio Guimarães, 1987)
[1] Além de Cidade oculta, mais nove
roteiros foram premiados no certame. No total, havia 120 peças inscritas.
Hola Eugenio.
ResponderExcluirAunque entiendo que la película evaluada te dejé una pobre impresión, te agradezco mucho reseñas del cine brasileño en general pues a España llega muy poca cosa a no ser en Festivales de Cine o en las filmotecas.
Creo que lo mejor de la película que comentas es la ambientación y el conocimiento de la ciudad de Sao Paulo, así como los aspectos técnicos, fotografía, música, etc.
En cambio unas pobres interpretaciones más un mejorable guión despiertan dudas de por qué fue premiada está película.
Muy interesante tu análisis, y agradecimientos por aprender de otro tipo de cine contigo.
Un fuerte abrazo.
El cine brasileño vive de ciclos, Miguel. La premiación aconteció en un momento particularmente rico de nuestra cinematografia, cuando nuevos valores estaban surgiendo, así como otros temas, más afinados con la contemporaneidade de aquel particular momento. Era una especie de renascimento. Esto, creo, influenció los jurados del Río-Cine, festival en el cual la película fue premiada. Creo que fue a causa de eso. A pesar de la película ser falla, había la gana de la novedad, de la creatividad y de apuntarse otro caminos.
ExcluirGrande abrazo y saludos, Miguel.
Gostei muito e junto com outros sobre essa trágica realidade social da vida nas cidades, creio ser uma excelente indicação para aulas sobre o tema. Usarei, claro que com sua permissão!
ResponderExcluirQuerida Lérida!
ExcluirÉ claro que pode utilizar. Se for por causa da permissão, está mais que concedida. Beijos e abraços.