Jacques Tourneur começou a dirigir nos anos 30, na França,
porém teve o talento evidenciado graças ao produtor Val Lewton, nos Estados
Unidos. Dirigiu filmes que marcaram época para a pequena RKO Radio; exemplos
maiores do ‘terror de sugestão’. Diante da falta de recursos que permitissem a explicitação
do sobrenatural, valorizou climas, ambientes e atmosfera. Sangue de pantera (Cat
people, 1942), A morta-viva (I walked with a zombie,
1942) e O homem-leopardo (The leopard man, 1943) ainda causam frisson pela capacidade de provocar a imaginação
do público. Daí em diante, o cinema de Tourneur foi marcado pela característica
de ceder ao espectador a tarefa de complementar lacunas propositalmente
deixadas nas histórias. Disso o anticlimático western Paixão selvagem (Canyon
passage, 1946) é exemplo bem acabado. Pouco há em comum entre a
realização e exemplares mais tradicionais do gênero. No lugar dos ensolarados
vales, desertos e planícies, a ambientação é uma verdejante floresta no
interior do Oregon. A ação livre e solta é, pode-se dizer, escamoteada. Por
outro lado, destacam-se os personagens naquilo que são, fazem e pensam.
Conquistar o Oeste não é o que mais importa, mas as disposições e capacidades
individuais de aceitar desafios impostos pelos elementos geográficos e humanos.
Poucas realizações valorizam tanto o sentido de pertencimento a uma comunidade
em formação e os compromissos daí decorrentes como Paixão selvagem. Sem esquecer
que, dada a época da produção, também inova na abordagem da questão indígena. A
apreciação a seguir é de 1992.
Paixão selvagem
Canyon passage
Direção:
Jacques Tourneur
Produção:
Walter
Wanger
Universal
Pictures
EUA — 1946
Elenco:
Dana
Andrews, Brian Donlevy, Susan Hayward, Patricia Roc, Ward Bond, Hoagy
Carmichael, Fay Holden, Stanley Hidges, Lloyd Bridges, Andy Devine, Victor
Cutler, Rose Hobart, Halliwell Hobbes, James Cardwell, Onslow Stevens, Tad
Devine, Denny Devine e os não creditados Erville Alderson, Richard Alexander,
Harlan Briggs, Roy Bucko, Spencer Chan, Jack Rube Clifford, Chester Clute, Tex
Cooper, Ben Corbett, Victor Cox, Jack Curtis, Tex Driscoll, Eddie Dunn, Frank
Ferguson, Janet Ann Gallow, John George, Karl Hackett, Sherry Hall, Daral
Hudson, Jack Ingram ,Willy Kaufman, Jack Kenny, Walter Lawrence, Rex Lease,
Joseph P. Mack, Mathew McCue, Francis McDonald, Kansas Moehring, Charles
Morton, Mary Newton, William H. O'Brien, Virginia Patton, Ralph Peters, Dorothy
Peterson, 'Snub' Pollard, Bob Reeves, Jack Rockwell, Gene Roth, Sam Savitsky,
Wallace Scott, Allen D. Sewall, Lucile Sewall, Harry Shannon, Tom Smith, Count
Stefenelli, Ray Teal, Peter Whitney, Chief Yowlachie.
![]() |
O diretor Jacques Tourneur. À esquerda, com a atriz Patricia Roc - intérprete de Caroline Marsh - nos bastidores de Paixão selvagem |
Reza o dito
popular: tal pai, tal filho. Literalmente a expressão é absolutamente
verdadeira nas considerações à francesa família Tourneur. O cineasta Jacques, filho
do diretor Maurice, iniciou carreira como assistente do pai, de quem aprendeu
as artes do ofício. Maurice é o célebre realizador de A mão do diabo (La
main du diable, 1943) e aproximadamente cem outros títulos trazidos à
luz no decorrer de uma trajetória que se estende de 1913 a 1948, consolidada na França
e nos Estados Unidos.
Jacques não foi
tão produtivo em comparação ao pai. Entre curtas e longas dirigiu cerca de 55 filmes
para cinema, desde que se lançou na atividade, em 1931, encerrando-a em 1966. A partir de 1956 teve
mais oportunidades na televisão, à qual dirigiu episódios de séries as mais
diversas. Na França, havia feito apenas quatro filmes — Tout ça ne vaut pas l'amour
(1931), Toto (1933), Pour être aimé (1933) e Les
filles de la concierge (1934) — quando, em 1935, despertou a atenção de
Val Lewton, então a serviço da Metro-Goldwyn-Mayer. Foi chamado aos Estados
Unidos para colaborar nas sequências de multidão e do fluxo revolucionário de A
queda da Bastilha (A tale of two cities, 1935)[1],
de Jacques Conway e do não creditado Robert Z. Leonard. Encerrada a tarefa,
permaneceu em Hollywood e na MGM. Realizou 20 curtas para a companhia, mais os
longas They all come out (1939), Nick Carter — super detetive (Nick
Carter, master detective, 1939), Nick Carter nos trópicos (Phantom
raiders, 1940) e Doctors don't tell (1941).
Entretanto, a
história do cineasta Jacques Tourneur de fato começa — se assim pode ser dito —
quando Val Lewton lhe atravessa novamente o caminho, desta vez como gerente da
unidade de produção de filmes de terror da pequena RKO Radio. A empresa não
dispunha de grandes recursos como a MGM. Precisava economizar em
caracterizações e efeitos especiais. Contratado para realizar uma pequena série
de filmes ambientados nas sendas do fantástico, Tourneur deveria se virar com
orçamentos apertados. Em compensação, teria ampla autonomia, o que significava
permissão para criar livremente. E criatividade não lhe faltava. Se não havia
dinheiro para explicitar o horror, valorizaria ambientes, climas, atmosfera e,
principalmente, o poder de sugestão permitido pelo cinema. Assim agiu com os
três filmes concebidos para a unidade de Lewton. Por mais que o cinema
contemporâneo tenha banalizado as dimensões do sobrenatural pela recorrência às
mais explícitas encenações, os filmes de Tourneur ainda são referências e causam
frisson, exatamente pela capacidade
de sugerir aquilo que não é mostrado. Confirmam-no as revisões contemporâneas
de Sangue
de pantera (Cat people, 1942), A morta-viva (I walked with a zombie,
1942) e O homem-leopardo (The leopard man, 1943).
Não é exagero
afirmar que a "escola" de Lewton lapidou a carreira de Jacques
Tourneur. Bancado por outras companhias em novas investidas no sobrenatural,
obteve sucesso com o britânico A noite do demônio (Night
of the demon, 1957) e a comédia macabra Farsa trágica (The
comedy of terrors, 1963). Esta foi filmada nos cenários que tanto
serviram às ousadas experimentações de Roger Corman na paupérrima American
International Pictures do produtor Samuel Z. Arkoff e, certamente, teve mais contenção
de recursos que os filmes da unidade de Lewton.
Do terror de
sugestão ao cinema noir — com
personagens ambíguos, realidade em dissolução, ambientes escuros e tramas marcadas
pela incerteza —, a carreira de Tourneur cumpriu praticamente um percurso
natural. Idílio perigoso (Experiment perilous, 1944), Expresso
para Berlim (Berlin express, 1948), A
maleta fatídica (Nightfall, 1957), e, acima de tudo,
o exemplar Fuga ao passado (Out of the past, 1947) engrandecem o
gênero. Memoráveis também são as incursões no território da ação franca e
aberta — tão caracteristicamente estadunidense —, aplainado pela perspectiva racionalista
de um francês: as peripécias de corsários — O gavião e a flecha (The
flame and the arrow, 1950) e A vingança dos piratas (Anne
of the Indies, 1951) — mais os westerns, dos quais Paixão selvagem é o
primeiro. Seguem-se O testamento de Deus (Stars in my crown, 1950), O
cavaleiro misterioso (Stranger on horseback, 1955), Choque
de ódios (Wichita, 1955) e Pelo sangue de nossos irmãos (Great
day in the morning, 1956).
Atualmente, gosto
muitíssimo de Paixão selvagem. Mas nem sempre foi assim. Era muito novo ao
tentar vê-lo pela primeira vez. Contava treze anos, em 1969, quando a televisão
o exibiu. Sabia que se tratava de produção embalada em luxuoso Technicolor
e, na época, as transmissões em cores estavam, ainda, distantes. Vencido este
fator, fui derrotado pelo andamento narrativo. Habituado ao western mais
tradicional — transcorrido em vales pedregosos e poeirentos, ensolarados desertos
e planícies —, estranhei uma realização que envolvia os personagens numa verdejante
floresta no interior do Oregon. Para piorar — em se tratando da idade — percebia
o escamoteamento da ação física, substituída por observações psicológicas, comentários
sobre a condição humana e a exaltação da vida comunitária. Outra oportunidade surgiu
em 1976, também na TV, em plena madrugada avançada. Dessa vez o sono, reforçado
pela horrível dublagem, impediu a apreciação. Por fim, vi a fascinante e
incomum realização de Tourneur em 1992. Mais uma vez a televisão se oferecia,
porém, com cores e som original. A disposição para aceitar com boa vontade um
western em tudo diferente das convenções também se apresentava.
![]() |
Acima e abaixo: Logan Stuart, interpretado por Dana Andrews |
Incomum é o
mínimo a se dizer de Paixão selvagem. De certo modo a
narrativa é influenciada pelos mesmos elementos que caracterizam as realizações
de Tourneur para Val Lewton. É um western valorizado pela ambientação e personalidades.
Os tipos que a percorrem são poliédricos, dotados de almas; comunicam-se por
gestos e sensações. Ficam de lado o extravasamento aberto da ação física ou os grandes
arroubos. Pode-se dizer que é totalmente anticlimático. Por mais que o
realizador estivesse já impregnado pelos ensinamentos da cartilha hollywoodiana,
a sua maneira de perceber o mundo permaneceu fiel aos aspectos contemplativos e
discursivos do racionalismo francês. Isso não significa que os personagens se
percam em falação; muito ao contrário. O laconismo predomina. Poucas palavras
bastam para expor características psicológicas e relacioná-las à ambientação de
exuberante colorido que fornece contexto à história. Poucas vezes o entorno
geográfico contou tantos pontos favoráveis em um filme.
Paixão selvagem é a primeira
experiência de Jacques Tourneur com a cor. O diretor de fotografia é o mestre Edward
Cronjager. Preenche os planos com luzes e sombras na matização de ambientes,
situações e indivíduos. O colorido preserva sempre um toque de mistério, pronto
a impedir que situações e personagens se revelem de imediato. Claro! Tourneur
nunca se entregou à facilidade das aparências reveladas à primeira mirada.
A ação se passa
no Oregon, em Jacksonville, pequena cidade essencialmente mineira. Porém, em
momento algum se percebem mineiros trabalhando. O comércio de madeira é outra
atividade de relevo, mas madeireiros em ação também não são vistos. Os
personagens clássicos dos westerns — cowboys e pistoleiros — certamente não são
encontrados. Mas há a comunidade em formação, enriquecida pelos paradoxos
decorrentes das idiossincrasias que fornecem substâncias aos componentes da
fauna humana aí assentada. É um dos mais ricos e diversificados ajuntamentos
humanos percebidos num drama de fronteira.
Jacksonville é
pequena mas dinâmica. Está em permanente ebulição e respira autenticidade. Oferece
variadas possibilidades de desenvolvimento narrativo. Por outro lado, também
não é um mundo fechado, apartado de contextos sociais mais amplos. Mesmo
distante dos grandes centros de tomada de decisão, os moradores se sentem integrados
aos esforços de um país em expansão, animado pela confiança nas promessas do
progresso. Do leste chegam notícias da construção de uma ponte sobre as
cataratas do Niagara. Enquanto isso, a localidade sequer é servida por diligências.
Faltam estradas. Comunicações e abastecimentos dependem de cavalos e lombos de
burro. As vias de acesso são perigosas, mais por causa de salteadores que
propriamente de índios insatisfeitos à espreita. Os primeiros habitantes da
terra ainda estão, de algum modo, integrados às experiências vitais que sempre
conheceram. Observam os intrusos com estupefação, desconfiados de hábitos como
a propriedade privada de extensas áreas territoriais nas quais se erguem
moradias permanentes.
![]() |
Logan Stuart (Dana Andrews) - à direita - com a família Dance: Mrs. Dance (Dorothy Peterson), Asa (Tad Devine), Bushrod (Denny Devine) e Ben (Andy Devine) |
Para um western
de meados dos anos 40, Paixão selvagem inova ao retratar os
índios, principalmente nos interesses que os motivam. A deixa para tanto é
fornecida pelo agricultor Ben Dance (Devine). Por mais que a presença dos peles-vermelhas
suscite desconfiança e pavor junto aos colonizadores, há a salutar e adiantada
vontade de humanizá-los e compreendê-los. Ben vive fora da cidade, com a esposa
(Peterson/não creditada) e filhos menores Asa (Tad Devine) e Bushrod (Denny
Devine)[2].
Sabe que a terra foi tomada aos índios e estes, certamente, disso se ressentem.
Alega disposição para defender o pedaço de chão no qual se instalou, mas
reconhece o direito dos primeiros ocupantes à resistência. Inclusive sustenta para
a esposa e demais colonos — como se falasse em nome do diretor — os reais motivos
da animosidade: a chegada de novas gentes às áreas fronteiriças não os aflige,
mas a apropriação privada da terra e as edificações permanentes, elementos
desconhecidos de seus modos de vida.
Paixão selvagem tem muitas tramas
e subtramas. A narrativa, pausada e desenvolvida sem pressa, é enriquecida com
triângulos amorosos, ataques traiçoeiros, julgamentos sumários — à moda da informal
justiça popular —, brigas a socos, corrupção, mutirão, ataque de índios, jogos
de cartas, assassinatos, começos e recomeços. A produção é impecável, a começar
pela direção de fotografia de Edward Cronjager e pela trilha musical do não
creditado Frank Skinner — à qual se juntam quatro composições de Hoagy Carmichael
interpretadas pelo próprio: Rogue River Valley, I'm
gettin' married in te mornin' (em duo com Andy Devine), Silver
saddle e Ole buttermilk sky, composta em parceria com Jack
Brooks. Aliás, Carmichael integra o elenco na pele do pequeno comerciante Hi
Linnet, permanentemente vestido a rigor. Se estivesse trajado na cor negra,
seria um similar do agente funerário conforme a imagem consolidada pelo cinema.
O personagem também é uma espécie de menestrel — sempre cantarolando com o
acompanhamento de uma rebeca — e somente se desloca sobre uma mula. Além do
mais, é um bisbilhoteiro. Passa as horas espreitando os moradores em seus atos
e movimentos. Quando questionado a respeito, alega possuir tempo para isso, pois
não é muito exigido pelo pequeno negócio que explora.
![]() |
Hi Linnet, interpretado por Hoagy Carmichael |
A presença de
Carmichael é uma das boas atrações de Paixão selvagem. Talentoso, apareceu
pouco no cinema, mas foi um dos melhores atores característicos do seu tempo.
Impossível esquecê-lo como o pianista Cricket de Uma aventura na Martinica
(To
have and have not, 1944), de Howard Hawks; Butch Engle de Os
melhores anos de nossas vidas (The best years of our lives, 1946),
de William Wyler; e Thomas George Braken de A família do gênio (Belles
on their toes, 1952), de Henry Levin, para ficar apenas com esses
exemplos.
No quesito
interpretações, a realização apresenta bons e equilibrados valores, em
desempenhos próximos do natural. Conferem ao filme uma bem vinda aura de
autenticidade. No geral, exageros não são percebidos, mas apenas o transcorrer
da vida em seus muitos momentos corriqueiros. É a regra e não a exceção que
conta. Tais qualidades conferem sentido ao elogio dirigido por Jacques
Lourcelles a Tourneur: é o poeta na normalidade, capaz de extrair o sublime dos
chamados tempos mortos, nos quais nada de extraordinário acontece. Por outro
lado, Brian Donlevy, Susan Hayward, Lloyd Bridges, Andy Devine, Stanley Ridges,
Rose Hobart, Halliwell Hobbes, Patricia Roc, Dorothy Paterson e outros — em
pequenas ou grandes participações — não representam indivíduos chapados, totalmente
bons ou absolutamente maus. São matizados — como todo ser humano —, com seus
defeitos e qualidades. A exceção, certamente, é o excelente Ward Bond na
caracterização do grandalhão e assustador Honey Bragg. Provavelmente, é o único
papel do ator como bandido de fato. Chega a ser a personificação da maldade. É
tão diferenciado que sequer reside na cidade, mas na floresta, solitário, sem
estabelecer contatos corriqueiros com os demais moradores. Refratário e
antissocial, está permanentemente pronto para gerar discórdias. De suas más
ações — provocando, roubando ou matando gratuitamente — decorre o extraordinário:
uma sucessão de acontecimentos que interrompe o fluir tranquilo, contínuo e
constante do cotidiano em Jacksonville. Termina envolvendo todos os
habitantes do lugar em atos de resultados drásticos, que reordenam a face da
comunidade e obrigam a consolidação de novos pactos e compromissos — como ocorre
nas melhores tragédias.
![]() |
Ward Bond como Honey Bragg |
O roteiro de
Ernest Pascal, baseado na novela Canyon passage, de Ernest Haycox[3]
— originalmente publicada no The Saturday Evening Post —, está apoiado
no cordato, pragmático e centrado Logan Stuart, talhado sob medida para Dana
Andrews. Outrora caçador, agora é empreendedor paciente. É proprietário de um
armazém geral conduzido com alguma displicência aventureira e uma companhia de
transporte em lombo de burros. Relaciona-se com praticamente todos os moradores
da cidade. Aparentemente está afetivamente interessado em Caroline Marsh
(Roc), hóspede da família Dance desde que perdeu os pais em contendas com os
índios. Porém, Logan conduziu de Portland para Jacksonville, durante alguns
dias, a jovem Lucy Overmire (Hayward), noiva do amigo George Camrose (Donlevy).
Este é o banqueiro local. No entanto, é pouco cioso de suas funções: é jogador
compulsivo, sempre fadado a perder somas significativas nas partidas, inclusive
depósitos de clientes. O vício incurável de Camrose provocará tumultos e
abalará a relação amorosa com Lucy. Apesar da boa aparência, fineza no trato e
relativa integração aos mores da comunidade, o personagem é tão ou mais
dissoluto que Honey Bragg, cujas ações violentas e impensadas arrastarão os
índios para a guerra. Logan, por pressão do clamor de um grupo social carente
de diversão, terá com Bragg — de quem é claramente um desafeto — uma das mais
violentas contendas a soco exibidas pelo cinema da época. Tourneur, pelo visto,
exigiu realismo e foi atendido. Tanto que os atores, segundo consta, necessitaram
de curativos e até de alguns remendos na epiderme.
![]() |
Susan Hayward como Lucy Overmire |
![]() |
Logan Stuart (Dana Andrews) entre Lucy Overmire (Susan Hayward) e Caroline Marsh (Patricia Roc) |
A sutil e pausada
descrição do cotidiano de Jakcsonville contém os pontos altos de Paixão
selvagem. Hi Linnet marca presença em quase todos, cantarolando
enquanto cavalga, ou vigiando, como aplicado bisbilhoteiro, os moradores. Nada escapa
de seu aguçado poder de observação. Mas o melhor dessas relações comunitárias é
a junção de esforços em mutirão para benefício de um jovem casal, com vistas à construção
de uma casa e preparo do solo para cultivo. Provavelmente, nessa sequência Peter
Weir se inspirou para planejar tomadas similares no erguimento coletivo de um celeiro
em A
testemunha (Witness, 1985). Durante o desenrolar dessa ação, explicitam-se
as diferenças entre Logan — sempre focado e ciente de que o essencial da vida é
a consolidação de relações sólidas com o grupo de pertencimento — e o
imediatista George Camrose. Aquele se envolve de todo no esforço solidário de
construção. O outro apenas marca presença, bem vestido como sempre. Durante o
desenrolar da atividade, prefere a sombra de uma árvore na companhia
desconfiada de Lucy, enquanto projeta um futuro desprovido de bases sólidas.
Logan aceita os desafios do presente. George prefere colher os frutos sem se envolver
com o trabalho de cultivá-los. Um está ajustado aos códigos da fronteira em
expansão e às incertezas do processo. O outro prefere a estabilidade permitida
por um centro consolidado e, nesse jogo, a embrionária Jacksonville só
significa fastio e insegurança. Logan está preparado para enfrentar os reptos
psicológicos da aventura rumo ao Oeste, a terra da promissão — pois está
disposto a amanhá-la. George despreza o esforço e a racionalidade. A eles
prefere o imediatismo cheio de riscos e os golpes da sorte.
![]() |
George Camrose (Brian Donlevy) e Lucy Overmire (Susan Hayward) |
A armação
dramática de Paixão selvagem à maneira do cinema de sugestão de Tourneur
lembra, sempre, o fluxo constante da vida, inclusive os sacrifícios cobrados ao
longo do processo. No entanto, aos revezes e às perdas — informa o cineasta —
todos estão habituados, até os espectadores. As derrotas são partes do dado
ordinário do viver. Existir é morrer, perder e cair. Tudo isso é o banal. O
importante é o extraordinário da superação, o seguir em frente. Alguns
personagens perecem durante os conflitos. Mas a câmera não vê necessidades de
mostrá-los em seus derradeiros instantes. Em geral, morte alguma é vista ao
longo de todo o filme. O espectador saberá, pelas informações que recebe
durante o avançar da narrativa, que alguém simplesmente deixou de fazer parte
do grupo. É o escamoteamento que tanto me incomodou quando tentei assistir ao
filme pela primeira vez. Importam a continuidade e celebração da existência
coletiva. Certamente, em seus periódicos rituais de celebração e renovação da
vida, a comunidade cultuará de algum modo a memória dos caídos. É o sentido que
parece ser tirado da confiante cavalgada de Logan e Lucy, no epílogo, rumo a um
objetivo que, ao fim e ao cabo, reverterá em prol da continuidade de
Jacksonville. O espírito progressista da conquista nisto implica: continuar! É
um filme impregnado de otimismo. Os personagens de Andrews e Hayward se revelam
almas gêmeas no transcorrer das alterações comunitárias. Um rearranjo também
aguarda Caroline Marsh. Ela, por almejar um tipo de vida mais gregário,
descobriu que não estava plenamente ajustada aos inquietos anseios de Logan.
Melhor para Vane Blazier (Cutler), que preenche os requisitos para completar os
desejos da jovem agregada dos Dance.
![]() |
Brian Donlevy no papel de George Camrose |
No tocante aos
aspectos que conferem autenticidade histórica ao filme, o combate aos índios
não se faz a cavalo, mas a pé, em grupos pequenos, que esmiúçam com cuidado
cada canto da mata. Os nativos correspondem no mesmo diapasão. Os oponentes se
acercam cuidadosamente, entre as árvores que lhes servem de escudo e sem muito
estardalhaço. Logan e companheiros não usam coldres e cinturões. As armas estão
presas aos cintos, à frente do corpo. Pode não parecer muito elegante em
comparação com as convenções moldadas pelo western cinematográfico, mas a
Jacques Tourneur importava reconstituir com o máximo de fidelidade os costumes
como de fato eram. Neste ponto cabe acrescentar que os índios são representados
por autênticos remanescentes das tribos que habitavam a região de Jacksonville.
Paixão selvagem é o único filme
hollywoodiano com participação da atriz britânica Patrícia Roc. Terminada a
guerra na Europa, regressou ao país de origem e consolidou carreira de relativa
popularidade nas produções inglesas.
Em 1947, os
compositores Hoagy Carmichael e Jack Brooks — pela autoria de Ole
buttermilk sky — foram indicados aos prêmios Oscar de Melhor Música e
Melhor Canção. Perderam para Zip-a-dee-doo-dah, de Allie Wrubel e
Ray Gilbert, composta para Canção do Sul (Song of the South, 1946),
produção da Walt Disney Productions que combina ação viva com desenho animado,
sob a direção de Wilfred Jackson e Harve Foster.
Roteiro: Ernest Pascal, com base na novela de Ernest
Haycox, Canyon passage, originalmente publicada no The Saturday Evening Post.
Produção associada: Alexander
Golitzen. Música: Frank Skinner (não
creditado). Direção de fotografia
(Technicolor): Edward Cronjager. Montagem: Milton Carruth.
Direção de arte: John B. Goodman, Richard
H. Riedel. Decoração:
Russell A. Gausman, Leigh Smith. Figurinos:
Travis Banton. Penteados: Carmen
Dirigo. Maquiagem: Jack P. Pierce. Assistente de direção: Fred Frank. Direção de som: Bernard B. Brown. Técnico de som: William Hedgcock. Fotografia especial: David S. Horsley. Dublê para Lloyd Bridges: Calvin
Spencer (não creditado). Segunda câmera:
Henry Cronjager Jr. (não creditado). Direção
musical: Frank Skinner. Músico:
Ethmer Roten (não creditado). Consultoria
associada de Technicolor: William Fritzsche. Direção de diálogos: Anthony Jowitt. Consultoria de Technicolor: Natalie Kalmus. Apresentação: Walter Wanger. Direção
de pesquisa (não creditada): Nan Grant, Jean Kenney. Estúdio de mixagem de som: Western Electric Recording. Tempo de exibição: 92 minutos.
(José Eugenio Guimarães, 1992)
Es un gran gusto y placer poder leer un texto tan completo sobre una película y un director de cine.
ResponderExcluirComo siempre amigo Eugenio un gusto poder seguir aprendiendo de cine de un gran experto como tú.
La música de la película me gusta especialmente.
Gracias y un abrazo.
Muchas gracias por su aporte, Miguel. Jacques Tourneur, actualmente, está olvidado, infelizmente. Pero es un director de raro talento, que merece ser rescatado, inclusive toda su obra.
ExcluirEugenio,
ResponderExcluirEra muito difícil, naquela idade, aceitarmos filmes do gênero western sem que houvesse neles, de fato, um clima do qual nos acostumamos ver. Entendo vossa situação passada porque também já sofri muito com isto e passei muita raiva com tais situações.
O que ocorre é que foram filmes feitos por adultos, pessoas de mentes já completas. E jovens de cabeças arrevoadas e ávidos por movimentos como éramos naquela idade ficava muito dificil aceitar e entender o que desejavam transmitir naqueles filmes, que deveriam ser visto apenas por adultos.
Não conheço esta fita do Jacques e que me parece ser um bom filme.
Pelo que li ela tem muito mais do que o modesto titulo insinua.
Gostaria intensamente de conhece-la porque, além do elenco bem nobre, as nuances que a película contem é um alto convite para quem ama esta arte e gosta de ver coisas boas.
Não conheço nada do Tourneur da década de 1940 ou antes. O primeiro titulo que vi dele foi o movimentado, e até bem agradável para a época, O Gavião e a Flecha/50.
Tocaste no nome de Roger Corman. E mesmo que isso não ocorresse eu tocaria, porque o Jacques teve que fazer "serviços" dos quais o velho Corman já estava calejado de fazer. Nunca conheci diretor mais contido em gastos.
E seus filmes eram verdadeiras minas de dinheiro e sem nunca mostrar um monstro como insinuava nas fitas. Apenas as sugestões e ligeiros flashs, para iludir o espectador. E seus filmes eram puro sucessos. Época, meu caro, época!
Falaste também em Choque de Ódios/55. Na época em que vi este faroeste, com o McCrea, eu fiquei encantado. Vi ali uma fita bem feita, um faroeste de fato e com um mocinho de fato.
Nunca mais o vi e também nunca mais o esqueci, considerando este o mais agradável filme deste ator ao lado de Aliança de Aço e Pistoleiros do Entardecer.
É que fizeram com ele uma coisa terrível e que somente vim a descobrir tarde demais; mudaram seu titulo para A Ronda da Morte.Veja só!
Quando falas de interpretações boas e próximo do natural, é exatamente qualidades de trabalhos assim que me fazem valorizar muito outros atores e que não me espreito muito em falar deles. Esta tonalidade que estes bons atores dão às películas tornam-nas muito mais aceitáveis e acrescenta valores extras no desenrolar do filme.
Por tudo o que li sobre este filme vou procura-la para conhecer, porque ela me parece ter sido criada com padrões selecionados.
Do Jacquer Tourneur ainda vi mais uns quatro filmes, entre eles, de 1959 Timbuktu e O Gigante de Maratona, dos quais nada recordo e mais alguns cujos titulos me fogem.
jurandir_lima@bol.com.br
Jurandir,
ExcluirÉ um filme em tudo belíssimo. Não sei se terá facilidade para localizá-lo. Venho tentando já há algum tempo, pois gostaria de ter uma cópia ao alcance da mão. Há algumas versões do Youtube, mas não são confiáveis. Faltam cerca de 30 minutos. Então, não vale a pena. Filmes editados por terceiros são para evitar.
Conheço quase tudo do Jacques Tourneur. Quase... Não vi "Timbuktu" e "O gigante de Maratona". Este tem a codireção do italiano Mario Bava (não creditada), o que é uma garantia e tanto. Talvez o veja, um dia... Títulos assim não me comovem tanto. Mas verei que tiver a oportunidade.
Abraços.