Um dos prazeres indiscutíveis da minha infância consistia
em ir ao cinema com o pai, Altamyr Guimarães, também cinéfilo. Juntos assistimos,
em 1965, no finado Cine Brasil de Viçosa/MG, ao western A morte de um pistoleiro
(Joaquín
Murrieta, 1964). Como quase sempre acontecia quando os filmes versavam
sobre fatos e homens reais, ouvi uma preleção a respeito do personagem do
título: fora-da-lei aos olhos dos estadunidenses que se apossaram da Califórnia
e herói vingador para os mexicanos que a perderam. Marginalmente, a luta do biografado
por justiça inspirou o autor Johnston McCulley a escrever, em 1919, o folhetim The
curse of Capistrano, base para o lançamento do herói mascarado Zorro.
Em 1965, com 9 anos, fiquei impressionado com A morte de um pistoleiro.
Pareceu-me um western notável e algumas passagens permanecem indeléveis em
minha memória. Acreditava que era produção estadunidense por causa do diretor
George Sherman, do cartaz e dos atores principais. Muito depois descobri que é
produção espanhola, hoje relegada à obscuridade. O ponto de vista impresso à
narrativa é francamente favorável à luta de Joaquín Murrieta (ou Murieta),
interpretado com correção e discrição por Jeffrey Hunter. Arthur Kennedy faz o
inicialmente amigável Capitão Harry Love, xerife que se obrigará a persegui-lo.
A apreciação a seguir é de 1974.
A morte de um
pistoleiro
Joaquín Murrieta
Direção:
George Sherman
Produção:
Pro Artis Ibérica S. A.
Espanha — 1964
Elenco:
Jeffrey
Hunter, Arthur Kennedy, Diana Lorys, Roberto Camardiel, Sara Lezana, Mike
Brendel, Frank Braña, Gonzalo Esquiroz, Fernando Villena, Juan Cazalilla, Héctor
Quiroga, Julio Pérez Tabernero, María José Collado, David Thompson, Andy Anza,
Pedro Osinaga e os não creditados José Luis Chinchilla, Sancho Gracia, Jose
Halufi, Rufino Inglés, Alfredo Muñiz, Guillermo Méndez, Enrique Santiago,
Freddie Toehl.
![]() |
Bastidores de O tesouro de Pancho Villa (The treasure of Pancho Villa, 1955) O diretor George Sherman entre Gilbert Rolland e Shelley Winters, intérpretes do Coronel Juan Castro e de Ruth Harris |
Joaquín Murrieta
(ou Murieta) Carrillo merece díspares considerações a depender das populações e
dos lados da fronteira. Para os estadunidenses é simplesmente um bandoleiro. Já
os mexicanos o têm na conta de herói, vingador e guerrilheiro. Chegou ao fim da
vida assassinado, em 25 de julho de 1853, na zona fronteiriça entre México e
Estados Unidos, vitimado por emboscada armada pela patrulha de rangers californianos organizada exclusivamente
para prendê-lo ou eliminá-lo. A fama começou, segundo a maioria das versões,
quando teve a área de garimpo atacada por estadunidenses. Sofreu brutal
agressão e a esposa terminou estuprada e assassinada. No contexto de segregação
racial que tinha os mexicanos por vítimas, sabia: jamais conseguiria reparação
segundo os ritos formais da Justiça. Por isso, a vida de homem pacato mudou
completamente. Armou-se, aprendeu a atirar e caçou com determinação os agressores,
até matá-los. Foragido, passou os anos seguintes à frente de um grupo armado.
Pretendia, em acordo com os relatos, retomar a Califórnia para o México.
![]() |
Jeffrey Hunter na caracterização de Joaquín Murrieta |
Pouco se sabe da
vida de Joaquín Murrieta, transformada em lenda pela cultura popular mexicana
quando ainda cavalgava. Foi enaltecida em versos, contos, livros, brochuras e
canções. Entre os que o reverenciaram estão o compositor e cantor chileno
Víctor Jara — com o corrido A Joaquín Murieta — mais o conterrâneo
e poeta Pablo Neruda — a cantata Fulgor y muerte de Joaquín Murieta, recentemente
interpretada e gravada por Olga Manzano e Manuel Picon. O personagem,
provavelmente, inspirou Johnston McCulley em 1919, quando escreveu a novela
popular The curse of Capistrano. Nesta, o herói mascarado e em trajes
negros é o Zorro. O autor, por sua vez, teria se baseado em The
life and adventures of Joaquín Murieta: the celebrated California bandit,
escrito por John Rollin Ridge em 1854.
Joaquín Murrieta
é símbolo da resistência de mexicanos espoliados e violentados pela prepotência
econômica, militar e racial estadunidense. Segundo a Associação dos Descendentes
que lhe leva o nome, assassinar gringos não era a sua missão. As campanhas que
protagonizou, de cunho político e militar, visavam exclusivamente a
reincorporação da Califórnia ao México. A região e outras áreas — cerca de um
milhão e quatrocentos mil quilômetros quadrados — foram perdidas para os
Estados Unidos em 1848, ao final de uma guerra de dois anos, pela assinatura do
Tratado de Guadalupe Hildalgo. Em compensação, o país derrotado foi indenizado
com módicos 15 milhões de dólares. Quanto aos mexicanos pobres, descendentes de
índios, que habitavam as regiões anexadas, tiveram que se virar por conta
própria — ainda mais com a afluência crescente de contingentes populacionais
brancos. Em 1849 a
marginalização dos nativos aumenta diante da descoberta de ouro — que eleva
exponencialmente os habitantes da Califórnia — e a especulação fundiária. A
situação pouca se altera quando o território se torna o trigésimo primeiro
estado da União no ano seguinte. Os contextos social, político e econômico
estavam preparados para o surgimento de Joaquín Murrieta.
![]() |
Joaquín Murrieta (Jeffrey Hunter) antes da "perder a inocência" |
![]() |
Rosita (Sara Lezana), esposa de Joaquín Murrieta (Jeffrey Hunter) |
![]() |
O xerife Capitão Harry Love (Arthur Kennedy) |
Durante muitos
anos pensei que A morte de um pistoleiro fosse produção estadunidense. Era o
que sugeriam George Sherman na direção, o elenco capitaneado por Jeffrey Hunter
e Arthur Kennedy, e o título supostamente original, apresentado nos cartazes e
demais reclames publicitários como Murieta!. Estava com 9 anos quando o
vi, em 1965. Fiquei impressionado com a exposição. Pareceu-me um western
incomum. Algumas imagens ficaram indelevelmente gravadas na memória: a
violência contra Joaquín (Hunter) e a esposa Rosita (Lejana), a cômica e
fracassada sequência da tentativa de enforcamento de Garcia Três Dedos
(Camardiel) e o epílogo, quando o moribundo protagonista informa ao Capitão Harry
Love (Kennedy) que não houve quebra do acordo. Em 1974, quando iniciei a ampliação
de dados das minhas anotações de cinema, tive dificuldades para levantar mais
informações sobre a produção. Até então, registrava somente o título nacional, diretor,
além de dois ou três nomes do elenco. Descobri, para meu espanto, que o título
original é Joaquín Murrieta e a produção é espanhola, da Pro Artis Ibérica
S. A., e não da Warner Brothers — cujo nome tinha primazia no cartaz. Essa era
apenas a companhia distribuidora. Portanto, A morte de um pistoleiro,
em analogia com o western spaghetti
dos italianos, é um autêntico western
paella. As externas foram obtidas em locações da Espanha: La Pedriza , Colmenar Viejo e
Alméria, onde se ergueu a cidade cenográfica.
![]() |
Joaquín Murrieta (Jeffrey Hunter) e a esposa Rosita (Sara Lezana) assassinada |
![]() |
Joaquín Murrieta (Jeffrey Hunter) ante a sepultura da esposa Rosita (Sara Lezana) |
A produção é
tributária do padrão ‘B’ de qualidade, ao qual George Sherman ficou
praticamente relegado em toda a carreira. As exceções são a produção de Os
comancheros (The comancheros, 1961), de Michael
Curtiz, e a direção de Jake Grandão (Big Jake, 1971). Sherman
começou no cinema em 1932, como diretor de segunda unidade e assistente de
direção. Estreou na realização em 1937 e logo ganhou fama de profissional dos
mais confiáveis. Notabilizou-se em filmes de ação e aventuras, geralmente westerns,
alguns protagonizados por John Wayne.
Outras abordagens
da lenda de Joaquín Murrieta tiveram vez no cinema estadunidense. A mais
notória é de William A. Wellman, ainda assim deficitária: O bandoleiro do El Dorado
(Robin
Hood of El Dorado, 1936). Também há Jovial defensor (The
gay defender, 1927), de Gregory La Cava , e o telefilme The desperate mission
(1969), de Earl Bellamy. Warner Baxter encarnou o personagem no título de
Wellman; Richard Dix e Ricardo Montalban nas incursões de La Cava e Bellamy, respectivamente.
Um ponto a ser
imediatamente ressaltado na abordagem de George Sherman é o retrato simpático e
francamente favorável a Joaquín Murrieta. Além da bela estampa de Jeffrey
Hunter — provavelmente em tudo distante do real perfil do homem real — o que se
vê é alguém covardemente agredido e injustiçado, ciente de que não conseguiria reparação
numa sociedade racialmente cindida, com decisões jurídicas francamente
favoráveis aos brancos. Nisso, até o amigo e xerife Capitão Harry Love se vê
obrigado a lhe dar razão: também duvida da eficácia do tribunal no julgamento
dos homens que o espancaram e lhe assassinaram a esposa. O próprio Love é obrigado
a detê-lo quando faz justiça com as próprias mãos e em público.
![]() |
Garcia Três Dedos (Roberto Camardiel) passa por cômica e frustrada execução na forca |
A seguir, começa
a saga do perseguido e se agiganta a figura do herói para os mexicanos. Escapa da
prisão na companhia de homens que se tornarão seus auxiliares diretos: Garcia
Três Dedos e Claudio (Osinaga). A evasão acontece graças à providencial
intervenção de Kate (Lorys), personagem certamente improvável nessa história
cheia de lances duvidosos. A partir daí não sobram alternativas para o
profissional Capitão Love. Deverá deixar as considerações pessoais de lado e
caçar para valer o fora-da-lei.
Um dos pontos
mais interessantes de A morte de um pistoleiro é o
processo que conduz à transformação do pacato mineiro em decidido vingador.
George Sherman encena a passagem apenas com imagens que duram o tempo preciso. O
homem ferido, tradicionalmente descalço e em vestes brancas de algodão — típicas
do camponês mexicano —, chega à cidade. Paulatinamente, incorpora a frieza e o ethos de um gringo: calcula os
movimentos, altera a indumentária, adota as cores escuras, aprende a jogar,
torna-se ás no gatilho, incorpora a frieza ao comportamento e se capacita no
poder intimidador do olhar. Infelizmente, quanto ao mais, não deixa de ser um
filme corriqueiro. Sacrifica as importantes questões política e racial em favor
do melodrama sobre as agruras de um homem afetivamente ferido, que direciona as
ações motivado pela lembrança dolorosa da esposa assassinada e o consequente
desejo de reparação e vingança além do ajuste de contas que o levou à prisão. Essa
opção narrativa conduz a uma passagem no mínimo constrangedora. Gravemente
ferido na cidade, após cometer ação tão impensada quanto desastrada, Joaquín busca
abrigo nas instalações de Kate. Novamente é auxiliado por ela. Durante a
convalescença, reflete sobre as ações praticadas. Ainda frágil, procura a
sepultura de Rosita. É surpreendido pela voz de prisão de Love. O que se ouve a
seguir é tão inacreditável quanto pusilânime: Murrieta jura que se regenerará, abandonará
as armas e o território. Sensibilizado, o xerife o deixa livre. Mais adiante,
com os ferimentos agravados, desmaia diante do bando, ao chegar ao esconderijo.
É submetido a novo e longo tratamento. Nesse meio tempo os homens empreendem
ações das quais o líder supostamente participa. Soa como rompimento do acordo.
Desta vez a perseguição não conhecerá comiseração, até o previsível desfecho.
Apesar de amparado
por orçamento modesto, A morte de um pistoleiro conta com eficaz
aparato técnico e bons atores, inclusive os coadjuvantes. Fica-se a lamentar
que a carreira cinematográfica de Jeffrey Hunter — o Martin Pawley de Rastros
de ódio (The searchers, 1956), de John Ford, e o Jesus Cristo de O rei
dos reis (King of kings, 1961), de Nicholas Ray — tenha praticamente
estagnado em meados dos anos 60, deixando-o quase somente com alternativas na
televisão. A interpretação de ator é discreta e sem exageros. Há muitos
momentos de ação entremeados por trechos cômicos cinematograficamente bem
resolvidos, principalmente o frustrado enforcamento de Garcia Três Dedos e o complicado
processo de devolução das galinhas roubadas de Kate.
![]() |
A improvável benfeitora Kate (Diana Lorys) |
A pontuação
musical de Antonio Pérez Olea é acertadamente evocativa e impregna as cenas com
adequada atmosfera. Também merece elogios a direção de fotografia de Miguel
Fernández Mila em perfeita consonância com o trabalho de câmera de Hans Burman.
Este se sai muito bem, principalmente nos momentos de maior intimismo. As
tomadas em primeiro plano de Joaquín e Rosita à beira do rio são comoventes e exemplares.
Roteiro: James O'Hanlon. Produção de linha: Francisco Molero. Produção executiva: José Antonio Sáinz de Vicuña. Música: Antonio Pérez Olea. Direção de fotografia (Eastmancolor,
Cinemascope): Miguel Fernández Mila. Montagem:
Alfonso Santacana. Direção de arte: Rafael
Salazar. Decoração: Enrique Alarcón.
Penteados: Dolores Clavel. Maquiagem: José María Sánchez. Gerente de produção: Augusto Boué. Administração da produção: Luis Herrero.
Assistente de confecção de costumes:
Delfín Prieto. Assistente de
continuidade: Juana Moya. Assistente
de decoração: Enrique Alarcón. Assistente
de produção: Juan Jose Molina. Assistentes
de câmera: Jose G. de la Cruz ,
Guillermo Pena. Assistentes de direção:
Stan Torchia, Frederico Vaquero. Assistentes
de montagem: Alicia Castillo, Margarita Ibáñez. Chefe de publicidade: Hugo Ferrer. Confecção de costumes: Magdalena Fernández, Catalina Moreno. Continuidade: Daniel Mendoza, Maria
Wachman. Contrarregra: Vicente Gómez.
Direção de dulabgem: Rafael de
Penagos. Direção musical: Antonio
Pérez Olea. Dublê: J. L. Chinchilla.
Efeitos especiais: Manuel Baquero. Empresa de guarda-roupa: Peris
Hermanos. Empresa de mobiliário e
contrarregra: Vázquez Hermanos. Engenharia
de som: Enrique Molinero. Estúdio de
dublagem: Estudios EXA. Firmas de
construção do set: Asensio Decoración, Lega-Michelena, Construcine. Fornecimento de material de iluminação:
Ilucine S. A. Fotografia de cena: Julio
Sánchez Caballero. Operador de câmera:
Hans Burman. Referências sonoras:
Jesús Ocaña. Ruídos de sala: Luis
Castro. Secretário da produção:
Jesús Sánchez. Segundo assistente de
câmera: Santiago Zuazo. Segundo
assistente de direção: Ricardo Baron. Segundo
assistente de montagem: María Teresa Mateos. Segundo assistente de produção: Juan Ruiz. Tempo de exibição: 107 minutos.
(José Eugenio Guimarães, 1974)
Hola Eugenio, aunque creo que tienes otras películas españolas reseñadas, esta y sin ser muy española, es la primera que tengo la oportunidad de leerte. Por cierto, también iba mucho al cine con mi padre de pequeño y fue sin duda él, el que me transmitió su pasión por el cine. Observo que Murrieta, es una leyenda especialmente en la cultura popular mexicana y sin duda, y por encima de la calidad de la película, este es un hecho que me llama la atención para intentar encontrar la película y poder visionarla. Fotografía y música completan la propuesta de buen modo.
ResponderExcluirUn abrazo y feliz semana amigo Eugenio.
Ah! Nuestros padres, Miguel Pina... Si ellos pudieran tener conocimiento del bien que estaban haciendo para nosotros.. Sólo podemos agradecer y honrarlos permanentemente. "Joaquín Murrieta" es una película trivial, pero tiene la ventaja de lanzar una mirada muy generosa el uno personaje poco conocido y, en la mayoría de las veces, cubierto por la portada del prejuicio. Si quiera verla, Miguel, está disponible en el Youtube, en copia hasta razonable. Verifique este link: https://www.youtube.com/watch?v=ESqZhfEEIHg.
ExcluirAbrazos y saludos.