Para os leitores deste blog, não é novidade que sou, desde
sempre, um cinéfilo facilmente impressionável com a crueldade e o realismo de
determinadas cenas. Em 1968, aos 12 anos, tive as noites de sono prejudicadas
pelo western Duelo em Diablo
Canyon (Duel at Diablo, 1965),
explicitamente brutal em vista dos padrões da época. Sequer tinha idade para
assisti-lo. Era proibido para menores de 14 anos. No entanto, meu pai sempre
encontrava jeito de contornar em meu favor, junto a gerentes e porteiros, esses
detalhes limitadores ― desde que não envolvessem motivação sexual picante. É
uma realização do humanista e progressista Ralph Nelson, atualmente esquecido.
Além do nível elevado de violência gráfica, inédito para um western
estadunidense do período, chamou-me a atenção a figura de Toller, interpretada
por Sidney Poitier, sempre em trajes de dandy
sem despertar a atenção dois demais personagens, todos brancos. Além do mais, é
um suboficial desmobilizado da Cavalaria, situação certamente pouco comum aos
negros no tempo do Oeste selvagem. Muito depois, nas revisões de Duelo
em Diablo Canyon ,
fui tocado pela percepção de que se trata de realização favoravelmente antenada
com as demandas das campanhas pela ampliação dos direitos civis dos negros, que
agitavam a cena estadunidense em meados dos anos 60. Porém, a questão racial
destacada no filme envolve as tensas relações entre brancos e índios, estes
sempre enganados em suas prerrogativas por tratamento justo ― como explicitam
as observações do batedor Jess Remsberg (James Garner). É um western que
extravasa complexidade e merece disposição generosa para ser convenientemente
apreciado. Dialoga com questões expostas por John Ford em Rastros de ódio (The
searchers, 1956) e Terra bruta (Two rode together, 1961).
Curiosamente, apresenta a atriz de Ingmar Bergman, Bibi Andersson, no papel da racialmente
maculada Ellen Grange. Segue apreciação de 1974, revista e ampliada em 1983.
Duelo em Diablo Canyon
Duel at Diablo
Direção:
Ralph
Nelson
Produção:
Ralph Nelson, Fred Engel, James
Garner (não creditado)
United
Artists, Nelson-Engel-Cherokee Productions
EUA ―1965
Elenco:
James
Garner, Sidney Poitier, Bibi Andersson, Bill Travers, Dennis Weaver, John Hoyt,
John Crawford, William Redfield, John Hubbard, Alf Elson, Bill Hart, Eddie
Little Sky e os não creditados Armand Alzamora, Ralph Bahnsen, Timothy Carey,
Jeff Cooper, Kevin Coughlin, Robert Crawford Jr., John Daheim, Richard
Farnsworth, Joe Finnegan, Richard Lapp, Dawn Little Sky, J.R. Randall, Jay
Ripley, Phil Schumacher, Al Wyatt Sr.
O diretor Ralph Nelson com a pequena Verina Greenlaw - intérprete de Christine - nos bastidores de Papai Ganso (Father Goose, 1964) |
Duelo em Diablo Canyon é western brutal
e humanista filmado no deserto do estado de Utah pelo sentimental, progressista
e pouco apreciado Ralph Nelson. Retoma temas abordados por John Ford em Rastros
de ódio (The searchers, 1956) e Terra bruta (Two rode together, 1961).
Nelson passou
pela Broadway como ator juvenil, roteirista e contrarregra. Qual muitos colegas
de geração, encontrou na TV as primeiras oportunidades: atuou em diversos shows;
também os escreveu e dirigiu. Em 1962 estreou no cinema com Réquiem
para um lutador (Requiem for a heavyweight, 1962) —
para muitos, seu melhor trabalho — estrelado por um fenomenal Anthony Quinn e
Julie Harris.
O segundo filme, Uma
voz nas sombras (Lillies of the field, 1963),
transformou Sidney Poitier no segundo negro laureado com o Oscar, no caso, o de
Melhor Ator, 24 anos após Hattie McDanniel ser agraciada com igual prêmio por Melhor
Atriz Coadjuvante em ...E o vento levou (Gone
with the wind, 1939), de Victor Fleming.
Depois de Duelo
em Diablo Canyon Nelson voltou a dirigir Poitier em Conspiração
violenta (The Wilby Conspiracy, 1974), drama político de ação e denúncia
do apartheid na África do Sul. Outros
títulos importantes: Quanto vale um homem (Soldier
in the rain, 1963), com Steve McQueen; Os dois mundos de Charly
(Charly,
1968), pelo qual Cliff Robertson ganhou o Oscar de Melhor Ator; O
xerife da cidade explosiva (...Tick... tick... tick, 1969), com o
negro Jim Brown vivendo o personagem do título em racista cidade do sul dos
Estados Unidos; o supervalorizado western acusatório Quando é preciso ser homem
(Soldier
blue, 1970), sobre os massacres dos índios pela Cavalaria dos Estados
Unidos; e A divina ira (The wrath of God, 1973) que uniu Robert
Mitchum e Rita Hayworth — seu último papel no cinema — em história ambientada
no México conflagrado pelo vendaval revolucionário.
Por aí se vê: Nelson
tem queda pelos temas polêmicos que o lançam no campo progressista, com
destaque para a imputação do racismo. Inclui-se nessa tendência o violentíssimo
Duelo
em Diablo Canyon ,
mais com respeito às relações entre brancos e índios ― que sitiam um
destacamento da cavalaria ― e menos pela presença de Sidney Poitier. A cor do
personagem e seus trajes de dandy sequer
são percebidos. Ele interpreta Toller, sargento desmobilizado. Pretende juntar
dinheiro para abrir um cassino. Porém, continua encalacrado com os militares. Para
receber a quantia contratada, viu-se obrigado a acompanhar a expedição
comandada pelo Tenente Scotty McAllister (Travers) à frente de 29 recrutas
inexperientes e domar em movimento um plantel de cavalos selvagens capturados
para o Exército. Por isso, é cercado, com todos os demais, por Apaches dispostos
a tudo, evadidos da inóspita reserva de São Carlos e chefiados pelo enlutado Chata
(Hoyt).
Sidney Poitier como Toller, ex-sargento da Cavalaria |
Bill Travers como o Tenente Scotty McAllister |
Junto aos dramas
coletivos ganham destaques os problemas individuais do experiente e sensato
guia Jess Remsberg (Garner) — batedor que compreende perfeitamente as razões
que lançam os índios ao combate — e da branca Ellen Grange, cuja intérprete
acrescenta uma nota alienígena ao filme e à paisagem típica dos westerns: a
atriz sueca Bibi Andersson. O espectador logo pergunta o que a fez trocar
momentaneamente o universo denso, gelado e intimista dos cineastas Ingmar
Bergman ― O sétimo selo (Det sjunde inseglet, 1956), Morangos
silvestres (Smultronstället, 1957), No limiar da vida (Nära livet,
1957), O olho do diabo (Djävulens öga, 1959) ― e Alf Kjellin
― O
jardim dos prazeres (Lustgarden, 1961) ― pelos exteriores
largos, ensolarados e poeirentos do velho Oeste.
Apesar de o filme
não apelar ao clichê de unir afetivamente Jess e Ellen ao final, seus caminhos
e interesses de ambos se cruzam mais de uma vez. Ele se junta ao destacamento pela
oportunidade de chegar a Rio Conchos, onde buscará meios para se vingar dos
assassinos e escalpeladores da esposa comanche. Encontrou Ellen pela primeira
vez nos momentos iniciais, aparentemente perdida sob o sol abrasador do deserto
e ameaçada pelos Apaches. Tomou-a sobre proteção a despeito dos riscos. Conduziu-a
à cidade de Fort Creck, ao encontro do marido pouco amistoso e nada compreensivo:
o comerciante Willard Grange (Weaver).
James Garner como o batedor Jess Remsberg |
Willard Grange (Dennis Weaver) e Jess Remsberg (James Garner) |
Há tempos Ellen
fora raptada pelos mesmos Apaches, resgatada e devolvida ao convívio
comunitário para decepção dos concidadãos puritanos e do próprio marido. Por
drama semelhante passou Elena de La
Madriaga (Linda Cristal) em Terra bruta. Uma e outra foram
cruelmente acusadas pelos olhares silenciosos da curiosidade sórdida e censura
social. Todos queriam saber dos detalhes mais recônditos a respeito do período
de permanência com os índios. Para os pretensos civilizados, uma branca decente
optaria pelo suicídio; jamais voltaria ao convívio social de origem depois de
tocada por um pele-vermelha considerado selvagem, pagão e impuro. Ellen evitou
a solução extrema e cometeu o ato considerado indigno de voltar sexualmente
maculada para o marido. Sob pressão da moral comunitária, Willard submete a
esposa a tratamento ambíguo. Por esse e outros motivos, ela preferiu retornar
para os Apaches. Fugiu na primeira oportunidade, até ser recuperada por Jess. Continua
com a firme disposição de regressar à tribo, como se algo mais a atraísse. Mais
uma vez escapa.
O motivo que a
impulsiona é o bebê que gerou do convívio com o guerreiro Natche, primogênito
de Chata. Porém, o status de Ellen junto aos índios foi consideravelmente
alterado. Agora, está na iminência de ser sacrificada ritualmente, acusada de
provocar a morte do filho do chefe. Jess se apresenta mais uma vez para salvá-la,
com o bebê. São conduzidos à proteção da contingente emboscado, em cujo seio se
encontra o ressabiado e humilhado Willard.
Surpreendentemente,
Ellen e a criança recebem a melhor acolhida da tropa e de Toller. O marido e o
Tenente McAllister são as exceções. Entretanto, a insatisfação do oficial
decorre da situação adversa do grupo. Parece residir aí a ingenuidade e
calcanhar de Aquiles de Duelo em Diablo Canyon. Sobra a impressão de que o roteiro de
Marvin H. Albert e Michel M. Grilikhes exagerou na idealização à vocação democrática
e includente dos soldados; como se os descontextualizasse ao extremo. Afinal,
absorviam os mesmos valores fundados no preconceito racial que fizeram a
população de Fort Creek recriminar Ellen.
Entretanto, tal
sensação merece melhor compreensão. Na verdade, não se trata de inconsistência
do filme ou do roteiro. Há a considerar, também e principalmente, o momento
presente em que Duelo em
Diablo Canyon foi realizado. Apesar do risco do anacronismo, Ralph
Nelson e os guionistas se permitiram à abertura de diálogo claro e explícito
entre os Estados Unidos do velho Oeste, século 19, com o país na década de 60 —
movimentado pelas campanhas em prol da ampliação dos direitos civis aos negros
praticamente destituídos de cidadania. A presença de Sidney Poitier como
sargento desmobilizado da cavalaria e nas vestes de um cavalheiro chama a
atenção para essa questão, além do fato de que a cor de sua pele sequer é
percebida pelos demais personagens. É como se no tempo da ação fílmica os
negros já gozassem plenamente de todos os direitos pelos quais lutavam para
conseguir nas mobilizações acontecidas nos Estados Unidos na sexta década do
século 20.
Duelo em Diablo Canyon transmite um
discurso em prol da concórdia entre os diferentes; pela aceitação da
tolerância. O bebê mestiço de Ellen Grange, bem recebido e festejado pelos
militares, tão alheios às origens raciais da criança, chama a atenção para as
demandas do presente da realização. Provavelmente, é o western mais
compromissado política, social e civilmente com as exigências de justiça de um
tempo. Também lembra o sempre pendente problema dos índios, nunca completamente
resolvido nos planos raciais e políticos. Se não há racismo contra negros, o
preconceito se apresenta claramente contra os primeiros ocupantes da terra. O
filme expõe o fato de forma aberta e corajosa. Basta ver como Jess perdeu a
esposa comanche, o tratamento concedido a Ellen Grange pela comunidade e o mal
estar que a criança mestiça provoca em Willard. Além do mais, há as falas do personagem
interpretado por James Garner sobre as condições pouco aprazíveis das reservas
destinadas aos índios, particularmente aos Apaches.
Toller (Sidney Poitier) brinca com o bebê mestiço de Ellen Grange (Bibi Andersson) |
Duelo em Diablo Canyon inova na
abordagem da sempre tensa problemática racial que opõe brancos aos índios.
Porém, apesar do desenvolvimento dinâmico e elementos narrativos bem
integrados, não deixa de ser um western obediente ao modelo que serviu de base
à maior parte dos filmes do gênero. Na hora final, Jess salva os sobreviventes do
sítio ao chegar com o socorro das forças lideradas pelo Coronel Foster (o diretor
sob a denominação de Alf Elson). Chata e os índios são dominados. Ellen,
desesperada, se adianta para localizar e dar fim ao sofrimento do marido com um
tiro de misericórdia. Ele, durante o cerco, foi capturado e submetido à lenta e
atroz tortura com fogo. Jess a impede. Também deseja encontrá-lo, por motivos
menos nobres: descobriu que é o responsável pelo assassinato da esposa e quer
vingança. Porém, pouco pode fazer ao se deparar com a horrenda visão de Willard
torturado, ainda vivo e suplicando pelo alívio da morte.
Diante da rendição
dos Apaches, Ellen se pronuncia: “Fico pensando se dessa vez ficarão na reserva...”.
Jess pergunta: “Por que deveriam ficar?” Pelo personagem do batedor, Ralph
Nelson explicita suas boas intenções. Irá prolongá-las com doses mais elevadas
de violência em Quando é preciso ser homem.
Nelson e Sidney
Poitier estavam com a reativação da parceria anunciada para 1964, em projeto
que nunca saiu do papel: The seventh file, substituído por Duelo
em Diablo Canyon[1].
Além de Bibi Andersson, há outro estrangeiro no cast: o britânico Bill Travers[2].
Quanto a James Garner, tem como Jess Remsberg a primeira oportunidade em um
western cinematográfico desde que deixou a TV e a série Maverick[3].
Toller (Sidney Poitier) |
Os atores
principais, Poitier e Garner, estão particularmente muito bem. Oferecem
personagens de corte realista, multifacetados. Garner, geralmente relegado ao
estoque dos canastrões simpáticos, oferece um áspero, amargo, duro, pragmático e
convincente Jess Remsberg. Até o momento, é um dos seus melhores momentos no
cinema.
Duelo em Diablo Canyon tem na direção
de fotografia de Charles F. Wheeler e no trabalho de câmera alguns dos
principais destaques. Tanto a iluminação como a objetiva valorizam os aspectos
físicos do terreno, tão ensolarado, árido e sufocante ― aparência que amplia sobremaneira
as potencialidades do drama. Logo no início, uma tomada aérea ― rara em
westerns ― descortina amplamente a região rochosa de Kanab, no Utah, onde as
externas foram obtidas. Já nas cenas de ação, a câmera faz questão de
posicionar em meio ao movimento, mesmo que o caos se instale durante os embates
e com a tomada de vários close-ups
que comunicam sensações de perigo, pânico e temor à morte. As cenas são
extremamente realistas e algumas estão entre as mais chocantes e incômodas ―
não só dos westerns como de todo o cinema de então. O momento no qual Jess se depara
com os restos do moribundo e desafortunado Willard Grange causa profunda
impressão e atrapalhou minhas noites de sono durante tempo considerável. Diferente
também é a jazzística pontuação musical de Neal Hefti, afinada com o clima de
exasperação. Faz, com propriedade, uso de guitarras, sopros, percussão e teclados.
Roteiro: Marvin H. Albert, Michel M. Grilikhes, com base na
novela Apache rising de Marvin H. Albert. Música: Neal Hefti. Direção
de fotografia (Color DeLuxe): Charles F. Wheeler. Figurinos: Yvonne Wood. Montagem:
Fredric Steinkamp. Guarda-roupa:
Eddie Armand. Edição musical:
Richard Carruth. Assistentes de direção:
Philip N. Cook, Emmett Emerson. Decoração:
Victor A. Gangelin. Assistente de
montagem: Allan Jacobs. Maquiagem:
Gustav M. Norin. Supervisão de produção:
J. Paul Popkin. Assistente para o
diretor: Allan Wyatt. Direção de
arte: Alfred C. Ybarra. Edição de
efeitos sonoros: Jerry Whittington (não creditado). Efeitos especiais: Roscoe Cline. Coordenação de dublês: Al Wyatt Sr. (não creditado). Dublês (não creditados): Roydon Clark,
John Daheim, Richard Farnsworth, Joe Finnegan, Bill Hart, Leroy Johnson, Boyd
'Red' Morgan, Glenn Randall Jr., Phil Schumacher, Bobby Somers, Neil Summers,
Rodd Wolff. Sistema de mixagem de som:
Westrex Recording System. Tempo de
exibição: 103 minutos.
(José Eugenio Guimarães, 1974, revisão e ampliação
em 1983)
[1] Primeiro western com a participação de Sidney
Poitier.
[2] Tal qual o personagem do Tenente Scotty
McAllister, Travers de fato quebrou a perna durante as filmagens.
[3] Produzida e exibida originalmente pela rede ABC ―
American Broadcasting Company ― ao longo de cinco temporadas, de 1957 a 1962,
com 124 episódios.
Hola Eugenio, sus recuerdos a cuando era un niño siempre son una buena referencia sean más o menos agradables. Y es que pienso que la afición por el cine para los que lo amamos son provenientes desde nuestra niñez. Mi pequeña hija, también es heredera de esta afición que va pasando de padres a hijos como una de las herencias en el mundo del arte. Respecto a la evaluación del dia de hoy, precisa y detallada siendo un verdadero lujo su lectura. Me llama la atención también la actuación e integración de Sidney Poiter en un western, pues no era muy habitual la integración racial en este tipo de películas. Por cierto, un gran actor con grandes películas. Está película la vi ya hace muchos años y con su revisión procederé a volver a verla en cuanto tenga oportunidad.
ResponderExcluirAbrazos Eugenio.
Siempre me pareció que esta película fue poco valorada en su tiempo, Miguel. Vaya, el público y la crítica no estaban preparados para ella. En cierto modo es innovadora y aún hoy me deja con los nervios a la flor de la piel.
ExcluirA esta altura, espero que haya logrado revisarla.
Abrazos y saludos.