Frente ao implacável ritmo da vida atual, o 3 de setembro
de 1943 perdeu, certamente, importância e significado. A não ser para a extensa
crônica da Segunda Guerra Mundial e memória de alguns poucos sobreviventes das
forças dos Estados Unidos e Inglaterra desembarcadas em Salerno, Itália
continental. Nesse dia os aliados iniciaram, enfim, a difícil retomada da
Europa controlada pelo nazismo desde o início oficial dos conflitos há quatro anos. Das memórias do combatente e jornalista estadunidense Harry Brown,
Robert Rossen extraiu enxuta e envolvente adaptação: o roteiro de Um
passeio ao sol (A walk in the Sun, 1945), transformado
em filme marcante por Lewis Milestone. O diretor levou às telas, quinze anos
antes, o vigoroso libelo antibelicista Im westen nichts neues do autor
alemão Erich Maria Remarque: Sem novidade no front (All
quiet on the western front, 1930). Um passeio ao sol não guarda
relações com o grosso das produções cinematográficas sobre a Segunda Grande
Guerra. O tom espetacular e a solene grandiloquência foram deixados de lado.
Ganha primazia a humana fragilidade de alguns marines em deslocamento por terreno desconhecido. Contam apenas com
a ajuda de mapas pouco precisos e parcas informações complementares fornecidas
pelo distante comando, mais as limitações da capacidade de observação para se
anteciparem às inevitáveis e mortais surpresas da campanha. Submetem-se no mais
das vezes a longas, intermináveis e tensas esperas sem que nada de
extraordinário aconteça. Em geral, pouco é percebido ou como diagnostica o
paramédico MacWilliams (Sterling Holloway): “O único problema é que nada
podemos ver. Nós lutamos de ouvido”. A guerra desequilibra, dá nos nervos, fere
a esperada integridade dos soldados obrigados a Um passeio ao sol. A
realização de Milestone foi relançada em videodisco, no Brasil, com o nome de Caminhada
sob o sol. A apreciação a seguir, de 1995, sofreu pequena atualização
por meio de nota de pé de pagina em 2017.
Um passeio ao sol
A walk in the Sun
Direção:
Lewis Milestone
Produção:
Lewis Milestone, Samuel Bronston
(não creditado)
Lewis
Milestone Productions
EUA — 1945
Elenco:
Dana
Andrews, Richard Conte, Sterling Holloway, George Tyne, John Ireland, Herbert
Rudley, Lloyd Bridges, Norman Lloyd, Richard Benedict, Huntz Hall, James
Cardwell, George Offerman Jr., Steve Brodie, Matt Willis, Chris Drake, Alvin
Hammer, Victor Cutler, John Kellogg, Jay Norris e os não creditados James Base,
Fred Carpenter, Dan Cassell, Harry Cline, Dick Daniels, Anthony Dante, Danny
Desmond, Ray Elder, Jack Ellis, Dick Elmore, Bennett Green, Tommy Hagan, Robert
Horton, Orn Huntington, John Laurenz, Harry Leonard, Gus Lombardo, Billy Lord,
Robert Lowell, Grant Maiben, Burgess Meredith, Larry Murphy, Mickey Novak,
Malcolm O'Guinn, Ted O'Shea, Foster H. Phinney, Dan Quigg, Russ Randall, Joe
Roach, Ed Roge, Jerome Root, Luis Rosado, Fred Sanders, Jerry Sheldon, Jack
Sterling, Don Summers, George Turner, Henry Vroom, Bob Wolfe, Robert Wright.
Bastidores de O tempo não apaga (The strange love of Martha Ivers, 1946) O diretor Lewis Milestone com os atores Kirk Douglas, Van Heflin e Barbara Stanwyck |
No cinema, um dos
relatos mais realistas das vivências de soldados em combate é oferecido por Um
passeio ao sol. O roteiro de Robert Rossen adapta com rara felicidade e
praticamente ao pé da letra as memórias do jornalista estadunidense Harry Brown,
publicadas em livro em 1944. Incorporado à infantaria de 1941 a 1943, o autor marcou
presença no começo da campanha das forças aliadas na Europa a partir da invasão
da Sicília, Itália. Estampou testemunho pródigo e revelador das sensações mais
íntimas e profundamente humanas dos combatentes — indivíduos comuns, submetidos
a situações em tudo extraordinárias e traduzidas como medos, saudades de casa,
aguçado instinto de sobrevivência, pesar pela morte de companheiros e o inevitável
trauma das batalhas.
Aqueles que
tiveram a oportunidade de ler as páginas de Brown sabem o quanto Robert Rossen
e o diretor Lewis Milestone foram fieis e devidamente enfáticos na tarefa de
vertê-las para a tela. Um passeio ao sol não trata de
grandes e violentos combates; muito menos descreve atos sobre-humanos elevados
à condição de heroicos. Apenas observa o soldado em lento e arriscado avanço
por terreno desconhecido, descortinado pelo poder da nem sempre exata acuidade
visual — ainda mais quando os riscos do inesperado podem irromper a qualquer
instante. Além do alcance da observação está o desconhecido, certeza que afeta
os nervos — principalmente dos feridos por dentro, espiritualmente fragilizados
por muitos horrores e traumas testemunhados nos incontáveis campos percorridos em
muitas campanhas. O senso de orientação às vezes falha, apesar dos mapas e das vagas
informações complementares recebidas. Os homens sabem apenas que devem chegar em
determinado lugar e executar a missão com o máximo de cautela e eficácia.
Lewis Milestone dirigiu
um dos mais importantes filmes de guerra: Sem novidades no front (All
quiet on the western front, 1930). Com a parceria de Joris Ivens, em
1942, realizou um dos melhores documentários sobre a resistência russa ao invasor
nazista: Our Russian front. Também dramatizou a guerra em Revolta!
(Edge
of darkness, 1943), Mais forte que a vida (The
purple heart, 1944), Arco do triunfo (Arch
of Triumph, 1948), Até o último homem (Hall
of Montezuma, 1951) e Os bravos morrem de pé (Pork
Chop Hill, 1959). Os temas bélicos, com aventuras passadas na
retaguarda ou vanguarda dos conflitos, são praticamente a sua especialidade.
Um passeio ao sol é título dos mais
pessoais e prestigiados da filmografia de Milestone. Passados pouco mais de 50
anos da época em que foi concebido, ainda assombra por qualidades como a
objetiva simplicidade da exposição, a humanidade dos personagens — captados em
suas singularidades —, as interpretações verdadeiras e a composição pictórica.
Conta história
passada do começo da alvorada até aproximadamente o meio-dia de 3 de setembro
de 1943. Nessa data acontece o desembarque aliado em Salerno, Itália
continental. Os esquadrões, dispostos em variadas barcaças de assalto,
convergem dos navios de transporte para a praia. Do conjunto, seguindo as
linhas mestras de Harry Brown, Milestone isola o Pelotão Lee — formado por 53 fuzileiros,
quase todos texanos. Desde o mar o agrupamento perdeu os principais homens em
comando, atingidos pelo fogo inimigo. Depois de encontrar abrigo precário a
poucos metros da praia conflagrada, aguarda o nascer do sol para o cumprimento
da tarefa designada: avançar cerca de seis milhas (10 quilômetros ) continente
adentro para destruir ponte estratégica e imobilizar ninho alemão de metralhadoras
em casa de fazenda.
Um passeio ao sol é incomum. As
cenas iniciais, de apresentação dos créditos, evidenciam de imediato essa
qualidade. Um narrador — voz do ator Burgess Meredith — apresenta os
personagens e lhes realça as particularidades individuais. Estas, geralmente,
são as primeiras vítimas nunca contabilizadas da guerra. Raras produções sobre
conflitos armados se preocupam tanto em humanizar os combatentes como a
presente realização de Lewis Milestone. Ao longo de 117 minutos o espectador se
posiciona ao lado de homens comuns: fazendeiros, estivadores, professores, coveiros,
operários etc. Foram convocados a tomar parte de um teatro de operações, distante
muitos quilômetros das interioranas cidadezinhas dos EUA nas quais estão
profundamente enraizados. Para casa desejam voltar o quanto antes. Todos são
destituídos de patentes. O posto mais elevado é o de sargento: Tyne (Andrews),
Ward (Bridges) e Porter (Rudley). Os demais
são praças: Rivera (Conte), Freedman (Tyne), Windy Craven (Ireland ),
MacWilliams (Holloway), Archembald (Lloyd), Tranella (Benedict) etc.
Dana Andrews como o Sargento Bill Tyne |
Lloyd Bridges como o Sargento Ward |
John Ireland como o praça Windy Craven |
Richard Conte como o praça Rivera |
Tiros, rajadas, chamas,
fumaça, explosões e similares costumam caracterizar a guerra cinematográfica como
exercício de efeitos carregados de grandiosidade. Porém, são totalmente destituídos
de espetacularidade em Um passeio ao sol. Geralmente
fornecem a tônica das produções mais escapistas e descompromissadas do gênero.
Promovem, via de regra, a valorização de uma estética vazia, desprovida de
sentido e posta unicamente a serviço da elevação da temperatura emocional e da taxa
de adrenalina das plateias em busca de catarse. Para Lewis Milestone, só
possuem sentido se servem para caracterizar o que pode ser chamado de “névoa da
guerra” ou se colaboram para traduzir o horror produzido nos homens. Devem
contribuir para delinear a psicologia dos personagens.
O negrume da
fumaça dos bombardeios, o detonar dos morteiros, o zunir das balas e a metralha
dos aviões realçam, em Um passeio ao sol, a inquietação de
personagens diante da perspectiva da morte iminente. Geram melancolia, medo,
angústia, pânico, apreensão, fraqueza, desespero e expectativa. São longos os
momentos de espera — nos quais nada ou tudo pode acontecer —, geralmente ao rés-do-chão,
os rostos em contato com ervas e insetos. Milestone revela a fragilidade de
homens acuados, aos quais só é dada uma opção: seguir em frente e executar a
missão, não importam os custos e as perdas — inclusive as vidas dos companheiros
mais chegados. “Ninguém morre”, dizem uns aos outros, nem que seja como mero
subterfúgio ilusório.
Provavelmente, o
mais pavoroso de uma guerra é a impossibilidade de se ter uma dimensão real da
conflagração desenrolada à distância ou nas proximidades. Em geral, percebe-se
o caos, mas as fontes geradoras se encontram ocultas no mais das vezes. Do
inimigo — quase sempre um igual — não se vê o rosto. Podem ser divisados pela
exposição de membros dos corpos sem vida, como as mãos inertes que escapam do
interior de veículos destruídos ou das janelas de abrigos conquistados. São
presenças incômodas. Lembram que o oponente também é revestido de humanidade.
As mãos sempre possuíram crucial importância para Lewis Milestone, desde o
exemplar epílogo de Sem novidades no front.
O medo e a ânsia
provocados por algo oculto, entretanto vivo e presente, transparecem significativamente
na sequência em que Tyne e MacWilliams tentam apreender os eventos passados do
outro lado da pequena elevação que guarnece a trincheira protetora. Cada qual
reage de diferentes maneiras à tensão. Tyne pouco fala. Apenas observa as
gigantescas cortinas de fumaça negra que encobrem o horizonte. Por sua vez, MacWilliams
libera a palavra. Oferece descrição tão assustada quanto precisa da guerra: “Gostaria
de saber o que está acontecendo lá embaixo. (...). Deve estar um espetáculo
(...). Pelo menos sabemos onde as coisas estão. Você está aqui e as bombas
estão do outro lado. É simples. Você está aqui enquanto os rapazes são mortos
onde se encontram. É tudo muito simples. (...). O único problema é que não podemos
ver nada. Esse é o problema com a guerra. Nunca se consegue ver nada. Nós
lutamos de ouvido. Temos que adivinhar o que se passa. Temos que adivinhar e
imaginar a cena”.
O paramédico McWilliams (Sterling Holloway) |
O Sargento Bill Tyne (Dana Andrews) e McWilliams (Sterling Holloway) |
Um passeio ao sol é admirável. Soa
verdadeiro com a discreta narração de Burgess Meredith, a ilustrativa balada
interpretada por Kenneth Spencer, a imagem propositalmente suja da perspicaz
fotografia em preto e branco de Russell Harlan. Acima de tudo é um pequeno e
honesto filme. Não é mobilizado por palavras de ordem alusivas a heroísmo, patriotismo
e covardia. Nem mesmo os inimigos são demonizados. Já se sabe que são
representações do nazismo e pronto. Os marines
do Pelotão Lee são apenas sujeitos que tentam sobreviver. Estão cientes da
situação que os enreda, como se fossem partes ínfimas de uma trama gigantesca, assumidamente
perigosa e mortal. Gostariam de estar em casa, às voltas com as vidinhas
pacíficas e comuns. No entanto, estão obrigados ao cumprimento da missão que os
envolve — sobre a qual possuem pouca ou nenhuma capacidade de controle.
A simplicidade
narrativa é um dos principais atrativos de Um passeio ao sol, inclusive os
personagens arquetípicos. Podem ser previsíveis em suas particularidades de gente
comum, facilmente notada em qualquer grupamento. Porém, parece renovada pelo
talento da direção. Caricaturas e estereótipos grosseiros são evitados. Os
soldados são dotados de personalidades próprias que se desenvolvem lentamente
perante a câmera, até se apresentarem como indivíduos únicos em vivências,
queixas, esperanças e saberes. Merecem destaques: Archimbeau — constantemente
aposta no caráter interminável da guerra a ponto de acreditar que todos estarão
combatendo no Tibet na década de 50; Rivera — responsável pela metralhadora, é
irrefreável filador de cigarros do parceiro Tranella (Richard Benedict) e autor
da emblemática exortação “Ninguém morre”, a todo momento repetida; Windy Craven
— sem condições de escrever para a namorada em virtude das tensões do
desembarque e da caminhada, mas em permanente elaboração mental de cartas que
um dia tomarão forma no papel; sargento Ward — louco para saborear uma maçã,
bom agricultor, conhecedor das potencialidades dos diversos solos e ciente de
que o terreno sobre o qual caminham não se presta a qualquer tipo de cultivo; o
tenso sargento Eddie Porter — já lutou muitas guerras, agora jaz vencido pelo
stress traumático; todos sabem que não é um covarde, mas alguém ferido na alma;
sargento Bill Tyne — improvisado inesperadamente como líder do pelotão e em
luta para não ser derrotado pelos temores que começam a envolvê-lo; e, por fim,
o sempre apavorado e falador paramédico McWilliams — fatalmente abatido na
praia em decorrência da curiosidade. Aparentemente, Dana Andrews tem o papel
principal. Porém, os demais atores com diálogos possuem tempos equilibrados de
exposição.
O sargento Bill Tyne (Dana Andrews) diante do corpo de McWilliams (Sterling Holloway) |
Deitado, sofrendo de stress traumático, o Sargento Eddie Porter (Herbert Rudley) e, à direita, o praça Archimbeau (Norman Lloyd) |
Um passeio ao sol foi listado pela
estadunidense National Board of Review como um dos dez mais importantes filmes
apresentados em 1946. Mereceu do British Academy of Film and Television Arts
(BAFTA) a indicação ao prêmio de Melhor Roteiro em 1952[1].
Música: Frederic Efren Rich. Balada-título: Millard Lampell (letra), Earl Robinson (música), Kenneth
Spencer (intérprete). Direção de fotografia (preto e branco): Russel
Harlan. Roteiro: Robert Rossen, a
partir do romance homônimo de Harry Brown. Montagem:
Ducan Mansfield. Direção de arte:
Max Bertish. Instrutor: Serge
Betersson. Assistente de direção:
Maurie Suess, Sam Nelson (não creditado). Gravação
de som: Corson Jowett. Gerente de
produção: Joseph H. Nadel. Guarda-roupa:
Sam Benson (não creditado). Mixagem
musical: Elmer Raguse (não creditado). Prompter:
Serge Bertensson. Consultoria técnica:
Coronel Thomas D. Drake, Louis Walters (não creditado). Presidente da Lewis Milestone Productions: David Hersh. Assistente para o produtor: Nate Watt
(não creditado). Jurisdição da
produção: International Alliance of Theatrical Stage Employees (IATSE). Agradecimentos
especiais ao: Forças Armadas dos
Estados Unidos, Exército dos Estados Unidos (não creditado). Sistema de mixagem de som: Western
Electric Recording. Tempo de exibição:
117 minutos.
(José Eugenio Guimarães, 1995)
[1] Nota de atualização de 2017: Um passeio ao sol, em
2016, foi incluído no rol de filmes de preservação obrigatória da Biblioteca do
Congresso dos Estados Unidos, o National Filme Registry.
Sensacional filme
ResponderExcluirExcelente comentário/fotos
Muito obrigado pela visita e apreciação, Marina Seischi.
ExcluirAbraços e beijos.