domingo, 7 de maio de 2017

JOHN HUSTON NO ALVORECER DOS TEMPOS BÍBLICOS

De início, era dos mais ambiciosos projetos cinematográficos de longo curso. Na certa, ainda estaria em andamento e, provavelmente, distante do fim. O megaprodutor italiano Dino De Laurentiis almejava, com o apoio de Federico Fellini, Orson Welles, Luchino Visconti, Robert Bresson, Ingmar Bergman, John Huston e outros cineastas renomados, encerrar definitivamente a onda de filmes épicos-bíblicos inaugurada por Cecil B. De Mille em 1949 com Sansão e Dalila (Samson and Delilah). O plano envolvia a adaptação para cinema de todos os livros do Velho e do Novo Testamentos. No entanto, a era das produções grandiosas chegava ao fim. A Bíblia (The Bible, 1966) — depois rebatizada para A Bíblia... No início, The Bible: In the beggining... e até The Bible... In the beggining — teve as pretensões reduzidas. Contentou-se com a transposição de apenas 22 capítulos de um total de 50 do Gênesis. John Huston, chamado às pressas para substituir Robert Bresson, conseguiu a proeza de dar forma digna ao material. Seguiu as linhas mestras do roteiro de Christopher Fry, sensato pela opção de considerar as Escrituras em seus próprios termos — sem incorporar qualquer tipo de material exótico. Do começo dos tempos ao quase sacrifício de Isaac, passa-se por Adão e Eva, Caim e Abel, Noé e o dilúvio, a Torre de Babel, Sodoma & Gomorra e a longa saga de Abraão. Pode-se dizer que o filme resultou numa epopeia das mais agradáveis, inclusive para não convertidos, com curiosas histórias de bastidores como uma rebelião de figurantes e a acintosa corte do embriagado George C. Scott a Ava Gardner. É uma superprodução que não sucumbe ao peso do material. Segue apreciação escrita em 1992.






A Bíblia
The Bible: in the beginning.../La Bibbia

Direção:
John Huston
Produção:
Dino De Laurentiis
Seven Arts Pictures, Thalia AG, 20th. Century-Fox, Dino De Laurentiis Cinematografica
EUA, Itália — 1966
Elenco:
Michael Parks, Ulla Bergryd, Richard Harris, Franco Nero, Stephen Boyd, John Huston, George C. Scott, Ava Gardner, Peter O'Toole, Gabriele Ferzetti, Eleonora Rossi-Drago, Zoe Sallis, Alberto Lucantoni, Luciano Conversi, Robert Rietty, Adriana Ambesi, Grazia Maria Spina, Pupella Maggio, Claudie Lange, Angelo Boschariol, Peter Heinze, Roger Beaumont, Gianluigi Crescenzi, Anna Orso, Eric Leutzinger, Michael Steinpichler, Gabriella Pallotta, Rossana Di Rocco, Giovanna Galletti e os não creditados Paola Ambrosi, Flavio Bennati, Salvatore Billa, Giovanni Di Benedetto, Alberigo Donadeo, Aviva Israeli, Flavio Nennati, Marie-Christine Pratt, Ivan Rassimov, Amru Sani, Elisabetta Velinsk.



O diretor John Huston



De início, A Bíblia iria além deste filme. O título, assim inicialmente atribuído, enganava[1]. Informava a pretensão de abarcar O Livro dos Livros em sua integridade. Desse modo, o Velho e Novo Testamentos ficariam reduzidos a fiapos sem sentido. Sequer um mísero versículo seria tratado com a devida consistência. Teria incontáveis horas de exibição e o senso prático obrigaria à divisão em sabe-se lá quantas partes. No entanto, as intenções do megraprodutor italiano Dino De Laurentiis envolviam a adaptação de toda A Bíblia. A esta altura[2], pelo andar da carruagem, ainda estaria longe de concluir o Velho Testamento.


Megalômano, De Laurentiis alimentou a ilusão de encerrar definitivamente — com o projeto — a onda de épicos bíblicos iniciada no cinema sonoro por Cecil B. De Mille, em 1949, com Sansão e Dalila (Samson and Delilah). De certa forma, conseguiu. A Bíblia teve filmagens encerradas em 1964 e lançamento dois anos depois. Circunstancialmente, foi o derradeiro exemplar de uma longa safra de superproduções ambientadas no mundo antigo. Tais títulos, com raras exceções, resultaram questionáveis. Devido ao alto custo das encenações, também apressaram a derrocada do sistema de estúdios. Dino De Laurentiss, decerto, não possuía ciência alguma do terreno pantanoso no qual pisava. Desde Barrabás (Barabbas, 1961), de Richard Fleischer, não teve tino para avaliar a chegada tardia aos estertores de uma época.


No entanto, era todo ânimo. Anunciou que cada livro de A Bíblia passaria pelas mãos de cineastas renomados. Indicou Federico Fellini para a história de Noé e o dilúvio, Robert Bresson encenaria a criação do mundo, Luchino Visconti contaria a epopeia de José e seus irmãos, Orson Welles adaptaria a saga de Abraão... Sobrou até para Ingmar Bergman. À exceção de Bresson, não se sabe de combinações de De Laurentiis com os demais diretores. John Huston teria a responsabilidade de atribuir coesão ao projeto, programado para exibição em aproximadas 12 horas divididas em duas partes e orçado em cerca de cem milhões de dólares. Todo esse esforço conteria apenas o Gênesis. Restariam 72 outros livros — considerando-se A Bíblia católica; a protestante tem sete a menos — até o encerramento com o Apocalipse de João em prazo a perder de vista.


Segundo o previsto, as filmagens começaram em 1964. A esta altura as aspirações eram mais realistas e modestas. O jansenista e minimalista Robert Bresson — como foi convencido a participar? — rodaria o primeiro filme baseado nos 22 primeiros capítulos de um total de 50 do Gênesis. Abordaria a criação do mundo por Deus, Adão e Eva com a consequente expulsão do paraíso, Caim e Abel, Noé e o dilúvio, a Torre de Babel e a epopeia de Abraão desde a saída de Ur, na Caldeia, para se apossar da Terra Prometida indicada por Deus e já ocupada por terceiros. Essa última parte avançaria até o quase sacrifício de Isaac além de abrir espaços para a destruição das cidades do pecado (Sodoma e Gomorra) e o nascimento de Ismael — primeiro filho do patriarca e por ele renegado.


Inexperiente para empreendimentos grandiosos, Bresson não esquentou lugar. Iniciou as filmagens pela parte mais problemática: a entrada dos animais na arca de Noé. Solicitou toda a fauna do jardim zoológico romano. Dois exemplares de cada espécie — macho e fêmea — foram enfileirados em praia italiana, com apoio de amestradores. Não se sabe bem o que houve. Porém, o desenvolvimento se revelou lento e insuficiente. A passagem sequer foi concluída. Com o cronograma atrasado e custos de produção subindo, Bresson foi demitido. John Huston foi convocado para por A Bíblia nos eixos.


O novo diretor não complicou. Seguiu basicamente as linhas mestras do roteiro elaborado pelo dramaturgo Quaker inglês Christopher Fry. Era bem conhecido do diretor William Wyler e do produtor Sam Zimbalist pelos inestimáveis serviços que tornaram coloquiais os diálogos do superoscarizado e magnífico Ben-Hur (Ben-Hur, 1959). O guião — apoiado na famosa versão de A Bíblia anglicana do Rei James I — é, na medida do possível, fidelíssimo ao conteúdo das histórias adaptadas. Entrou somente o que se encontra no Gênesis. Desse modo, não há diálogos entre Adão e Eva, Caim e Abel etc., pelo simples motivo de que inexistem no original. Inserções de materiais extraordinários com o fim de provocar sensação, ampliar a dramaticidade e forçar emoções ficaram sabiamente de fora. As Escrituras foram tratadas em seus próprios termos, como fez Pier Paolo Pasolini — com muito mais simplicidade, evidentemente — no roteiro de seu O evangelho segundo São Mateus (Il vangelo secondo Matteo, 1964).


O filme destaca, conforme os textos, o implacável poder de Deus sobre os homens. O Todo Poderoso (voz de John Huston) é um déspota sem limites. Está sempre a exigir provas da fidelidade e obediência de Seus amados filhos, consubstanciadas em incontáveis sacrifícios. Felizmente, a discreta e suave pontuação musical do japonês Toshirô Mayuzumi[3], à base de cordas e sopros, fornece adequado contraponto às demandas repletas de sadismo da tão inexorável divindade.


A criação de Adão (Michael Parks)

  
A belíssima sequência do surgimento do mundo teve concepção das mais simples e criativas. Resulta basicamente do trabalho da direção de segunda unidade de Ernst Haas. Inexperiente na captação de imagens para cinema, submeteu-se a treinamento intensivo antes de ser despachado para diversos cantos do mundo, inclusive Brasil, em busca de cenas ilustrativas, segundo instruções de Huston: florestas, pássaros em revoada, crepúsculos, nuvens, luzes, trevas, águas revoltas e plácidas, marés, vulcões, animais diversos... Tais quadros, selecionados e montados, simulam o nascimento do mundo como sequência contínua, plena de nexo, em acordo com as ordenações do Verbo atribuidor de sentido ao longo dos seis dias divinos de duração da empreitada. Assim, cada amanhecer desse tempo deificado corresponde à adição dinâmica de novas formas ao trabalho anterior, como se tudo estivesse em ininterrupto fluxo, cada vez mais complexo, desde o primeiro dia. O ápice da jornada criadora é o surgimento de Adão, erguido do barro — matéria prima da Terra. Para esta parte John Huston conseguiu a colaboração sem custos do escultor Giacomo Manzu. Três diferentes moldes de argila foram sequencialmente ganhando forma humana sob efeitos de iluminação, nuvens de poeira e suaves movimentos de câmera a simular a invisível operação do Criador, até Adão se erguer com a efígie do ator Michael Parks e ser conduzido ao paradisíaco Jardim do Éden para ser apresentado ao conjunto da criação.


O surgimento de Eva (Bergryd) — tão logo a solidão do homem se torna patente ao Criador — é outro momento bem equacionado. Ao despertar do sono profundo ao qual foi lançado, Adão avista a parceira. Entre maravilhado e desajeitado passa a senti-la com as mãos. Ambos estão "respeitosa" e integralmente nus — conforme a "verdade" das Escrituras — e assim são captados pela câmera mediante o disfarce de sombras e contraluz. Parks e Bergryd dispensaram dublês de corpo. Entretanto, o aspecto angelical das cenas de nudez num suposto tempo mítico no qual inexistia a noção de pecado não contou com a compreensão de setores religiosos mais puritanos. Absurdamente, protestaram contra a "imoralidade". Por outro lado A Bíblia é, certamente, um dos primeiros filmes produzidos para o grande público a expor a nudez completa de ambos os sexos, ainda que somente os traseiros sejam percebidos com nitidez.


A vida de Adão e Eva no paraíso é mostrada rapidamente, conforme o esperado. O primeiro casal tem pouco a fazer. Aos critérios profanos, o paraíso é entediante. Dorme-se, come-se, aprecia-se a natureza e mais nada. Há uma cena mal resolvida, comicamente constrangedora. Terminada a criação, Deus conclui que tudo é muito bom. Antes de se retirar para o merecido descanso no sétimo dia, ordena o "Crescei e multiplicai-vos" a todas as criaturas. Ao longe, num prado verdejante, tendo à frente dois alegres cavalos a galope, Adão e Eva se deitam. Permanecem um tempo ocultos pela relva. Logo o homem se levanta agitado. Corre um pouco, põe-se de quatro, agita as pernas contra o ar... Resolveu-se assim o primeiro êxtase sexual no paraíso.


No entanto, a modorra edênica tinha os dias contados. Afinal, não foi à toa que Deus também separou o Bem e o Mal. E fez germinar no bucólico jardim a árvore com o interditado fruto do conhecimento que deu sentido à dicotomia e pôs ponto final à placidez da inocência original. A tinhosa serpente seduziu a volúvel Eva. Tão logo a mulher percebeu a nudez que a envolvia, ocultou-se do parceiro, envergonhada. Mas logo voltaria para lançá-lo no jogo das tentações. Sobreveio a maldição divina. Expulsos do paraíso, doravante lutariam pela sobrevivência na vastidão profana do mundo, sujeitos às inclemências, incertezas e perigos. Ainda poderiam contar com Deus. Mas o Senhor não seria mais tão piedoso e compreensivo.


Destoou excessivamente a concepção da árvore do fruto do conhecimento, tão parecida a um bordado convencional de toalha de mesa. Já a serpente tentadora — vivida pelo ator Flavio Bennati (não creditado) — teve boa elaboração: uma criatura sem forma definida, coberta de negro (exceto os olhos), parcialmente oculta nas folhagens, executando lentos movimentos qual o bicho preguiça. Ganha forma rastejante após a maldição do Senhor.


Os filhos nascidos das dores do parto prolongam a maldição dos pais. O bom e justo pastor Abel (Nero) é morto pelo invejoso Caim (Harris), agricultor relapso na adoração a Deus. Pelo crime, foi proscrito e condenado a errar pela terra, marcado na testa com o sinal do assassino. Buscou exílio ao leste do Éden e aí formou a sua descendência, descrita en passant. Da mesma forma, por meio de imagens rápidas acompanhadas de narração, seguem-se as gerações oriundas de Seth, o terceiro filho de Adão e Eva. Noé, interpretado pelo próprio John Huston, resulta dessa linhagem. A pergunta impertinente, independente do filme e mirando apenas as lacunas bíblicas, é: onde Caim e Seth conseguiram mulheres para procriar se a mãe Eva era a única sobre a Terra?


A testa com a marca do assassino: Caim (Richard Harris)


O segmento de Noé é o melhor. O agnóstico John Huston tentou Charles Chaplin para representá-lo. Depois, buscou Alec Guinness. Diante das recusas, assumiu o personagem e o fez de forma encantadora. Acrescentou pitadas de comédia ao episódio e concebeu um patriarca levemente cético. Noé parece não acreditar em nada do que lhe acontecerá, desde que recebeu a exortação para construir a arca que o salvará, com a família e animais selecionados, do dilúvio de 40 dias e 40 noites que dará fim ao mundo corrompido pelo pecado. Ver o perplexo Noé hustoniano na construção da arca, indiferente às zombarias dos que o tomam por louco, é uma delícia. Além do mais, o personagem foi beneficiado pelo trânsito fácil do ator-diretor com animais. Selecionou e atraiu a bicharada para a embarcação com música de flauta, como se fosse uma versão benigna e muito antes da hora do medieval flautista de Hamelin. A seguir, assumiu posição à entrada da arca para auxiliar e recepcionar os animais. São momentos ternos e plenos de humor. Fazem todo o filme valer à pena. A música e os efeitos visuais combinaram adequadamente Noé e os bichos — ao menos os mais ferozes —, desta vez, cedidos por jardim zoológico da Alemanha.


Noé (John Huston) e a arca: o melhor episódio de A Bíblia

À esquerda, Noé (John Huston) atrai os animais selecionados para a arca


Os prolongamentos da saga pós-diluviana — quando a arca encalha no monte Ararat — não são mostrados. O episódio termina com o arco-íris simbolizando a nova aliança de Deus com a criação. Segue-se o segmento mais curto e de concepção mais problemática: a Torre de Babel.


De nada adiantou castigar a humanidade com a grande inundação. Logo os descendentes de Noé estavam outra vez às voltas com o pecado e a ambição desmedida, como o rei Nimrod (Boyd). Pretendendo rivalizar com o Todo Poderoso, ordena a edificação de uma torre que alcance os céus. Milhares de homens foram arregimentados para a tarefa. Por mais alta que ficasse, mais distante estava do término. O implacável Nimrod ordena mais trabalho. Deus, furioso, provoca a confusão de línguas. Se antes todos se expressavam do mesmo modo, deixaram de se entender com o surgimento de diferentes e incompreensíveis falares. Com isso, a torre é abandonada. Os homens se dispersam pelo mundo, reunindo-se em grupos identificados pela mesma linguagem.


A Torre de Babel ou da discórdia

Nimrod (Stephen Boyd) do alto da Torre de Babel


A passagem da Torre de Babel foi frustrada por uma rebelião. As filmagens tiveram lugar no Egito. O órgão de fomento cinematográfico do país arregimentou os figurantes que fariam os escravos de Nimrod. Porém, os recursos para o pagamento de salários foram desviados para os burocratas locais. A encenação teve que ser interrompida às pressas, por segurança, quando os homens, inconformados com o trambique, se amotinaram. Lançaram pedras em todas as direções e cercaram a locação em busca dos responsáveis pelo calote[4].


Huston enfrentou mais problemas com o cast no último e mais longo segmento. Dino De Laurentiis tentou Spencer Tracy para o papel de Abraão, ainda em 1962, durante a pré-produção. Como o ator estava envolvido com a comédia Deu a louca no mundo (It's a mad mad mad mad world, 1963), de Stanley Kramer, optou por George C. Scott, de quem Huston teve que administrar as bebedeiras. Às vezes comparecia alcoolizado para as filmagens. Também arrastou a asa explicitamente para Ava Gardner, intérprete de Sara. Como não foi correspondido, ameaçou-a inclusive com a tentativa de lhe invadir os aposentos pessoais. Ela buscou apoio no ex-companheiro, o sempre apaixonado Frank Sinatra. Este escalou guarda-costas para protegê-la[5]. Por sua vez, a atriz tentou se esquivar de alguns diálogos por considerá-los pouco naturais. Huston, com uma mistura de jeitinho e ameaça, convenceu-a a voltar atrás. De certo modo Ava Gardner tinha razão. A cena na qual Abraão se deita com Sara chega a ser cômica de tão embaraçosa. As falas soam forçadas e Abraão sofre os efeitos do pileque de Scott.


A saga de Abraão — provavelmente por conter alguma fundamentação histórica e reunir número maior de elementos narrativos — é a mais orgânica e consistente. Ocupa praticamente a metade do tempo de exibição. Apesar dos problemas de comportamento, o desempenho de George C. Scott é dos mais convincentes. O personagem envelhece aos poucos, ao longo de um arco temporal de mais de 100 anos, desde que deixou Ur, ainda jovem, a mando de Deus, acompanhado do sobrinho Lot (Ferzetti), demais familiares e agregados, para ocupar a Terra Prometida nas proximidades do Rio Jordão. Guerrearam contra os ocupantes originais e os expulsaram. Residem aí as raízes de todos os conflitos que ainda desestabilizam a Palestina.


George C. Scott interpreta o patriarca Abraão
  

Desavenças entre as casas de Lot e Abraão provocam uma cisão pacífica entre ambos. Aquele ruma com sua gente para as proximidades das cidades de Sodoma e Gomorra. O outro alcança o coração de Canaã, onde se estabelece preocupado com a continuidade de seu sangue. Por mais que tente, Sara não concebe. Deus pede paciência. Assegura que é questão de tempo. Mas o que é isso para uma divindade? Sara envelhece e Abraão se aproxima dos cem anos.


Sara busca saída emergencial, à margem de Deus. Convence o marido a se deitar com a escrava egípcia Agar (Sallis). Daí nasce Ismael (Conversi). Porém, o menino não recebe o devido reconhecimento, inclusive porque a mãe se encheu de soberba diante da estéril senhora. Será expulsa com a criança depois de Sara ser enfim abençoada e gerar Isaac (Lucantoni), o herdeiro legítimo prometido pelo Senhor.


Ava Gardner no papel de Sara, esposa de Abraão


Enquanto Abraão aguardava o cumprimento da predição divina, a história se abre ao drama de Sodoma e Gomorra. As cidades ultrapassaram todos os limites em devassidão. Ofenderam a Deus. Um tríplice e etéreo anjo (O'Toole) é enviado para julgá-las e destruí-las. Avista-se com Abraão e o informa da missão. Compromete-se a salvar Lot e família. A encenação dos pecados em Sodoma é terrivelmente melindrosa. Foi feita em conformidade com a época, sabendo-se de antemão que as Escrituras não são claras acerca dos terríveis eventos que aconteciam nas cidades. Mostra-se um antro noturno no maior êxtase pagão. Há alusões de homossexualismo, zoofilia, sadomasoquismo, adoração de imagens e sexo grupal, com muitos trejeitos, pouca roupa e excesso de maquiagem. Lot, esposa (Rossi-Drago) e filhas (Ambesi e Spina) são conduzidos pelo anjo para local seguro enquanto a destruição, semelhante a uma hecatombe nuclear, desce dos céus. Ninguém deve olhar para trás, exortação desobedecida pela personagem vivida por Eleonora Rossi-Drago sabidamente transformada em estátua de sal.


Peter O'Toole como o Anjo destruidor das cidades do pecado: Sodoma e  Gomorra


A inominável exigência final de Deus a Abraão — a imolação de Isaac — é o teste extremo para aferir a fidelidade do velho patriarca. Pai e filho rumam para a distante montanha do sacrifício. Atravessam as ruínas calcinadas das cidades destruídas e refletem sobre o poder de Deus, implacável na condenação inclusive de crianças inocentes que ali viviam. Abraão, angustiado, pensa no destino reservado ao menino. A fidelidade ao Senhor o obriga a seguir em frente. O desempenho de George C. Scott é pungente. Confere dignidade e força ao fragilizado, submisso e apequenado patriarca frente à vontade nem sempre compreensível do Todo Poderoso. O ator é coadjuvado em pé de igualdade pela tocante interpretação do jovem Alberto Lucantoni na pele do sagaz e questionador Isaac. Chegados ao destino, aprontam-se para o ato final, interrompido quando Deus teve clareza de que Abraão não romperia o compromisso.


Abraão (George C. Scott) e Isaac (Alberto Lucantoni) na montanha do sacrifício


No geral, A Bíblia é um bom filme, um dos melhores épicos do seu tempo. Flui agradavelmente e prende a atenção, por mais que apresente histórias bem conhecidas de tanto que circulavam nas casas paternas, aulas de catecismo e escolas dominicais. John Huston, desprendido na direção, teve o mérito de simplificar a narrativa, deixando-a familiar e próxima. Apesar da constante presença do Senhor a exigir sacrifícios, o que se vê são relatos com sabor humano, devidamente contextualizados na medida do possível. É uma descrição ilustrada, despretensiosa, que não se preocupa com a aplicação de lições de moral — inclusive porque, aos olhos de hoje, muita coisa soa imoral e amoral nas Escrituras — ou lançar admoestações aos espectadores. Diferente de outros filmes de igual extração, há apenas a exposição das narrativas. O projeto, apesar de grandioso, não é dominado pelo aparato de produção. Ganha visibilidade o filme propriamente, e não a tecnologia que o viabilizou.


A direção de fotografia de Giuseppe Rotunno é primorosa, principalmente quando se trata de acentuar os ambientes: vales, montes, desertos, oásis, campos. Também são funcionais o desenho de produção de Mario Chiari e os figurinos de Maria De Matteis.


Comercialmente, A Bíblia fracassou. Paradoxalmente, foi a maior bilheteria de 1966, quando arrecadou no mercado doméstico cerca de 34 milhões de dólares. Porém, mais da metade do montante foi direcionada à amortização dos custos de produção. O resto foi despendido com publicidade e remuneração de salas de exibição. Pouco sobrou para Dino De Laurentiis e a distribuidora 20th Century-Fox. Esta achou melhor não se envolver em novas aventuras bíblicas. Nem os prêmios conquistados serviram de incentivo: David di Donatello de Melhor Produção de 1966 para Dino De Laurentiss, de Melhor Direção Estrangeira, além das Placas Douradas para a direção de fotografia e desenho de produção. Também conquistou, do Sindicato dos Jornalistas de Cinema da Itália, em 1967, o Nastro D'Argento para Melhor Desenho de Produção. À láurea também foram indicados Dino De Laurentiis, Giuseppe Rotunno e Maria De Matteis. Pelo estadunidense National Board of Review, em 1967, A Bíblia, ficou entre os dez títulos mais importantes. Nesse ano, Toshirô Mayuzumi foi indicado por Melhor Música Original ao Oscar e ao Globo de Ouro.






Roteiro: Christopher Fry, com a assistência dos não creditados Ivo Perilli, Jonathan Griffin, Vittorio Benicelli, Mario Soldati, Orson Welles. Consultores de roteiro: Professor Reverendo M. M. Merchant, Monsenhor Salvatore Garofalo. Direção de fotografia (Dimension 150, Color DeLuxe, 70mm): Giuseppe Rotunno. Música: Toshirô Mayuzumi, Ennio Morricone (não creditado). Direção musical: Franco Ferrara. Assistentes de direção: Vana Caruso, Ottavio Oppo. Efeitos especiais: Augie Lohman, Carlo Rambaldi (não creditado). Coreografia: Katherine Dunham. Costumes: Maria de Matteis. Direção de segunda unidade para a sequência da Criação: Ernst Haas. Gerente de produção: Bruno Todini. Associada a John Huston: Galdys Hill. Assistentes para a produção: Ralph Serpe, Fred Sidewater. Continuidade: Yvonne Axworthy. Consultor para assuntos zoológicos: Angelo Lombardi. Gerentes de unidade de produção: Romano Dandi, Giorgio Morra. Direção de arte: Mario Chiari. Camareiros: Enzo Eusepi, Bruno Avesani. Associado à direção de arte: Stephen Grimes. Supervisão de maquiagem: Alberto De Rossi. Penteados: Elda Magnanti. Gravação de som: Basil Fenton-Smith, Murray Spivack. Montagem: Ralph Kemplen, Alberto Gallitti (não creditado). Narração: John Huston. Produção associada: Luigi Luraschi. Produção de elenco: Guidarino Guidi. Construção do set: Aldo Puccini, Mario Scisci. Assistente de direção de arte: Pasquale Romano. Contrarregra: Tani. Assistente de decoração: Luciano Puccini (não creditado). Pintura de cena: Italo Tomassi (não creditado). Edição de som: Leslie Hodgson. Supervisão da gravação de som: Fred Hynes. Edição de efeitos sonoros (não creditada): John Blunk, Wayne Fury, Marvin Walowitz. Assistente da edição de som: James D. Young (não creditado). Projeção especial/efeitos solares: Zeus Ianiro. Esculturas de barro para a criação de Adão: Giacomo Manzu (não creditado). Assistente de efeitos especiais: Carlo De Marchis (não creditado). Efeitos óticos especiais: Linwood G. Dunn (Film Effects of Hollywood). Primeiro assistente de câmera: Pino Di Biase. Operador de câmera: Giuseppe Maccari. Fotografia de cena: Franco Nero. Assistente de câmera: Piero Servo. Direção de fotografia da segunda unidade: Donald C. Rogers (não creditado). Assistente para a montagem: Eunice Mountjoy. Edição musical: Gilbert Marchant. Gravação musical: Murray Spivack. Consultor musical: Goffredo Petrassi (não creditado). Apresentação: Dino De Laurentiis. Consultoria histórica: Emilio Villa (não creditado). Agradecimentos a: Mirko Basaldella, Corrado Cagli. Companhias de efeitos especiais óticos: Technicolor, Film Effects of Hollywood. Coro: Chorus Carapellucci. Companhia de edição musical: Dino Edizioni Musicali. Orquestra: Orchestra Cinefonica Italiana. Estúdio de gravação musical: RCA Italiana. Perucas: Rocchetti. Ateliê de figurinos de Ava Gardner: Sorelle Fontana (Roma). Acessórios de camareiros: Tani Cappellini. Confecção de figurinos: Tigano Lo Faro. Sistema de mixagem de som: estéreo em 3 canais pela RCA Sound Recording. Tempo de exibição: 174 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1992)



[1] Com o tempo foi modificado para A Bíblia... No início, The Bible: In the beggining... e até The Bible... In the beggining, conforme exposto nos cartazes. Na Itália, chamou-se simplesmente La Bibbia. O título de lançamento no Brasil, preservado nessa apreciação, é A Bíblia.
[2] Considerando-se 1992, quando se escreveu a presente apreciação.
[3] Originalmente, John Huston queria Igor Stravinsky na composição da trilha musical. Chegou a experimentar Ennio Morricone.
[4] Maiores detalhes sobre a malfadada experiência egípcia podem ser encontrados na autobiografia do diretor: HUSTON, John. Um livro aberto. Porto Alegre: L&PM, 1987. p. 366-368.
[5] Ibidem. p. 370.

4 comentários:

  1. Hola Eugenio, bueno en primer lugar darte mi más sincera enhorabuena por esta evaluación, que más que una reseña cinematográfica es casi una tesis doctoral sobre la película. De hecho la abordas desde todos los puntos de vista posibles sin dejarte ningún detalle en tu exposición. Respecto a la película en sí misma, también la considero una buena obra a pesar de no ser de mis géneros preferidos. En cualquier caso y solo por los nombres aparecidos en pantalla la propuesta merece la pena.
    Un fuerte abrazo y gracias por compartir tus conocimientos cinematográficos y sociales.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Apesar de ser uma superprodução, com todas as implicações que esta qualificação encerra, o filme flui levemente, inclusive naqueles momentos que podem ser considerados como tempos mortos, Miguel. Também não é dos meus gêneros preferidos, principalmente os chamados épicos-bíblicos, que sempre se prestaram a tantas coisas. John Huston conseguiu a proeza de dar boa conta do recado. O roteiro também ajudou.

      Saludos e abraços.

      Excluir
  2. Respostas
    1. Obrigado pela presença e comentário, Nin Tudo. Apareça mais vezes. Visitarei os seus links.

      Abraços.

      Excluir