Queridas amigas (Édes Emma, drága Böbe - vázlatok, aktok,
1992), de István Szabó, é das mais implacáveis e cruéis realizações. Devolve o
aclamado diretor de Mephisto (Mephisto, 1981) e Coronel
Redl (Oberst Redl, 1985) à Hungria natal e ao
reencontro com as melhores qualidades de um artista talentoso e sensível observador,
atento às contradições históricas. Uma questão básica permeia seus melhores
trabalhos: como os indivíduos — existências ordinárias e singulares —
são afetados nos angustiantes momentos de inflexão da história, abertos às
mudanças sociais e políticas? Especificamente, que alternativas restam às ajustadas
amigas Emma (Johanna ter Steege) e Böbe (Enikö Börcsök)? As duas perdem por
completo o controle sobre as vidas que levavam: respeitáveis professoras de
língua russa no período marcado pelo fim da União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas (URSS) e desagregação das democracias populares do Leste Europeu. Evidentemente,
Szabó não manifesta interesse apenas pela sorte das protagonistas. Ambas
ilustram, com seus pequenos-grandes dramas, de forma amplamente representativa,
a tragédia que se abateu sobre tantos outros cidadãos comuns obrigados ao
ajuste da noite para o dia quando o socialismo de Estado se abriu ao
capitalismo da economia de mercado. A realização não emite juízos de valor. O
que faz é acompanhar cirurgicamente os impactos nada neutros e imparciais das
mudanças sobre pessoas comuns, geralmente desprovidas de rostos e identidades
nas considerações estatísticas. A apreciação a seguir é de 1993.
Queridas amigas
Édes Emma, drága Böbe - vázlatok, aktok
Direção:
István Szabó
Produção:
Ovari Zajos, Gabriella Grósz
Mafilm Audio Kft., Manfred Durniok
Filmproduktion, Objektív Film, Videovox Stúdió
Hungria — 1992
Elenco:
Johanna ter Steege, Enikö Börcsök,
Péter Andorai, Éva Kerekes, Irma Patkos, Ildikó Bánsági, Erzsi Pásztor, Hédi
Temessy, Irén Bódis, Erzsi Gaál, Zoltán Mucsi, Tamás Jordán, Gábor Máté, Olivér
Csendes, Attila Kaszás, Ágnes Csere, Marta Kertesz, Andrea Kiss, Judit Czigány,
István Komlós, Magda Darvas, Szilveszter Siklósi, József Horváth, Sólyom
Katalin, Joli Jászai, Zsófia Varga, Jolanta Mielech, Gerd Blahuschek, Zsuzsanna
Czege, Jürgen Mai.
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O diretor István Szabó em 1981, quando do lançamento Mephisto — um dos seus melhores filmes |
Queridas amigas é, certamente, o primeiro filme a atingir a estatura
de clássico na produção do Leste Europeu. Veio à luz pouco depois do fim da
União Soviética e eclosão das "revoluções de veludo" — movimentos que
dissolveram as democracias populares da região. Tem ainda o mérito de devolver
István Szabó à Hungria natal e ao reencontro do talento parcialmente
comprometido após realizar, na Inglaterra, o anódino Encontro com Vênus (Meeting
Venus, 1991).
Como reage o
indivíduo perante forças implacáveis e descontroladas, arregimentadas pelo imponderável
avanço da história? Este questionamento é central nos melhores filmes de Szabó:
Mephisto
(Mephisto,
1981), Coronel Redl (Oberst Redl,
1985), Hanussen (Hanussen, 1988) e Queridas
amigas. Neste, o diretor submete as personagens do título — Emma (Steege)
e Böbe (Börcsök) — à inexorabilidade do processo histórico com suas consequentes
e violentas transformações sociais e políticas. Ambas serão lançadas no olho do
furacão e duramente afetadas.
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Acima e abaixo: Emma (Johanna ter Steege) e Böbe (Enikö Börcsök) As vidas viradas pelo avesso com o fim do socialismo na Hungria |
1990: as
revoluções que puseram fim ao comunismo em todo o Leste Europeu atingem a Hungria.
Sobe à presidência o escritor e ex-dissidente Árpád Göncz. Súbito, o país até
há pouco satélite do regime soviético perde o eixo, lançado numa adaptação
forçada aos novos tempos de economia de mercado integrada: capitalista, ocidentalizada,
liberalizada e globalizada. Pessoas comuns, acomodadas em suas posições e
atividades depois de muitos anos, perdem a razão de ser e existir. Sem desconsiderar
os problemas macro — econômicos, sociais e políticos — envolvidos na passagem
de um sistema a outro, Szabó concentra o foco nas questões micro, mais próximas
dos indivíduos e sentimentos, pouco visíveis se consideradas no plano da
complexidade geral, marcadamente impessoal.
O cineasta revela
como a história é impiedosa quando se põe a atropelar existências singularizadas
e modos inteiros de vida pelo caudal das transformações. Incertezas e
inseguranças predominam ao longo dos caminhos abertos à medida que o processo
avança, quase sempre sem considerações à racionalidade de uma direção projetada
e consentida.
As provincianas Emma
e Böbe, bem adaptadas ao antigo modo de vida, residem em Budapeste. Ocupam
apartamentos do Estado e lecionam a língua russa em instituição pública de
ensino. A existência anódina e estabilizada que levavam desmorona. Descobrem, por
seus superiores, que o esfacelamento da União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas (URSS) e das democracias populares da "cortina de ferro" deixou
sem sentido a obrigatoriedade de ensinar o russo. O momento exige conhecimento
do inglês, que não dominam. Para manter os empregos e a sobrevivência,
entregam-se à louca atividade de ensinar à tarde a lição de língua inglesa que
tiveram pela manhã.
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Böbe (Enikö Börcsök) e Emma (Johanna ter Steege) no curto período de euforia com as mudanças |
Mas não é apenas
isso: a liberalização atinge a Hungria em todos os campos — da economia aos
costumes, dos status aos papéis sociais. No novo equilíbrio os professores não gozam
de tanto prestígio como no período do centralismo soviético. Isto é logo
percebido pelo muito sensível sensor da economia doméstica. As amigas são
obrigadas a buscar, em outras atividades, complementos financeiros à
sobrevivência. Emma se oferece como faxineira em suspeitas residências de luxo,
agora propriedades de antigos servidores do sistema colapsado que "souberam"
se adaptar. Böbe tenta, a qualquer preço, um ajuste mais pragmático e imediato.
Com equivocado senso de observação sobre a aparência dos novos tempos, entrega-se
à ainda ilegal atividade de se prostituir para turistas estrangeiros.
Perseguida pela polícia e psicologicamente fragilizada, não resiste às
provações e comete suicídio.
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Emma (Johanna ter Steege) e Böbe (Enikö Börcsök) Diante do impacto das transformações sociais e preocupadas com a sobrevivência |
A câmera de Szabó
passeia por Budapeste. Acompanha as personagens e flagra as consequências mais
imediatas da mudança: desalojados e mendigos ocupam as calçadas; punks exibem
estranho visual; turistas estrangeiros se apresentam curiosamente trajados; novos
bares e lojas comercializam produtos os mais variados e jamais vistos no país. A
ocidentalização introduz hábitos, atividades, experiências e percepções até
então desconhecidos. Mas a exploração de Szabó revela a superficialidade das novidades.
São frágeis peças da conjuntura, incapazes de remover e abalar a rigidez da
estrutura anterior. Esta resiste praticamente impávida, qual potência invisível,
sob a fina capa das mudanças.
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Emma (Johanna ter Steege), à direita, no transporte público e acompanhada de novos elementos incorporados à paisagem urbana |
Se o indivíduo —
como existência singular e categoria sociológica — foi emancipado, não obstante
permanece em vigor uma situação que não o considera. Está longe da derivação em
cidadão — o sujeito normativo das instituições modernas, gestado na emergência
dos Estados nacionais autônomos e internamente legitimados pelos direitos
básicos: políticos, civis e sociais. Autoridades e serviços continuam sob
influência do burocratismo herdado do regime soviético, acompanhado de truculência,
falta de profissionalismo e preconceito. É o que percebe quando Emma se dirige ao
posto policial para denunciar a agressão sexual que sofreu. É o que Böbe
experimenta ao se frustrar fatalmente na tentativa mal pensada de liberação da conduta.
Fracassa quem não
souber se adequar à racionalidade instrumental dos novos tempos, combinada ao modus operandi do sistema deslegitimado,
mas, informalmente, ainda em
vigor. Com simplicidade associada a uma habilidade narrativa direta,
seca, amarga e sem firulas, Szabó posiciona o espectador no olho da câmera, conduzindo-o
qual testemunha ao âmago destroçado das duas mulheres. Elas servem de reflexo
às sensações vivenciadas por todas as pessoas comuns, despejadas sem mais nem
menos na emergência de períodos incertos.
Mesmo nos
momentos bem humorados e descontraídos, marcam presença a angústia, a insegurança
e o desespero. Como na sequência em
que Emma , Böbe e outras colegas de infortúnio arriscam os
mais caros princípios e valores ao posar despidas em um teste que orientará a escolha
de atrizes para um filme pornô. As lentes dos fotógrafos e a nudez não as
intimidam tanto. Desconforto maior é provocado pela situação que as submete ao
insensível processo de despersonalização e descaracterização qualitativas. Nuas
e enfileiradas, aguardam o momento das fotografias. Porém, deixaram de ter nomes
e rostos específicos. Foram reduzidas a corpos reificados e aos números que as
identificam, bem estampados nas plaquetas de papel que carregam. Tornaram-se apenas
entidades abstratas. Podem ser, à revelia das próprias vontades, subtraídas,
somadas, divididas, multiplicadas e negociadas.
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Acima e abaixo: Emma, interpretada por Johanna ter Steege |
Queridas amigas tem duas imagens
particularmente fortes e chocantes: a de Emma debruçada sobre a cabeça da
suicida Böbe, envolvida no sangue ainda fresco, e a visão recorrente de um
corpo nu rolando descontrolado pela encosta escura — a própria alusão da falta
de segurança.
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Emma (Johanna ter Steege) junto ao corpo de Böbe (Enikö Börcsök) |
Em 1992, na
mostra competitiva do Festival de Berlin, Queridas amigas e István Szabó obtiveram
menção especial da parte do Júri Ecumênico. O diretor também levou o Prêmio
Especial do Júri Oficial (o Urso de Prata) e foi nominado ao Urso de Ouro.
Nesse mesmo ano, pelo European Film Awards, Szabó venceu na categoria de Melhor
Roteirista Europeu e Johanna ter Steege foi indicada ao prêmio de Melhor Atriz
Europeia.
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Böbe (Enikö Börcsök) e Emma (Johanna ter Steege) nos últimos momentos de felicidade |
Roteiro: István Szabó, Andrea Vészits. Música: Tibor Bornai, Mihály Móricz, Feró Nagy. Direção de fotografia (cores): Lajos
Koltai. Montagem: Eszter Kovács. Desenho de produção: Attila Kovács. Decoração: László Makai. Figurinos: Zsuzsa Stenger. Maquiagem: Erzsébet Forgács, Rozalia
Szegedi. Contrarregra: Mihály
Balogh, Hardi Zoltán. Gerente de
construções: Tibor Égenhoffer. Operador
de microfones: István Pergel. Dublê:
György Kivés. Fotografia de cena:
István Bartók. Técnicos de iluminação:
Sándor Domokos, Molcsán Zsigmond, Károly Sipos, József Trombitás, József Tóth,
Antal Török, Zsigmond Molcsány. Operador
de câmera: Gyula Kovács. Alfaiate:
Imre Béres. Guarda-roupa: Anikó
Fazekas, István Pataki. Assistente de
montagem: Kinga Molnár. Técnicos: Gyula
Krasnyánszky, Ferenc Siskó. Edição do
roteiro: Gabriella Prekop. Tempo de
exibição: 90 minutos.
(José Eugenio Guimarães, 1993)
Excelente trabajo Eugenio.
ResponderExcluirNo conocía el filme y lo describes con pasión y detalle.
Refleja muy bien la realidad sociopolítica que se produjo, como consecuencia de la desaparecion de la Unión Soviética y las consecuencias que tuvo para el resto de países que orbitaban a su alrededor.
Me la apunto para intentar verla.
Gracias por tan detallada reseña y te envío un gran saludo
Gracias, Miguel! De aquí de Niterói, mucho próximo a Río de Janeiro, le envío un fraternal saludo. Es una película extremadamente dolorosa. Me marcó profundamente. Tal vez usted pueda encontrarla en el Youtube.
ExcluirAbrazos.
La caída de ese régimen comunista en la Europa del este ocasionó un cambio radical en las vidas de tantos ciudadanos de esos países detrás del antiguo muro de Berlín. Este tema está perfectamente reflejado en las dos protagonistas, Emma y Bobe, profesoras de ruso en Budapest antes de ese cambio político que las obliga desgraciadamente a buscarse la vida de una forma muy desesperada.
ResponderExcluirTiene muchos premios y está muy bien considerada dentro del mundo del cine, pero yo todavía no he tenido el gusto de verla.
Muchas gracias por hacernos una completa reseña cinematográfica con todo lujo de detalles. ¡Enhorabuena!
Un abrazo enorme.
Muchas gracias pelo aporte, Estrella Amaranto.
ExcluirComo dijo a Miguel, un poco arriba, quedé profundamente marcado por la película. Espero que consiga verla, algún día. Creo que en Europa está en mejores condiciones de ser vista y apreciada del que en el distante Brasil. Usted, ciertamente, le gustará mucho. Entonces, si posible, vea. Después, cuénteme lo que halló.
Un saludo y un abrazo fuerte.
Eugenio,
ResponderExcluirApenas para registro de presença.
Já vi diversos titulos com o tema em pauta, porém jamais assisti a qualquer fita dirigida pelo Szabo.
jurandir_lima@bol.com.br
Pois recomendo a você que procure conhecer o húngaro Istvan Szabó, Jurandir. Rigor e contundência são as palavras que melhor o definem.
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