Um filme simples, bom, barato, inteligente, rodado com uma
rapidez impressionante: é Na mira da morte (Targets,
1968), primeira incursão de Peter Bogdnovich na realização cinematográfica e um
dos precursores da onda de nostalgia que percorreu o cinema estadunidense do
final dos anos 60 à década seguinte. O próprio diretor se faz personagem da
história contada em duas frentes narrativas que avançam paralelas,
aparentemente desconectadas, para convergir apenas no final. Interpreta Sammy Michaels,
diretor e roteirista sentimentalmente inspirado pelo cinema de outrora.
Pronuncia estes famosos dizeres: "Todos os grandes filmes já foram
feitos". Boris Karloff faz uma representação de si mesmo: o ator Byron
Orlok, prestes a se aposentar, nome referencial do velho cinema de terror que
não assusta a mais ninguém na atualidade. O pavor, agora, é assumidamente real
e mortal, parece concluir diante da visão de uma sociedade totalmente
mecanizada e acuada pelo crescente número de matadores seriais na forma de
franco-atiradores representados por Bobby Thompson (Tim O'Kelly). Quanto a
isto, é um filme atualíssimo. Põe em questão as causas da violência urbana nos
Estados Unidos, país que evita qualquer discussão acerca da aprovação de
medidas de controle sobre a posse de armamento individual. Na mira da morte está
apoiado em roteiro inteligentíssimo que lamenta a decadência do cinema —
inclusive como espaço de exibição — e, concomitantemente, das próprias
instâncias de socialização em época de celebração do mais desatado
individualismo egoísta. Os momentos finais, primorosos, combinam à perfeição
ilusão e realidade em exemplar trabalho de montagem executado pelo próprio
diretor. Segue apreciação escrita em 1975, revista e ampliada em 1988.
Na mira da morte
Targets
Direção:
Peter Bogdanovich
Produção:
Peter Bogdanovich
Paramount
Pictures, Saticoy Productions
EUA — 1968
Elenco:
Boris
Karloff, Tim O'Kelly, Tim Burns, James Brown, Nancy Hsueh, Arthur Peterson,
Mary Jackson, Tanya Morgan, Sandy Baron, Monty Landis, Paul Condylis, Mark
Dennis, Stafford Morgan, Daniel Ades, Peter Bogdanovich, Warren White,
Geraldine Baron, Gary Kent, Ellie Wood Walker, Frank Marshall, Byron Betz, Mike
Farrell, Randy Quaid, Carol Samuels, Jay Daniel, James Morris, Susan Douglas,
Kirk Scott, Diana Ashley, Raymond Roy, Kay Douglas, Robert Cleaves, Anita
Poree, James Bowie, Pete Belcher, Elaine Partnow, Timothy Burns, Susan Douglas
Rubes, Jay Daniel, Git Luboviski, Milton Luboviski, Don Steele.
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o ator Boris Karloff e o diretor Peter Bogdanovich quando das filmagens de Na mira da morte |
Peter Bogdanovich
vinha de um documentário à base de entrevistas, o pouco visto The
great professional: Howard Hawks (1967), realizado para a TV, quando
estreou na direção cinematográfica com Na mira da morte, estrelado por
Boris Karloff. Automaticamente associado ao cinema de terror, o ator percorria
as telas desde os anos 30, interpretando criaturas de Frankenstein, múmias,
assassinos perversos, dementes perigosos, lobisomens, vampiros... Toda sorte de
entidades maléficas daqui e do além. Em Na mira da morte compõe basicamente
um retrato de si próprio. É Byron Orlok, reconhecido ator de filmes de terror já
no inverno de seu tempo, prestes a se aposentar. Percebe, com triste resignação,
que os malignos personagens aos quais deu vida no celulóide perderam
completamente o interesse. Inclusive, deixaram de assustar. Hoje, sustenta, o
verdadeiro horror está nas ruas das grandes metrópoles, estampado nas páginas
dos jornais; é verdadeiro, machuca e mata em vez de simplesmente assustar para
distrair, como faziam os filmes de antanho — simulacros de luzes, sombras e
maquiagem. Orlok teme o mundo real que o tornou antigo e desatualizado. Por
isso, quer abandonar o cinema o quanto antes, para desalento do diretor e
roteirista Sammy Michaels (Bogdanovich).
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Acima e abaixo: Boris Karloff no papel do ator Byron Orlok, basicamente uma representação dele mesmo |
Bobby Thompson
(O'Kelly) simboliza o horror real tão temido por Orlok. É vendedor de seguros afeiçoado
às armas de fogo. Possui um vasto e diversificado arsenal. O roteiro de Peter
Bogdanovich e do não creditado Samuel Fuller — baseado em história de Polly Platt
em parceria com o diretor — não se aprofunda na psicologia do personagem. Porém,
revela o suficiente aos propósitos do filme: é um quadro de carência, individualismo,
fastio, ociosidade e desprezo pela vida. Move-o a compulsão assassina; o
simples prazer de matar. Começa em
casa. Com frieza e indiferença, como se praticasse um ato
corriqueiro, elimina a esposa Ilene (Tanya Morgan), a mãe Charlotte (Jackson) e
o entregador do supermercado (White). Em seguida, aquartela-se sobre o tanque
de uma refinaria às margens de autoestrada e dispara nos veículos. Foge com a
chegada da polícia. Esconde-se no cine drive-in
prestes a ser inaugurado com a exibição de The terror — último filme dirigido
por Sammy Michaels e protagonizado por Byron Orlok[1].
O ator marcará presença na ocasião, quando receberá homenagens. Entrincheirado
na armação que sustenta a tela, Bobby aguarda o apagar das luzes para executar
sua sinfonia particular de terror: disparar sobre a plateia. Fere, mata e
provoca pânico.
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Acima e abaixo: o terror real representado pelo franco-atirador Bobby Thompson (Tim O'Kelly) |
Bogdanovich é,
provavelmente, o principal deflagrador da onda de nostalgia que dominou o
cinema estadunidense do fim da década de 60 ao decênio seguinte. O período determinou
o revival de temas e gêneros caros
aos anos 30 e 40, épocas áureas de Hollywood. No exercício da crítica redescobriu
John Ford, Howard Hawks, Raoul Walsh, Leo McCarey, Allan Dwan, George Cukor e outros
mestres. Transformou-os em motivos de culto permanente. Materializou a paixão por
esses nomes em livros, entrevistas e filmes que cumpriram a louvável tarefa de
impedir que o véu do esquecimento baixasse sobre eles. Sobre o diretor de No
tempo das diligências (Stagecoach, 1939), Rastros
de ódio (The searchers, 1956) e O homem que matou o facínora (The
man who shot Liberty Valence, 1962), rodou o elogiadíssimo e
fundamental documentário Directed by John Ford (1971).
Como muitos
companheiros de geração, Bogdanovich começou a dirigir amparado por Roger
Corman, de quem foi assistente em Os anjos selvagens (The
wild angels, 1967). Com invejável competência realizou de imediato um
conjunto sedutor e referencial de filmes nos quais homenageia ídolos e a
produção de antanho: A última sessão de cinema (The
last picture show, 1971) é amarga visão, em tom de balada, sobre uma
América que se esvai; Essa pequena é uma parada (What’s
up doc?, 1972), refaz com felicidade a screwball comedy no melhor estilo de Howard Hawks em Levada
da breca (Bringing up baby, 1938); e Lua de papel (Paper moon, 1973)
redescobre o período da grande depressão na estrada que a família Joad percorreu
em As
vinhas da ira (The grapes of wrath, 1940), de John
Ford. A seguir, fracassos sucessivos lhe desfizeram a reputação: Daisy
Miller (Daisy Miller, 1974), Amor, eterno amor (At
long last love, 1975) e No mundo do cinema (Nickelodeon,
1977).
Além de financiar
Na
mira da morte, Corman cedeu equipamentos, instalações e Boris Karloff a
Bogdanovich. O ator estava a três dias do vencimento do contrato que o ligava
ao patrocinador. Essa é a principal explicação para a rapidez das filmagens e
da aparente desigualdade narrativa, fatores que de modo algum constituem
problema. Na mira da morte vale pelo argumento instigante e atual,
transformado em roteiro inteligente e eficaz. Começa com a apresentação dos números
de assassinatos cometidos por destrambelhados franco-atiradores estadunidenses
nos últimos anos. A seguir, questiona a ultraliberal legislação do país sobre a
posse de armamento individual. Pergunta: qual a razão de tantos crimes? Por
que, apesar de tudo, os Estados Unidos não têm leis para a regulamentação e
controle da posse de armas?
Bogdanovich lança
mão dessas evidências para discutir a qualidade do horror em suas vertentes
cinematográficas e fictícias, cotidianas e reais. Orlok conclui, prestes a se
retirar de cena: o horror mudou. Bobby Thompson é prova disso. O velho ator e o
franco-atirador protagonizam duas frentes narrativas que convergem apenas no
desfecho. Enquanto isso, o cinema confronta a si e a realidade. Os mitos da
tela de outrora são homenageados, a começar pelo próprio Karloff/Orlok. A
narrativa apresenta o espectador a trechos do primeiro filme importante do ator
e do personagem que interpreta em Na mira da morte: O
Código Penal (The Criminal Code, 1931), de Howard
Hawks. Diante das cenas, Sammy Michaels — apaixonado por cinema como o Peter
Bogdanovich que o representa — entra em êxtase. Em seguida pronuncia a famosa frase:
“Todos os grandes filmes já foram feitos”. É como se a decadência do cinema
testemunhada por Orlok e confirmada por Michaels explicasse a degradação do
cotidiano; é como se a superação de uma série de monstros de fantasia que
pululavam nas telas estivesse por trás do surgimento de insanos de verdade como
Bobby Thompson.
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Byron Orlok (Boris Karloff) com o diretor e roteirista Sammy Michaels (Peter Bogdanovich) "Todos os grandes filmes já foram feitos" |
Após as imagens
de O
Código Penal segue uma sequência particularmente significativa. Bêbado,
sem condições de voltar para casa, Michaels adormece na cama de Orlok. Este,
contrariado, ocupa o outro lado do leito. É uma passagem simbólica. Informa
tudo a respeito do gosto de Bogdanovich por cinema e de sua íntima relação com
o meio. Ele, que resgatou filmes e mestres de ontem, e tentou, no começo da
carreira, refazer antigos e imortais sucessos, paga tributo às suas referências
deitando-se literalmente na cama de um digno representante do passado ao qual
tanto deve e valoriza. Michaels e Orlok ou Bogdanovich e Karloff, estirados
lado a lado, formam a síntese entre o velho e o novo proposta pelo realizador
de Directed
by John ford, A última sessão de cinema e este Na
mira da morte. Protagonizam, quando acordam, o único momento de humor
da realização. Michaels leva um susto ao se deparar com Orlok na mesma cama.
Diante do protesto do velho, responde: “Como não ficar assustado se a primeira
coisa que vejo de manhã é o rosto de Byron Orlok” (ou de Boris Karloff)? Este
por sua vez, apavora-se com a própria imagem projetada no espelho.
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Byron Orlok (Boris Karloff) se assusta com a própria imagem espelhada |
No drive in, local do desfecho de Na
mira da morte, Bogdanovich aproxima três paixões estadunidenses:
automóveis, armas e cinema. As duas primeiras são as mazelas do país, acredita.
Provavelmente, nelas pensava Orlok ao comentar sobre a violenta e congestionada
Los Angeles: “Meu Deus, como essa cidade ficou feia!” Horrível também é o drive in, mais estacionamento que
cinema, mau gosto que só poderia vingar num país que tem os automóveis como
extensões dos animais de estimação, os cães sobre rodas. A visão que o filme
fornece do lugar é desoladora: algo como o cemitério da sétima arte. Não deixa
de ser irônico e sintomático homenagear o mito Orlok num lugar como esse.
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Acima e abaixo: o terror real, Bobby Thompson (Tim O'Kelly, é confrontado pelo ator que encarnou o terror cinematográfico, Byron Orlock (Boris Karloff) |
No entanto, o
cinema vence o confronto com a barbárie. Após disseminar o pavor, o franco-atirador
é descoberto, justamente por Orlok. Somente a personificação do terror
cinematográfico, naquele momento protagonista de The terror, poderia
vencer a indiferente demência do assassino serial. A montagem do próprio
Bogdanovich ordena tudo à perfeição, ao costurar realidade e cinema, às vezes
interpenetrando-os, iludindo assassino e espectador. No pátio Orlok avança rumo
ao matador; um deslocamento que se confunde com a movimentação executada na
tela do drive-in pelo personagem que
interpreta. Bobby avista um e outro, Orlok e o ator caracterizado em The
terror. Assusta-se, entra em desespero e se descontrola. São duas
figuras idênticas indo ao seu encontro. Uma é real; a outra, fictícia. Começa a
atirar a esmo, para todos os lados. Fere Orlok, mas não o detém. O assassino do
drive in se apavora com a dupla
imagem do horror, oferecida pela ficção e por aquele que tão bem soube
representá-la. De repente, o peso da bengala do ator cai sobre Bobby. Este se agacha,
chora, protege o rosto com as mãos qual criança apavorada e prestes a levar uma
surra. Depois desse final, exemplo de grande cinema, Bogdanovich não precisaria
fazer mais nada para demonstrar competência. Mas então ficaríamos sem as
imagens evocativas de Rio Vermelho (Red River, 1948), de
Howard Hawks, no centro do também evocatório A última sessão de cinema:
aí o gigante Tom Dunson, interpretado com incomparável naturalidade por John
Wayne, pede ao filho adotivo Math Garth (Montgomery Clift) para levar a boiada
do Texas ao Missouri na epopeia de abertura da mítica trilha Chisholm.
Direção de fotografia (Pathécolor): László Kovács. Roteiro: Peter Bogdanovich com a co-autoria de Samuel Fuller (não
creditado), baseado em história de Polly Platt e Peter Bogdanovich. Música: Charles Greene, Brian Stone. Desenho de produção: Polly Platt. Figurinos: Polly Patt. Montagem: Peter Bogdanovich. Produção associada: Daniel Selznick. Eletricista-chefe: Raymond L. Aguilar. Contrarregra: James Campbell. Assistente de direção: Gilles De
Turenne. Edição de som: Verna
Fields. Assistente de direção de arte:
Scott Fitzgerald. Maquiagem: Scott
Hamilton. Continuidade: Joyce King. Som: Sam Kopetzky. Gerente de produção: Paul Lewis. Assistente para o diretor: Frank Marshall. Assistente de produção: James Morris. Técnico-chefe: Tom Ramsey. Assistente
de câmeras: Peter Sorel. Bill Pecchi (não creditado). Assistente
de montagem: Mae Woods. Créditos:
Cinema Research. Regravação de som:
Ryder Sound Service. Produção da música
de rádio: Charles Greene, Brian Stone. Produção
executiva: Roger Corman (não creditado). Efeitos especiais: Gary Kent (não creditado). Agradecimentos à: Columbia Pictures Corporation por ceder as
imagens de O Código Penal (The Criminal Code, 1931), de Howard
Hawks. Tempo de exibição: 91
minutos.
(José Eugenio Guimarães, 1975; revisto e ampliado
em 1988)
[1] As imagens desse filme são da realização homônima
que Roger Corman rodou em 1963, protagonizada por Boris Karloff e Jack
Nicholson. No Brasil foi exibido com título que traduz fielmente o original.
Hola estimado Eugenio.
ResponderExcluirHoy nos traes dos personajes con bastante historia a sus espaldas, Boris Karloff y el director Peter Bogdanovich.
Película que puede estar de actualidad nuevamente por el debate sobre el control y tenencia de armas. Un drama social en algunos países.
Como siempre un estupendo y estudioso análisis sobre la película.
Un gran abrazo.
Obrigado pelo comparecimento, meu querido Rafael Pina. É um filme de que gosto muito. Barato e de concepção inteligente. Homenageia o cinema e emite um alerta para uma sociedade doente. Preciso revê-lo qualquer dias destes.
ExcluirGracias e um forte abraço.
Eugenio,
ResponderExcluirUm colega meu me orientou para atentar aos trabalhos documentais do Peter e do Scorcese. Fiz isso, porém vi apenas um do Scorcese e nunca peguei nada do Bogdanovich, que sei ter ótimos trabalhos documentais conforme enunciaste.
No entanto vi bons filmes do mesmo, sendo O Miado do Gato uma verdadeira surpresa. Sem falar no que acho de melhor seu que é A Última Sessão de Cinema/72. Mas vi ainda Lua de Papel, que é uma delicia de filme, além de inteligente e muito bem interpretado pelo Ryan e a Tatun.
Agora vejamos; o filme posto é de 1968 e já se queixavam nos EUA de toda aquele violencia. Esta que o diretor narra em seu filme ocorre a todo momento na terra do Tio Sam verdadeiramente. Até o próprio Karlof cita que a cidade estava feia, mudada e tudo o mais.
Não vamos nem imaginar o que ele, Boris, diria das coisas de hoje em dia ou mesmo como o Bogdanovich rodaria um novo Na Mira da Morte.
jurandir_lima@bol.com.br
Jurandir,
ExcluirDos documentários do Peter Bogdanovich, recomendo com entusiasmo o "Directed By John Ford", simplesmente magnífico e homenagem mais que merecida ao grande diretor. O MIADO DO GATO se apresentou para mim há alguns anos. Foi, também, uma boa surpresa. Por pouco não tirou o diretor do ostracismo.
NA MIRA DA MORTE continua atualíssimo, como filme e documento.
Abraços.
Estupenda reseña de un filme que nos muestra un tema muy delicado como es el creciente número de asesinos a sueldo...Un tema siempre actual,preciosa fotografía y tu análisis que no podía faltar y que es lo que distingue tu trabajo...Gracias por compartir,me ha encantado...Besitos....En paz ;)
ResponderExcluirMuchas gracias por su visita y comentario, Maria Del Socorro!
ExcluirDe hecho, es una película de mucha fuerza. No es muy conocida. Sin embargo, revela como pocas los descaminhos de la actual sociedad estadunidense. Y ya es una película relativamente antigua, de 1969, lo que a hace más profética y actual. En breve, hará 50 años.
Besos, querida.