O cego Tenente-Coronel Frank Slade (Al Pacino) dança um
tango com Donna (Gabrielle Anwar) em Perfume de mulher (Scent
of a woman, 1992), de Martin Brest. A realização conseguiu grande
popularidade e a sequência logo se tornou referencial e antológica. Costuma ser
constantemente lembrada pelos programas de TV que elegem os momentos marcantes
do cinema dos últimos anos. Infelizmente, neste atual tempo de massificação e banalização,
poucos sabem que o filme de Brest tem antecedentes italianos bem mais amargos e
contidos. Em 1974, Frank Slade era o Capitão Fausto Consolo, interpretado por
Vittorio Gassman em Perfume de mulher (Profumo di donna), de Dino Risi. A
personagem de Gabriele Anwar — escalada para uma representação restrita e
pontual — recebeu o nome como referência afetiva ao título original do filme
que teve Sara, vivida por Agostina Belli, como uma correspondente em desempenho
mais ativo e por tempo mais prolongado. Em Scent of a woman, Al Pacino
conquistou o Oscar de Melhor Ator. Já em Profumo di donna, Vittorio Gassman
oferece uma de suas interpretações que podem ser consideradas bigger than life, premiada em Cannes,
pelo Sindicado Nacional dos Jornalistas Cinematográficos da Itália e com o
Globo de Ouro. A apreciação ao filme de Dino Risi, a seguir, é de 1994.
Perfume de mulher
Profumo di donna
Direção:
Dino Risi
Produção:
Pio Angeletti, Adriano De Micheli
Dean Film
Itália — 1974
Elenco:
Vittorio Gassman, Alessandro Momo,
Agostina Belli, Moira Orfei, Franco Ricci, Elena Veronese, Lorenzo Piani,
Stefania Supgnini, Marisa Volonnino, Torindo Bernardi, Carla Macini, Alvaro
Vitali e os não creditado Sergio Di Pinto, Vernon Dobtcheff, Gennaro Ombra,
Gennarino Pappagalli, Franca Scagnetti.
![]() |
Bastidores de Profumo di donna O diretor Dino Risi - à direita - orienta Vittorio Gassman e Agostina Belli |
O romance Il
buio e il miele, de Giovanni Arpino, serviu de suporte ao roteiro escrito
por Dino Risi e Ruggero Maccari, materializado nas telas como Profumo
di donna. Acompanha a jornada interior de um cego guiado por um jovem
cadete pelas regiões e cidades ensolaradas da Itália. É uma crônica de longo curso
da redenção espiritual. Enfatiza questões como a aceitação dos limites impostos
pela existência, a valorização da humildade e a negação da arrogância autossuficiente.
Elege por tema central o renascimento ou a redescoberta da vida sob outra perspectiva
— a de um cego.
Pela atuação, Vittorio
Gassman recebeu o Globo de Ouro da imprensa estrangeira sediada na Itália, a
Palma de Ouro em Cannes e o prêmio de Melhor Ator conferido pelo italiano Sindicato
Nacional dos Jornalistas Cinematográficos. Interpreta Fausto Consolo, capitão
reformado do Exército Italiano, vitimado por explosão que o cegou e lhe decepou
parte de um braço, reparado por artefato de madeira. Diante das exigências e
limitações da nova situação, converteu-se em sarcástico solitário, tão perverso
quanto arrogante. Por outro lado, armou-se de grande energia. Compensa a
cegueira pela descoberta, por trás das sombras das retinas, de outro mundo, sutilmente
captado pelas sensações transmitidas pelas mãos, às vezes pela bengala ou percepção
dos movimentos e das emoções em
volta. A falta da visão resultou no desenvolvimento olfativo.
É capaz de detectar a presença de mulheres nas proximidades, inclusive a
conformação física das mesmas. Infelizmente, não consegue ocultar de ninguém o
quão desagradável e ressentido se tornou. Está sempre isolado no círculo
protetor da autossuficiência — transformado em escudo para a própria
fragilidade. Amargo e debochado, aproveita-se da própria situação para se
vingar do mundo — de cuja luz está privado — e zombar das condições e situações
alheias. Apesar de ter um braço em perfeitas condições, força uma caridosa
freira (Mancini) a lhe abrir o zíper ao sentir vontade de urinar; finge não
perceber a presença de um coronel falastrão — que desandou a pronunciar bobagens
— para expô-lo ao ridículo; debocha agressivamente do amor — equiparado à
caridade e à piedade, terminantemente recusados — que lhe dirige Sara (Belli),
uma antiga paixão.
![]() |
Vittorio Gassman interpreta o Capitão Fausto Consolo |
![]() |
Agostina Belli no papel de Sara |
![]() |
O cego e amargurado Fasuto (Vittorio Gassman) sai em jornada pela Itália O jovem cadete Giovanni Bertazzi (Alessandro Momo), o Ciccio, será o guia |
Fausto é como uma
força da natureza em permanente convulsão. Evita dar o braço a torcer e se
adaptar ao mundo na condição de alguém impossibilitado de ver. Procura se comportar
normalmente, como se cego não fosse — algo que fica patente ao pedir à
prostituta para apagar a luz durante uma sessão de sexo contratado. Cada vez
mais amargurado e cansado de uma existência descolorida, sempre descarregando
no mundo e nos outros a força da ira armazenada, entrega-se a um pacto de
morte. "Assina-o" com um companheiro de infortúnio, o também cego Tenente
Giacomino (Ricci). Antes do ato definitivo, parte em afetiva jornada de
despedida. Viajará pelo trajeto Turim-Nápoles, com paradas em Gênova e Roma.
Como se fosse uma reencarnação do "cavaleiro da triste figura" — um
fantasma do Don Quixote de Miguel de Cervantes, mas licenciado para liberar
impropérios a torto e a direito —, também terá um Sancho Pança por fiel
escudeiro: o jovem cadete Giovanni Bertazzi, carinhosamente apelidado de Ciccio
(Momo), promovido a guia de cego e, por extensão, transformado em involuntário
companheiro de infortúnios ao longo de sete dias.
![]() |
Ciccio (Alessandro Momo) e Fausto Consolo (Vittorio Gassman) |
Grosso modo, a
narrativa desigual pode ser dividida em duas partes. Na primeira, mais
dinâmica, estão os melhores momentos. A direção enfatiza os contrastes entre o
maduro Fausto e o ingênuo, reprimido e convencional Ciccio. O jovem, de certa
forma, serve de anteparo — uma espécie de para-raios: desvia do espectador os
rompantes agressivos do capitão. Ciccio é como um bloco de notas, um rascunho
que recolhe em estado bruto, às tontas, o mal estar do oficial, sem saber como
processá-lo. Até parece que o personagem interpretado por Alessandro Momo e o
público são os cegos da história. A todo momento são carreados pelo descontrole
nem sempre irracional de Fausto. Na verdade, é ele o guia: baseado em longa
experiência de vida, também é, paradoxalmente, aquele que "enxerga" mais
longe, sejam coisas, gentes e sensações, inclusive com os devidos matizes. Por
outro lado, a viagem — ato de exteriozação — também serve para descortinar o
interior do personagem. Pouco a pouco Fausto será obrigado a demolir sua
fortaleza de aparências. Até se revelar um carente rosário de fragilidades, um
egoísta que recusa qualquer tipo de amparo, afeto e compreensão.
Na chegada a
Nápoles, engrena-se a segunda parte. Conforme o esperado, Fausto se revela por
inteiro. No entanto, infelizmente, a dissecação da alma do capitão acontece em
paralelo à perda de vigor dramático de Perfume de mulher. Desde a entrada
em cena de Sara, as pungentes força e perversidade do oficial cedem espaço ao
sentimentalismo nostálgico recortado de frustração e amargura. Até Nápoles o
espectador procurava compreendê-lo sem o aporte da piedade. Agora, como se
estivesse impregnado de influências cristãs pelo lado franciscano, acreditando piamente
na capacidade de redenção pelo amor, Dino Risi parece retirar toda a força que
sustentava o militar. Este é reduzido a nada, a alguém digno tão somente de
pena e compaixão, sem que nesta conta se adicionem também o afeto e a
compreensão, como mais justo seria. Fausto é atirado ao chão, literalmente, para
se convencer do engodo da autossuficiência que o revestia. A seguir, é
reerguido como homem novo, renascido, ciente de suas limitações e a elas
conformado, porém, apoiado na segurança da mulher que o ama e apoia.
![]() |
Acima e abaixo: Fausto Consolo (Vittorio Gassman) e Sara (Agostina Belli) |
A direção passa a
impressão de que não teve muito trabalho. Dino Risi cumpre o ofício de forma
algo burocrática. Se há no filme, de fato, um centro de atração, este se chama
Vittorio Gassman. Todos os elementos cênicos giram em torno da sua virtuosística
composição. Domina a narrativa de ponta a ponta. É um ladrão de cenas e marca
presença em quase todas. Reduz os demais intérpretes a meros coadjuvantes
quando não a escadas. Gassman foi o terceiro nome cogitado para viver Fausto. A
princípio, estavam cotados, pela ordem, Marlon Brando e Ugo Tognazzi.
Profumo di donna foi indicado ao
Oscar de Melhor Filme Estrangeiro (em língua não inglesa). Recebeu o Nastro
D'Argento de Melhor Filme e Melhor direção.
![]() |
Fausto Consolo (Vittorio Gassman) e Ciccio (Alessandro Momo) |
Nos Estados
Unidos, em 1991, o romance de Giovanni Arpino — com aproveitamento de sugestões
permitidas pelo roteiro de Ruggero Macari e Dino Risi — foi refilmado por
Martin Brest e se tornou Scent of a woman, também
literalmente traduzido para Perfume de mulher. Resultou em história
de aparência bastante diferente. Al Pacino e Chris O'Donnell ficaram
responsáveis pelos papéis originalmente defendidos por Vittorio Gassman e
Alessandro Momo. A jovem Donna — o nome é uma referência afetiva ao filme de
Dino Risi —, interpretada por Gabrielle Anwar, tem presença pontual, limitada a
importante mas breve sequência. Em nada se assemelha à personagem vivida por Agostina
Belli. A versão de Brest se vale de outros ajustes e liberdades em relação ao
original — que não a desmerecem, em absoluto. Porém , ressaltam sobremaneira as
diferenças entre estadunidenses e italianos no que diz respeito às encenações e
à construção de personagens, bem como às licenças poéticas e aos valores dramáticos
que conferem substância às realizações.
![]() |
Alessandro Momo como o jovem cadete Giovanni Bertazzi (Ciccio) O ator faleceu tragicamente, em Roma, logo após o encerramento das filmagens |
Por fim, uma nota
trágica: poucos dias após o encerramento das filmagens, Alessandro Momo sofreu
fatal acidente de motocicleta em 20 de novembro de 1974, aos 17 anos. O fato
teve lugar em Roma, próximo a uma das locações de Perfume de mulher. Apesar
da pouca idade, Momo atuava no cinema desde 1969. Apareceu pela primeira vez em
La
scoperta, de Elio Piccon. A seguir vieram Il divorzio (1970), de
Romolo Guerrieri, para o qual interpretou Fabrizzio, filho do personagem
Leonardo Nenci vivido por Vittorio Gassman; Encontro com a desonra (Appuntamento
col disonore, 1970), de Adriano Bolzoni (creditado como William McCahon);
La
polizia è al servizio del cittadino? (1973), de Romolo Guerrieri; Malícia
(Malizia,
1973), de Salvatore Samperi; e Pecado venial (Peccato veniale, 1974), também
desse diretor.
Roteiro: Ruggero Macari, Dino Risi, baseados no romance Il
buio e il miele, de Giovanni Arpino. Música: Armando Trovajoli, Vittorio Fassone, Gaetano Lama. Direção de fotografia (Technicolor):
Claudio Cirillo. Cenografia: Lorenzo
Baraldi. Figurinos: Benito Persico. Guarda-roupa feminino: Sérgio Soldano. Assistente de direção: Claudio Risi. Montagem: Alberto Galliti. Diretor de produção: Gianni Cecchin. Secretário de produção: Antonio Barone.
Trucagens: Giulio Natalucci. Operador de câmara: Oddo Bernardini. Secretária de montagem e continuidade: Carla
Giarè. Som: Vittorio Massi. Estúdio de sincronização: Fono Roma. Mixagem da combinação de sons: Romano
Checcacci. Canções: Il
canotto, de Gianni Davoli e Fucolari, interpretada por Gianni Davoli; Le
gentil et le méchant, letra de Maurice Vidalin, música de Michel
Fuggain, interpretada por Michel Fugain; Che vuole questa musica stasera,
música de Gaetano Amendola, letra de Gaetano Amendola e Roberto Murolo,
interpretada por Peppino Gagliardi; Reginella, de Gaetano Lama e Libero
Bovio; Champagne, de Depsa, Jodice e Di Francia, interpretada por Peppino
Di Capri; Ricordati di me, de Gigli, Gaetano Amendola e Ezio Leone,
interpretada por Peppino Gagliardi; 'A tazze 'e caffe', letra de
Giuseppe Capaldo, música de Vittorio Fassone; La bambola rosa, de
Nicola "Nisa" Salerno e P. G. Redi. Penteados: Gilda De Guilmi. Maquiagem:
Giulio Natalucci. Maquiagem de Agostina
Belli: Franco Schioppa. Ruídos de
sala: Italo Cameracanna. Edição de
efeitos sonoros: Italo Cameracanna. Assistente
de câmera: Maurizio Zampagni. Serviços
de locação: Franco Rapa. Pagamentos:
Fausto Capozzi. Assessoria de imprensa:
Maria Ruhle. Tempo de exibição: 103
minutos.
(José Eugenio Guimarães, 1994)
Boa noite Eugenio!!
ResponderExcluirExcelente reseña, aunque a mi me gusto más la original con el gran Vittorio Gassman, la de Pacino tiene su encanto también.
Un placer aprender contigo Eugenio.
Saludos!!!
Tampoco dejo de manifestar apreço por la película estrelado por Al Pacino, Miguel. Sin embargo, aprecio más la versión estrelada por Vittorio Gassman, por el motivo de que me parece más adulta y también más verdadera, más amarga.
ExcluirLa versión hecha nos Estados Unidos, además del más, contiene aquellas licenciosidades que exigen heroísmo, moralismo y firme disposición redentora individual, lo que deja las cosas con una apariencia de irrealidade.
Más una vez, muchas gracias por su presencia y comentario en mi blog. También aprovecho para pedir disculpas por el retraso en la respuesta. Pero no es siempre que el exceso de actividades me deja con el tiempo libre.
Abrazos y saludos.
Eugenio,
ResponderExcluirPode parecer incrivel, mas somente vi uma fita onde o Gassman estivesse, que foi Barrabás. Jamais vi um filme com ele atuando. Porém já li demais de sua qualidade formidável como interprete.
O cinema americano tem feito muitos filmes baseados em criações de centros diversos.
Acabei de ver o excelente filme argentino, O Segredo dos Seus Olhos/10, do Campanella, que teve uma versão americana intitulada Olhos da Justiça, do Billy Ray, fita que fugiu um pouco do original argentino, mas que no frigir dos ovos é um filme bem aceitável.
O mesmo que aconteceu com Perfume de Mulher, do Brest, onde, tenho certeza, o filme do Risi foi também melhor.
Não vou medir posições entre os dois filmes, principalmente por não ter visto o do Gassman. Entretanto, podem ter gostado muito da interpretação do Pacino e até lhe dado Oscar. Mas, eu não o vi assim tão convincente no papel nem merecedor de tal premio.
E mais; ele só não está pior que sua atuação em Scarface/83, filme que o De Palma tece milhões de elogios ao que o Pacino fez, falas que discordo plenamente.
Vi ali um Pacino mal caracterizado, com muitos cacoetes forçados e visíveis exageradamente, mas que precisava mostrar para ser visto como o bandido tenaz que seu papel sustentava. Mas o fez mal e se saiu péssimo nesta interpretação.
Um bom artista, querido por muitos mas, como quase todos, tem ele também seus momentos de queda interpretativa.
Teço elogios às suas atuações em muito do que fez, com mais vigor pelos trabalhos em O Pagamento Final (Carlito's Way), do próprio De Palma, Fogo Contra Fogo, do M Mann e Vítimas de Uma Paixão, do Beresford.
Seu trabalho em Perfume de Mulher, não sei se pela dublagem que vi e que muitas vezes maltrata por demais os filmes, não me propõe elogios a ele.
jurandir_lima@bol.com.br
Jurandir, V. Gassman tem "apenas" 128 créditos como ator. Indicarei apenas 15, para você procurar com urgência. Faço isso pois considero fundamental conhecê-lo.
Excluir1. GUERRA E PAZ, 1956, de King Vidor.
2. OS ETERNOS DESCONHECIDOS, 1958, de Mario Monicelli.
3. TEMPESTADE, 1958, de Alberto Lattuada.
4. A GRANDE GUERRA, 1959, de Mario Monicelli.
5. AQUELE QUE SABE VIVER, 1962, de Dino Risi.
6. LA MARCIA SU ROMA, 1962, de Dino Risi.
7. OS MONSTROS, 1963, de Dino Risi.
8. O INCRÍVEL EXÉRCITO BRANCALEONE, 1966, de Mario Monicelli.
9. BRANCALEONE NAS CRUZADAS, 1970, de Mario Monicelli.
10. NÓS QUE NOS AMÁVAMOS TANTO, 1974, de Ettore Scola.
11. O DESERTO DOS TÁRTAROS, 1976, de Valerio Zurlini.
12. OS NOVOS MONSTROS, 1977, de Mario Monicelli, Dino Risi e Ettore Scola.
13. O TERRAÇO, 1980, de Ettore Scola.
14. A FAMÍLIA, 1987, de Ettore Scola.
15. O JANTAR, 1998, de Ettore Scola.
Abraços.