domingo, 17 de abril de 2016

GARY COOPER É ESPIÃO EM WESTERN DO BOM E MODESTO ANDRÉ DE TOTH

Atualmente poucos sabem do húngaro Sásvrái Farkasfawi Tóthfalusi Tóth Endre Antai Mihaly, passado à história com o nome de André De Toth. Abandonou a Hungria por causa do nazismo, com a carreira de cineasta já iniciada. Após breve estada na Inglaterra — onde trabalhou para o lendário produtor Alexander Korda —, chegou aos Estados Unidos, em 1943. Em Uma viagem pessoal através do cinema americano com Martin Scorsese (A personal journey of Martin Scorsese through American movies, 1995), De Toth surge no rol dos valores injustamente esquecidos. Firmou-se na direção, mas também foi roteirista, diretor de segunda unidade, montador, ator, assistente de direção, assistente de produção e produtor. Recebeu o Oscar pela história do brilhante O matador (The gunfighter, 1950), de Henry King; realizou o primeiro filme do antigo processo de Terceira Dimensão — Museu de cera (House of fax, 1953) —; e foi diretor de segunda unidade de Lawrence da Arábia (Lawrence of Arabia, 1962), de David Lean. No cinema estadunidense esteve praticamente relegado à vala comum dos diretores contratados. Entretanto, apesar dos orçamentos apertados, rodou realizações com personalidade, alma e estilo; preferencialmente westerns e películas de ação as mais variadas. Renegado heroico (Springfield rifle, 1952), ambientado no cenário da Guerra de Secessão, é western curioso e muito bem narrado. Na tentativa de desbaratar uma rede que se apropria dos suprimentos de cavalos às forças da União, o Major Alexander Kearney (Gary Cooper) banca o espião e revela como o Exército dos Estados Unidos organizou o seu serviço de inteligência. A apreciação a seguir, de 1978, foi revista e ampliada em 1997.







Renegado heroico
Springfield rifle

Direção:
André De Toth
Produção:
Louis F. Edelman
Warner Brothers-First National
EUA — 1952
Elenco:
Gary Cooper, Phyllis Thaxter, David Brian, Paul Kelly, Lon Chaney Jr., Philip Carey, James Millican, Guinn “Big Boy” Williams, Alan Hale Jr., Martin Milner, Wilton Graff e os não creditados Fess Parker, Holly Bane, Vince Barnett, Ray Bennett, James Brown, Michael Chapin, Ben Corbett, George Eldredge, William Fawcett, Richard Hale, Poodles Hanneford, Edward “E. Guy” Hearn, Eric Hoeg, Richard Lightner, Rory Mallinson, Ewing Mitchell, Jack Mower, Jerry O'Sullivan, Ric Roman, George Ross, Ralph Sanford, Paula Sowl, Jack Woody, Nedrick Young, Jack Tornek, Kit Guard, Mike Ragan, Tony Urchel. 



O diretor Sásvrái Farkasfawi Tóthfalusi Tóth Endre Antai Mihaly - André De Toth



Em Uma viagem pessoal através do cinema americano com Martin Scorsese (A personal journey of Martin Scorsese through American movies, 1995), de Martin Scorsese  um dos muitos filmes patrocinados pelo British Film Institute em comemoração ao centenário do cinema , André De Toth surge no rol dos valores injustamente esquecidos. Nasceu em Mako, Hungria, aos 15 de maio de 1912. O verdadeiro nome é Sásvrái Farkasfawi Tóthfalusi Tóth Endre Antai Mihaly. Iniciou carreira cinematográfica no país natal. Além de diretor, acumulou funções de roteirista, diretor de segunda unidade, montador, ator, assistente de direção, assistente de produção e produtor. Os primeiros filmes, assinados como Endre Toth[1], são: Öt óra 40 (1939), Toprini nász (1939), Két lány az utcán (1939), Hat hét boldogság (1939) e Semmelweis (1940)[2].


A ascensão do Nazismo o obriga a fugir para a Inglaterra, onde trabalha como diretor de segunda unidade para a companhia de Alexander Korda: O ladrão de Bagdad (The thief of Bagdad ‑ An Arabian fantasy, 1940), de Michael Powell, Tim Whelan, Ludwig Berger e dos não creditados William Cameron Menzies, Zoltan Korda e Alexander Korda; Mowgly, o menino lobo (Jungle Book, 1942) e Sahara (Sahara, 1943), ambos de Zoltan Korda[3]. Em 1943, já em Hollywood, estabiliza a carreira, principalmente na direção de westerns e diversos filmes de ação. O primeiro é Passaporte para Suez (Passaport to Suez, 1943). Em 1944 contrai matrimônio com a atriz Veronica Lake, união prolongada até 1952. Recebe, com William Bowers, indicação ao Oscar de Melhor Argumento Original pelo brilhante O matador (The gunfighter, 1950), de Henry King. Dirige, em 1953, o filme de estreia do primitivo processo De Terceira Dimensão: Museu de cera (House of fax)[4]   considerado o melhor do formato. À semelhança de Budd Boetticher, associa-se ao ator Randolph Scott[5] numa série de eficazes westerns de baixo custo: Terra do inferno (Man in the saddle, 1951), O ouro da discórdia (Carson City, 1952), O pistoleiro (The stranger wore a gun, 1953), Torrentes de vingança (Thunder over the plains, 1953), Alma de renegado (Riding shotgun, 1954) e Feras humanas (The bounty hunter, 1954).


Retorna à Europa no começo dos anos sessenta. Realiza, na Itália, O rei dos piratas (Morgan, il pirata, 1960), Os mongóis (I mongoli, 1961) e Ouro para os Césares (Oro per i Cesari, 1962); na Inglaterra, Inferno no deserto (Play dirty, 1968) — inicialmente destinado a René Clement — e a direção de segunda unidade de Lawrence da Arábia (Lawrence of Arabia, 1962), de David Lean[6].


Em Hollywood, segundo a lenda, os diretores caolhos enxergavam melhor. É o caso de John Ford, Raoul Walsh e Fritz Lang. Entre esses, pode-se incluir André De Toth. Não estava à altura do trio. Ao menos, nunca teve melhores oportunidades para provar o contrário. O cinema estadunidense praticamente o relegou à vala comum dos realizadores contratados, submetidos à despersonalizada linha de montagem das companhias produtoras. Mas seus filmes possuíam alma e estilo. Prova-o Renegado heróico. Apesar da produção rápida, não lhe faltam clima, emoção, ritmo e ação tão característicos às aventuras de De Toth. O roteiro esperto de Frank Davis e Charles Marquis Warren preenche a história com boas tramas apoiadas por eficiente condução. Valoriza o conjunto a ótima atuação de Gary Cooper. Foi realizado pouco antes de o ator interpretar Will Kane no memorável Matar ou morrer (High noon), de Fred Zinnemann[7], no mesmo 1952. Dois anos depois, Cooper marcará presença nos interessantíssimos westerns Vera Cruz (Vera Cruz, 1954), de Robert Aldrich, e O jardim do pecado (Garden of evil, 1954), de Henry Hathaway.


O Major Alexander Kearney (Gary Cooper)

  
Renegado heróico desenvolve a ação na retaguarda da Guerra de Secessão. As forças da União enfrentam grave crise no abastecimento de cavalos. Os transportes de montarias são desviados por uma quadrilha aos rebeldes sulistas. À frente de um comboio, o Major nortista Alexander “Lex” Kearney (Cooper), emboscado, entrega sem luta todos os animais. Denunciado como negligente e covarde pelo Capitão Tannick (Carey), enfrenta a Corte Marcial. Apesar dos testemunhos favoráveis, é condenado como facilitador da causa inimiga. Contra ele também pesam a origem sulista e a neutralidade manifestada ao começo do conflito. Expulso, é marcado com o emblema amarelo da covardia. Poderá enfrentar a pena capital se entrar, sob qualquer circunstância, em alguma unidade militar do Norte.


O Major Alexander Kearney (Gary Cooper) é marcado com a cor amarela da covardia na cerimônia de expulsão desonrosa das forças da União 

  
A desonra, apesar de oficial, é parte de um plano que tem o apoio decisivo e arriscado do acusado. Unidos a ele estão o Capitão Tannick e pequeno número de oficiais comandados pelo Coronel Sharp (Graff). Devem desbaratar a rede de desvio de cavalos sabidamente instalada em Fort Hedley, Colorado. Acredita-se que a situação militar desonrosa de Kearney lhe facilitará a liberdade de movimento entre os sulistas e a infiltração na quadrilha. Atuará como espião, função estranhamente desprezada pelo Comando Maior do Norte — seus membros, pelo visto, jamais leram A arte da guerra, de Sun Tzu.


O Major Alexander Kearney (Gary Cooper) com a esposa Erin  (Phyllis Thaxter)

  
Infiltrado, Kearney conquista a confiança do chefe do grupo, Austin McCool (Brian). Com o tempo, elimina-o e assume a liderança. Descobre que seu superior em Fort Hedley, o Coronel Hudson (Kelly), fornece ao inimigo informações sobre o transporte dos cavalos. Infelizmente, a vida familiar do espião entra em crise por força do caráter sigiloso da missão. A esposa Erin (Thaxter) não compreende as motivações do marido. O filho Jamie (Chapin) abandona a escola devido às zombarias dos colegas em função da execração do pai. A situação piora quando os únicos sabedores do plano morrem no enfrentamento com os bandidos. Sozinho, Kearney terá que desbaratar o complô, aprisionar Hudson e mantê-lo vivo. Só assim poderá reverter o veredicto da Corte Marcial e retornar honrosamente às fileiras do Exército.


O Major Alexander Kearney (Gary Cooper) e o Coronel Hudson (Paul Kelly)

  
Quando tudo parecia perdido, recebe decisiva ajuda do sempre fiel grupo liderado pelo Sargento Snow (Williams). Entra em cena o rifle Springfield — que fornece ao filme o título original. A arma é referenciada rapidamente no começo da história; depois, não mais. Esse mistério deixa o espectador desconfiado e inquieto. O Springfield era uma novidade. Aumentou a capacidade de fogo dos soldados. Recarregado rapidamente pela culatra, deu a poucos homens a eficácia de um batalhão. Com ele, Kearney e auxiliares liquidam a quadrilha. Hudson é capturado. Com a honra recuperada, o espião é reintegrado à carreira militar na patente de General. Recebe a tarefa de implantar e chefiar o serviço de inteligência do Exército.


Major  Alexander Kearney (Gary Cooper)

  
Uma das boas qualidades de Renegado heroico é o modo como De Toth captura a atenção do espectador. Este passa praticamente a metade do filme lamentando a desgraça de Kearney e ansioso pela redenção moral do personagem. Só então toma conhecimento da farsa que acoberta o plano de espionagem. O mistério em torno do rifle também conquista a plateia. Mas tudo isso seria inútil sem uma direção competente e imaginativa.


Phyllis Thaxter, a mocinha, tem papel diminuto. Sequer merecia o destaque nos créditos.


Erin (Phyllis Thaxter) e o marido Alexander Kearney (Gary Cooper)

  
O abrutalhado bandido Pete Elm, interpretado com garra por Lon Chaney Jr., é violentamente humilhado, como nunca se viu num filme da época. Tem o traseiro cortado à faca por Kearney.


Pete Elm (Lon Chaney Jr.) e Alexander Kearney (Gary Cooper)


Fess Parker, futuro protagonista da série televisiva Daniel Boone[8] — exibida no Brasil nos anos sessenta e setenta —, tem pequena e não creditada participação como o personagem Jim Randolph.


Alexander Kearney (Gary Cooper) e Pete Elm (Lon Chaney Jr.)

  
No final, Cooper mostra o quanto é bom, valendo-se apenas de gestos simples e contidos, à base de quase imperceptíveis movimentos da face e do olhar. Na cerimônia de reintegração, condecoração e promoção, Kearney ouve — como bom e disciplinado militar — os elogios públicos do comandante. Mas a expressão revela o desejo franco de estar mais à vontade, em confraternização com a mulher e o filho que o aguardam aliviados e derramados em contentamento.





Roteiro: Frank Davis, Charles Marquis Warren, com base em história de Sloan Nibley. Direção de fotografia (Warnercolor): Edwin B. DuPar. Música: Max Steiner. Orquestração: Murray Cutter. Montagem: Robert L. Swanson. Maquiagem: Gordon Bau. Direção de arte: John Beckman. Decoração: G. W. Berntsen. Consultor técnico: Ben Corbett. Som: Charles Lang. Assistente de direção: Frank Mattison. Dublês (não creditados): Ben Corbett, John Epper, Ted Mapes, George Ross, Jack Woody, Jack N. Young. Sistema de mixagem de som: RCA Sound System. Tempo de exibição: 93 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1978; revisto e ampliado em 1997)



[1] Além de Endre Toth e Andre De Toth, o nome do diretor também é grafado como Endre Tóth e André De Toth.
[2] Cf. KATZ, Ephraim. The film encyclopedia. 2. ed. New York: Harper Collins, 1994. p. 360; e INTERNET MOVIE DATA BASE. André De Toth. Disponível em http://www.imdb.com. Acessado em 10 mar. 1997.
[3] André De Toth não recebeu créditos por O ladrão de Bagdad e Sahara. Quanto à atividade desempenhada em O ladrão de Bagdad, há controvérsias: direção de segunda unidade para Ephraim Katz (cf. KATZ, Ephraim. op. cit.); assistente de produção segundo o Imdb (cf. INTERNET MOVIE DATA BASE. Op. cit.).
[4] KATZ, Ephraim. Op. cit.
[5] Com Randolph Scott, Budd Boetticher filma: Sete homens sem destino (Seven men from now, 1956), Resgate de bandoleiro (The tall T, 1957), Entardecer sangrento (Decision at sundown, 1957), Fibra de herói (Buchanan rides alone, 1958), Um homem de coragem (Westbound, 1959) e Cavalgada trágica (Comanche Station, 1960).
[6] Cf. INTERNET MOVIE DATA BASE. Op. cit. Outras fontes não registram essa informação.
[7] Por Matar ou morrer, Gary Cooper ganhou o Oscar de Melhor Ator. Na mesma categoria foi premiado pela primeira vez por Sargento York (Sergeant York, 1940), de Howard Hawks. Em 1961, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood agraciou-o com um Oscar Especial “por suas memoráveis interpretações e reconhecimento internacional que tanto honraram a indústria cinematográfica”. Nessa ocasião, representou-o o colega e amigo James Stewart, que recebeu o prêmio em lágrimas. Gary Cooper, gravemente enfermo, não pode comparecer à cerimônia. Poucos dias depois, em 13 de maio, morreria vitimado pelo câncer (cf. KATZ, Ephraim. Op. cit.).
[8] São 165 episódios distribuídos por 6 temporadas. Produzida pela 20th Century-Fox Television, foi originalmente exibida pela rede National Broadcasting Company (NBC) de 24 de setembro de 1964 a 10 de setembro de 1970.

4 comentários:

  1. Eugenio,

    Uma grande coincidencia esta abordagem sobre o filme do Toth.

    Andei lendo sobre ele e observei que na década de 1950 eu vi quase que todos os westerns que fez, e que eram quase todos eles dignos de algum elogio ou, se menos, de assisti-los sem reclamações.

    Vi Renegado Heroico no ano em que foi lançado na Bahia e lembro como se estivesse vendo agora a cena da expulsão de Cooper do exercito, onde lhes arrancam os botões da farda e tudo o mais pertencente ao Exército, e logo o observamos deixando a pés e cabisbaixo o forte.
    Uma cena forte, bem construida e que eu não lembrava ou não sabia, dado a ser dono de uma mente ainda sem a formação necessária para absorver tais situações, que nela estava embutido o plano que nosso editor esplana na matéria.

    Porém, não tenho mais elementos para dizer da pelicula, pois somente a vi uma única vez e com meus 12/13 anos. Recordo tudo isso porque sou fã radical do Cooper e via e revia seus filmes na maior das inocências.

    Hoje possuo um pequeno acervo de boas obras suas, mas ainda preciso de mais, de muito mais.

    Passo a ficar conhecendo ainda mais deste bom diretor com os informes desta postagem, pois não sabia de O Matador, Lawrence da Arábia e muito mais, onde ele trabalhou quer atrás das câmeras ou criando historias, conhecendo somente seus trabalhos de cineasta.

    Existe, porém uma fita que ele fechou a década de 1950.
    Exatamente em 1959 ele realiza uma de suas melhores criações com o perfeito Quadrilha Maldita, onde o Ryan mostra mais uma vez porque chamava-se Robert Ryan e com o Burl Ives em mais uma de suas grandiosas interpretações.

    Um trabalho do Toth que ainda gostaria de ver numa postagem.

    jurandir_lima@bol.com.br

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    1. Você tem toda a razão com relação ao perfeito QUADRILHA MALDITA, Jurandir. Mas é um filme que conheci tardiamente, apenas há três anos, em 2912, numa mostra dedicada ao Toth exibida aqui no Rio pelo Centro Cultural do Banco Do Brasil. Como a resenha publicada foi escrita em 1978 e sofreu alguma revisão quase 20 anos depois - quando eu ainda não conhecia QUADRILHA MALDITA -, é por isso que este muito bom westerns não é mencionado.

      Abraços.

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    2. Que maravilha de matéria. Que primor! Sempre que alguém escreve sobre Gary Cooper tem minha mais profunda admiração.Gary Cooper é especial em minha vida e se tornou meu amor eterno. Seu talento é indiscutível, além de seu charme incomparável.
      Sobre o diretor eu vi um documentário sobre os exilados do nazismo e muito me surpreendeu como levaram uma vida sacrificada para começar nos EUA, muitos ajudados por Ernst Lubitsch. Mas a arte e o trabalho sempre guiando os passos.
      Gosto muito dos filmes Noir deste diretor, mas parece que se especializou em faroestes. Também vi dele um filme com minha musa Barbara Stanwyck "Orquídea Branca".
      Tem muita coisa boa para vermos tanto de Gary quanto de André De Toth. Gostaria de ter mais tempo.

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    3. Muito me alegra o seu entusiasmo, Sibely. Só posso agradecer e esperar que outras matérias - alusivas ou não ao bom e querido Gary Cooper - também a sensibilizem. Infelizmente, não conheço este documentário sobre os exilados do nazismo ao qual se referiu.

      Beijos.

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