domingo, 16 de novembro de 2014

A 'ESPOSA' DE SATYAJIT RAY: CONDIÇÃO FEMININA E ÍNDIA ENTRE RENASCIMENTO E TRADIÇÃO

Do conto de Rabindranath Tagore, Nashta neer, o maior cineasta da Índia, Satyajit Ray, extraiu A esposa solitária (Charulata, 1964), décimo segundo dos 37 filmes que realizou. De formação eclética mas influenciado originalmente pelo realismo poético francês de Jean Renoir e neorrealismo italiano via Ladrões de bicicleta (Ladri di biciclette, 1948), de Vittorio de Sica, Ray localiza a ação da obra em apreço na segunda metade do século XIX, quando a Índia sob dominação britânica experimenta uma espécie de renascimento político-cultural fortemente ocidentalizado, com aspirações à independência nacional. Neste contexto, entrecortado por modernidade e tradição, movimenta-se Charulata (Madhabi Mukherjee), esposa sem lugar do intelectual e jornalista progressista Bhupati Dutta (Shailen Mukherjee). Centrado na personagem feminina, o diretor concebe uma narrativa que trata de confiança, solidão e fidelidade, ambientada quase que integralmente no interior de uma residência. O resultado é uma obra surpreendentemente bela. Nada sobra ou falta em A esposa solitária. O filme é coroado pelo soberbo desempenho de Madhabi Mukherjee, brilhantemente coadjuvada por Soumitra Chatterjee, Shailen Mukherjee, Shyamal Ghoshal e Gitali Roy. 






A esposa solitária
Charulata

Direção:
Satyajit Ray
Produção:
R. D. Bansal
R. D. Banshal & Co.
Índia — 1964
Elenco:
Soumitra Chatterjee, Madhabi Mukherjee, Shailen Mukherjee, Shyamal Ghoshal, Gitali Roy, Bholanath Koyal, Suku Mukherjee, Dilip Bose, Joydeb, Bankim Ghosh, Subrata Sensharma.



À direita, o diretor Satyajit Ray



Pode parecer supérfluo afirmar que Satyajit Ray — diretor com 37 filmes realizados de 1955 a 1991 — tem lugar garantido entre os mais renomados cineastas. Porém, o temor da redundância perde sentido frente à certeza de que é praticamente desconhecido, apesar de merecer mostras, retrospectivas e apresentações em festivais, principalmente na Europa. No Brasil, é pouco mencionado. A maior parte de sua obra jamais veio a público. Está restrita, quando muito, ao gueto das poucas cinematecas do país. Mesmo assim, tal afirmação deve ser feita com parcimônia. Se tenho a oportunidade de comentar um filme de Ray, isto se deve a um raro e feliz momento da televisão brasileira, em particular ao canal por assinatura Telecine Classic das operadoras NET e Sky. Hoje, sequer sombras restam dessa emissora. Sobrevive descaracterizada como Telecine Cult, prestando-se, com raríssimas exceções, à exibição de qualquer coisa. Em seu auge, dentre as muitas mostras programadas, o Telecine Classic presenteou o cinéfilo com um punhado de filmes de Satyajit Ray. Assim fui apresentado a esse cineasta, até então conhecido somente por textos. Comecei com A esposa solitária, considerado pelo próprio diretor como seu melhor trabalho. É realização exemplar. Nada lhe falta ou sobra.



Madhabi Mukherjee interpreta Charulata, a esposa do título


Satyajit Ray bebeu das fontes realistas para se fazer cineasta. Sua primeira influência veio do realismo poético francês, via Jean Renoir, para quem pesquisou locações quando o diretor de A regra do jogo (La règle du jeu, 1939) esteve na Índia para realizar O rio sagrado (The river, 1950). Sabendo de sua atração por cinema, Renoir o incentivou a levar às telas a pretendida adaptação da novela Pather Panchali, de Bibhutibhushan Bandyopadhyay. O filme veio à luz em 1955 e recebeu no Brasil o nome de A canção da estrada (Pather Panchali). É a primeira parte de A trilogia de Apu, completada por O invencível (Aparajito, 1956) e O mundo de Apu (Apu sansar, 1959). Mas o impulso decisivo à formação de Satyajit Ray como cineasta decorre do neorrealismo italiano, particularmente de Vittorio de Sica e Ladrões de bicicleta (Ladri di biciclette, 1948). Ele tomou conhecimento desse filme em 1950, durante temporada de três meses em Londres. Na ocasião assistiu a 98 filmes os mais diversos. John Ford é outra referência inspiradora[1]. O japonês Yasujiro Ozu também seria?


A esposa solitária é o décimo segundo título da filmografia de Ray. Apresentado no Festival de Berlim de 1965, foi laureado com o Urso de Prata atribuído ao Melhor Diretor. No mesmo certame mereceu premiação do Ofício Católico Internacional de Cinema (OCIC) e concorreu ao Urso de Ouro.


Charulata (Madhabi Mukherjee)


É uma obra surpreendentemente bela. Os planos, delicados e precisos nos detalhes, impressionam. Transmitem a sensação de que foram obtidos por uma câmera operando qual cinzel nas mãos do mais hábil e paciente escultor. A harmonia das cenas revela o rigor de uma direção de arte não meramente decorativa, a ponto de se esgotar nela mesma, mas que existe em função de personagens que se movimentam externando estados de alma variando da alegria à tristeza, impregnando os ambientes com os diversos componentes desse leque de sensações. As interpretações são verdadeiras. Os atores pulsam com sinceridade. Frente a eles, o espectador envolvido pela encenação lhes empresta solidariedade pela comunicação recebida da franqueza dos olhares e gestos, pelo prolongamento do que há de mais humano nos objetos decorativos, prontamente humanizados. Em meio a isso tudo avulta a aparentemente frágil Charulata, a esposa do título, em desempenho soberbo de Madhabi Mukherjee. Mas ela não se destaca sozinha. Sua afinada performance só é possível graças aos parceiros brilhantes que lhe pavimentaram o caminho: Soumitra Chatterjee, Shailen Mukherjee, Shyamal Ghoshal e Gitali Roy nos respectivos papeis de Amal, Bhupati Dutta, Umapada e Manda.


De solidão, confiança e fidelidade trata o filme, ambientado quase que integralmente no interior de uma residência em Calcutá no final do século XIX. A Índia, sob jugo britânico, vive uma fase de renascimento político e cultural. A questão nacional é discutida. Movimentos de emancipação entram em cena. Bhupati — intelectual idealista, honesto, socialmente bem posicionado e identificado com a independência do país — edita em inglês o jornal The Sentinel. O lema do periódico, com temática essencialmente política e ponto de vista ocidentalizado, é: “Dedicado à exposição da verdade”. A editoria e a gráfica funcionam no espaço inferior da casa, onde Bhupati passa a maior parte do dia. A moradia luxuosa e ampla, repleta de serviçais, ocupa a parte superior do imóvel. É onde a jovem, bela e perspicaz Charulata passa os dias envolvida pela rotina de uma existência desprovida de maiores significados. Apesar de demonstrar interesse por artes, principalmente literatura e poesia, não encontra correspondência e incentivos da parte de Bhupati, interessado somente em política e jornalismo.


Esposa Charulata (Madhabi Mukherjee) e  marido Bhupati (Shailen Mukherjee): tão perto e tão longe


Entretanto, Bhupati ama Charulata. Apesar do desinteresse pelos temas que chamam a atenção da esposa, reconhece o vazio e a solidão da vida na qual ela está mergulhada. Tenta atenuar esse estado de coisas. Convida o cunhado Umapada e esposa Manda a morar com eles. Enquanto aquele assume cargos de gerência e controle financeiro do The Sentinel, ela faz companhia a Charulata. Mas a situação anterior não se altera. Jogos de cartas e assuntos fúteis continuam a imperar no cotidiano. Mudanças ocorrem quando Amal, irmão mais novo de Bhupati, chega para uma temporada. É um jovem e romântico advogado. Recentemente formado, entrega-se à poesia e cultiva outras ambições literárias.



Charulata (Madhabi Mukherjee), ao centro, na companhia de Amal (Soumitra Chatterjee) e Manda (Gitali Roy)


As primeiras imagens de A esposa solitária mostram, em primeiro plano, mãos entregues ao bordado enquanto correm os créditos. A sequência é comentada musicalmente pelos acordes repetidos de uma cítara. A atmosfera é preenchida pela sensação de enfado, logo ampliada: Charulata abandona o artesanato, come, senta-se, chama a serviçal, apanha um livro, perambula pela casa, volta às estantes, passeia entre os móveis, canta, ouve sons da rua, toma um binóculo e observa pelas frestas das janelas o movimento dos transeuntes. A casa se assemelha à cela de uma prisão. Ela parece dispor de todo o tempo do mundo e conta somente com o vazio para preenchê-lo. Bhupati, com toda a atenção voltada à leitura de um livro, passa ao lado sem sequer percebê-la. Assemelha-se mais ao estereótipo do britânico típico, cheio de si. A distância entre marido e esposa é comentada pelas imagens em que ela o observa com o binóculo, como a aproximá-lo, mesmo estando ambos a tão poucos passos um do outro.



Charulata (Madhabi Mukherjee) na observação do mundo no qual vive


A visita de Amal se revela providencial. É convencido por Bhupati a despertar o interesse prático de Charulata pela literatura. Ela e o cunhado se desafiam. Escrevem e publicam. A relação, demasiado próxima, acende a chama da paixão nunca consumada. Charulata comunica tudo com a expressividade do olhar potencializada por canções. Encanta-se com o espírito livre e espontâneo do cunhado. Destacam-se as cenas do balanço e o instante envolvente e belíssimo em que Amal canta[2].




Acima e abaixo: Amal (Soumitra Chatterjee) e Charulata (Madhabi Mukherjee)


Arma-se uma torrente de situações levadas ao conhecimento de Bhupati com o amargo sabor da traição. Numa recepção oferecida aos amigos, surpreende-se com a revelação de que Charulata publicara alguns escritos. Depois, desencanta-se com a perda de confiança em Umapada, que se apropriou de fundos da empresa. Bhupati, tão inocentemente idealista e honesto, fraqueja com as decepções. Nem parece o jornalista político tão seguro de si. Externando o desapontamento, discursa sobre traição e o descrédito das pessoas. Amal tudo ouve. Percebe o risco de também trair o irmão devido ao seu envolvimento crescente com Charulata. Silenciosamente, resolve partir. Ela não se contém com a ausência do cunhado. Chora. Decepcionados, cada qual por seu motivo, Bhupati e esposa viajam para um período de descanso. Na ocasião, reaproximam-se e discutem a diversificação das matérias do jornal. Charulata terá espaço no periódico.


Amal, no entanto, mais que lembrança viva é uma ferida aberta. Diante das notícias enviadas pelo cunhado, Charulata cai em prantos, clamando por ele. Bhupati testemunha a cena e se retira. Ela percebe a presença do marido e se refaz para recebê-lo em acordo à situação anterior aos abalos na relação. Após breve ausência, o decepcionado Bhupati retorna. Charulata lhe estende a mão. Ele corresponde. Estão quase se tocando quando o filme termina em imagens congeladas. De outra forma não poderia ser. A incerteza que as cenas fixas do epílogo deixam no espectador também é parte das novas sensações vivenciadas por marido e esposa. Certamente, nada mais será o mesmo. O clima de melancolia, tão presente em Charulata, envolve todo o final. A rotina de antes retomará o seu lugar? E da parte dos anseios ingênuos de Bhupati — jornalista político tão idealista e compromissado com a verdade —, a sua Índia superará séculos de tradição, que praticamente a condenaram ao imobilismo, com uma possível independência? Até que ponto Charulata se identifica com o próprio país em movimento?



Charulata (Madhabi Mukherjee)


Havia deixado uma dúvida no ar: Yasujiro Ozu teria influência no cinema de Satyajit Ray? A resposta é positiva, pelo menos com respeito a A esposa solitária. Pode-se dizer que, neste filme, Ray, como o colega japonês, também discute os encantos e desencantos da rotina. A diferença é dada pela maneira de filmar. A câmera se movimenta extraordinariamente bem em Satyajit Ray, ao passo que enquadra com o rigor da imobilidade no cinema de Ozu.






Roteiro: Satyajit Ray, com base em  Nashta neer, conto de Rabindranath Tagore. Música: Satyajit Ray. Direção de fotografia (preto e branco): Subrata Mitra, Satyajit Ray. Montagem: Dulal Dutta. Desenho de produção: Bansi Chandragupta. Primeiro assistente de direção: Amiya Sanyal. Som: Atul Chatterjee, Nripen Paul, Sujit Sarkar. Cantor em playback: Kishore Kumar. Tempo de exibição: 117 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 2012)




[1] TULARD, Jean. Dicionário de cinema. Porto Alegra: L&PM, 1996. p. 527.
[2] Dublado pela voz em playback de Kishore Kumar.

4 comentários:

  1. Eugenio,

    Interessantíssima a leitura desta fita, seu bojo, suas adjacências, sua estética e, de um modo geral o filme como um todo.

    Não conheço nada do cinema Indiano, mas tenho lido que é um dos centros cinematográficos mais pungentes de todo o mundo, com filmes como os que cita e alguns outros que já andei lendo.

    Porém, é um cinema que dificilmente chega a nós.

    Nos meus tempos de moleque, lá pelos meus 14/15 anos, ainda podiamos ver nas telas de SSA filmes de outros centros, senão apenas os dos EUA e os Nacionais. Passava-se muitas fitas francesas, italianas, russas, mexicanas e até Indiadas, quando vi o belo Fantasia Oriental/53.

    Porém, hoje tudo está tudo muito voltado apenas para o cinema Americano, fazendo os amantes do bom cinema se ver impedido de ver filmes de outros centros, como o forte cinema Indiano.

    Achei, no seu descrever, um filme de uma pureza e simplicidade e beleza impar.
    A maneira de como este diretor veio a realizar A Esposa Solitária é de uma maestria onde somente em alguns filmes japoneses se ver.

    É como se estivesse vendo algo como se a câmera de Walter Hugo Khoury deslizando lenta por seus personagens, deixando atmosferas no ar com seus movimentos e nos dando uma sensação de estarmos postado diante da pura realidade da vida.

    Amei ler sobre esta fita, seu conteudo, simples mas bem desbravatado, da desatenção aos desejos e anseios da esposa, como sua solidão e a falta constante da percepção da mesma, do instante de reflexão do marido sobre o modo de vida da mesma e a vinda de parentes seus para lhe fazer companhia. Da paixão impossivel e da não concretização do ato entre a belissima atriz e o cunhado, assim como de todos demais conteúdos que comprimem este filme leve e presumivelmente delicioso de ver.

    Mais uma potente postagem numa narrativa linear, segura e como se mostrando ao vivo o filme narrado.

    jurandir_lima@bol.com.br

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    1. Jurandir;

      Também conheço muito pouco do cinema indiano. Mas posso afirmar que conheço quase tudo do cineasta Satyajit Ray. É um valor raro. Merece ser descoberto e, acima de tudo, apreciado com a maior atenção. Muitas coisas dele estão disponíveis para download nos programas de compartilhamento da Internet. Procure ver, acima de tudo, "A canção da estrada", "O invencível" e "O mundo de Apu". Esses títulos fazem parte da famosa "Trilogia de Apu". Ao todo, Ray dirigiu 37 filmes entre 1955 a 1991. Faleceu aos 70 anos, em 23 de abril de 1992. Está entre os diretores mais premiados de todo o cinema.

      Neste link você poderá tomar conhecimento de todos os filmes que ele dirigiu além das demais coisas que fez no cinema: http://www.imdb.com/name/nm0006249/?ref_=fn_al_nm_1#director


      Neste outro, terá ciência dos prêmios aos quais foi indicado e de outros que recebeu: http://www.imdb.com/name/nm0006249/awards?ref_=nm_ql_2

      Abraços.

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  2. Wuauu...Que bella forma de transmitir la emoción de la película...Siento un gran deseo de perderme en esas escenas tan bellas y profundas... traspasar la pantalla y llegar al corazón no es sencillo ,mucho menos llegar al alma y por lo que leo en tu reseña es una película que llega al alma,una gran experiencia digna de ver...ME HA GUSTADO MUCHO Eugenio...Me gusta perderme e ir al cine contigo entre tus letras...¡Te mando abrazos y dulces,dulcicimos besos...!!!

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    1. Pues es esto. Es una película que toca el fondo del alma de los personajes como de los espectadores. Sin olvidar que es formalmente belíssima también, en sus encuadramientos y movimientos que parecen tán bien calculados. Vale la pena conocer toda la obra para el cine del diretor Satyajit Ray, Maria Del Socorro Duarte. Besos y gracias.

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