domingo, 13 de abril de 2014

DELMER DAVES COMPROMETE A REPUTAÇÃO AO PROLONGAR 'O MANTO SAGRADO'

Satisfeita com o retorno de bilheteria conseguido por O manto sagrado (The robe, 1953), de Henry Koster — primeiro filme em Cinemascope —, a 20th Century-Fox resolveu lhe dar sequência e permanecer no formato da tela larga. O resultado é Demétrius, o gladiador (Demetrius and the gladiators, 1954). O personagem do título (Victor Mature) é, por força das circunstâncias, envolvido nas intrigas palacianas do louco imperador Calígula (Jay Robinson) e enredado pelo poder de sedução da caprichosa e devassa Messalina (Susan Hayward). Aprisionado, transformado em gladiador e em comandante da guarda pretoriana, perde e recupera a fé no cristianismo ao longo do processo. A realização de Delmer Daves é ligeiramente superior, em termos de dinamismo cinematográfico, ao letárgico O manto sagrado. Porém, concretamente, isso quase nada significa. No quesito atuações pouco se esperava do limitado e rijo Victor Mature — o Sylvester Stallone da época. Mas também é dureza ver as inacreditáveis caras, bocas e poses de Susan Hayward. Para a sorte do cinéfilo, Delmer Daves reencontraria a melhor forma com uma sucessão de westerns memoráveis. A apreciação é de 1976.






Demétrius, o gladiador
Demetrius and the gladiators

Direção:
Delmer Daves
Produção:
Frank Ross
20th Century-Fox
EUA — 1954
Elenco:
Victor Mature, Susan Hayward, Michael Rennie, Debra Paget, Anne Bancroft, Jay Robinson, Richard Egan, Ernest Borgnine, Barry Jones, William Marshall, Charles Evans e os não creditados Everett Glass, Carmen De Lavallade, John Cliff, Woody Strode, Douglas Brooks, Harry Cording, Karl “Killer” Davis, George Eldredge, Fred Graham, Barbara James, Dayton Lummis, Paul Richards, Jean Simmons, Richard Burton, Willetta Smith, Jeff York, Michael Conrad, Lyle Fox, Ed Fury, Fred Graham, Frank Hagney, Selmer Jackson, Roy Jenson, Russell Johnson, Kenner G. Kemp, Allen Kramer, Paul Kruger, David Leonard, Paul Newlan, Julie Newmar, Gil Perkins, Nosher Powell, Dick Sands, Mickey Simpson, Ray Spiker, Paul Stader, Bert Stevens, Gisele Verlaine, Jim Winkler.



O diretor Delmer Daves com a atriz Susan Hayward nos bastidores da realização



Em 1953 a 20th. Century-Fox lança o Cinemascope em O manto sagrado (The robe), de Henry Koster. O sucesso de bilheteria é imediato. O melhor, então, é permanecer no formato "tela grande-retangular" e continuar especulando (e faturando) sobre o destino do manto supostamente usado por Jesus Cristo a caminho da crucificação. Um ano depois, com O manto sagrado ainda fresco na memória do público, surge a sequência Demétrius, o gladiador.


Da equipe original Demétrius, o gladiador mantém o produtor Frank Ross e o roteirista Philip Dunne. Recicla os temas musicais de Alfred Newman, os figurinos de Charles Le Maire, os cenários de George W. Davis/Lyle R. Wheeler e a decoração de Walter M. Scott/Paul S. Fox. Conserva os profissionais de maquiagem (Ben Nye), som (Roger Heman, agora parceiro de Arthur L. Kirbach) e efeitos fotográficos (Ray Kellog)[1]. Os atores Victor Mature, Jay Robinson e Michael Rennie permanecem, respectivamente, nos papéis de Demétrius, Calígula e Pedro.


O manto sagrado e Demétrius, o gladiador são filmes caros da minha infância. Assisti-los era programa familiar obrigatório, mais para a mãe que para o pai. Ela aproveitava a oportunidade para reler o massudo romance de Lloyd C. Douglas[2]  suporte às duas produções  e destacar para os filhos as passagens mais edificantes. Ele acompanhava o filme com as sobrancelhas empinadas, sempre desconfiado e emitindo observações ferinas. Quanto a mim, apoiado no pragmatismo e imediatismo típicos das crianças, preferia me deleitar com os uniformes dos soldados romanos, os portentosos cenários, os combates e as intrigas palacianas. Claro, como qualquer garoto da época também era tocado pela suposta carga de abnegação e fervor religioso que os heróis, candidatos a mártires da fé, pareciam transmitir com tanta sinceridade.


O apóstolo Pedro (Michael Rennie) e Demétrius (Victor Mature) intermediados pelo manto de Cristo

Pedro (Michael Rennie), o "grande pescador"


Mas as crianças crescem, inclusive mentalmente. Muito do que apreciávamos na meninice passa pelo impiedoso crivo da reavaliação crítica, processo que, à época, geralmente não tocava as mães. Estas, na maioria das vezes condicionadas por uma educação que as limitava aos valores caseiros, permaneciam as mesmas, quase todas. Não é à toa que “mãe é mãe”, como se diz por aí. Evidentemente, o crescimento não significa negar todas as imagens que víamos com bons olhos durante a infância. Algumas continuam a nos encantar. Com outras, entretanto, ficamos mais severos. Essas, ao contrário daquelas, revelam-se pueris, quando não totalmente indigentes. Hoje, a revisão do então empolgante O manto sagrado me é motivo de constrangimento. Sinto o mesmo diante de Demétrius, o gladiador.

  
Demétrius, o gladiador (atualmente mais conhecido como Demétrius e os gladiadores) tem por início o epílogo de O manto sagrado. As últimas imagens desse filme lhe servem de prólogo. Convertidos ao cristianismo, o tribuno Marcellus Gallio (Richard Burton) e sua amada Diana (Jean Simmons) são condenados à morte por Calígula, o mentalmente avariado César de plantão. A caminho da execução, confiam o manto de Jesus à guarda de Pedro — “o grande pescador” — por intermédio de Demétrius. Seguem-se os créditos de abertura. Logo tomam lugar as imagens propriamente ditas da realização de Delmer Daves.


Roma, bairro periférico: assim que Pedro parte em missão apostólica, tropas romanas chegam em busca do bem ocultado traje. Calígula ficara intrigado com o destemor de Marcellus e Diana diante da morte. A relíquia, acredita, contém feitiço capaz de torná-lo mais poderoso e próximo dos deuses. Considera "bobagem" a explicação do tio Claudius (Jones)  marido da despudorada, jovial e fogosa Messalina (Hayward), sacerdotisa de Ísis: “Eles demonstravam coragem porque eram cristãos; acreditavam no futuro, na vida eterna”.


Claudius (Barry Jones) e Calígula (Jay Robinson)


O temor da jovem e frágil Lúcia (Paget) diante dos soldados gera desconfiança e provoca a intervenção de Demétrius. É preso por não conseguir provar a condição de escravo emancipado. Seu destino é a escola de gladiadores de Claudius, onde é confiado ao instrutor Strabo (Borgnine). Conhece os ases da arena Glycon (Marshall), Dardanius (Egan), Varus (Cliff) e Macro (Davis). Cristão, Demétrius tenta a fuga. Está moralmente impedido de incorporar o ethos do gladiador: lutar e matar para não morrer. Porém, é escolhido por Messalina para participar do espetáculo em honra ao aniversário de Calígula. Ela quer ver se o cristianismo o deixará impassível diante da ameaça de perder a vida.


Ernest Borgnine como Strabo, instrutor de gladiadores

Claudius (Barry Jones), Calígula (Jay Robinson) e Messalina (Susan Hayward)

  
Demétrius vence acidentalmente a contenda com o bom e justo Glycon. Porém argumenta que não pode matá-lo. Calígula aceita a justificativa, mas ordena a prisão do oponente e sua posterior degola. Messalina, a esta altura interessada em Demétrius, lança-o ao combate com quatro tigres. Com um misto de pavor e prazer assiste à vitória do gladiador sobre os felinos. Aclamado mas gravemente ferido, recebe cuidados pessoais da personagem de Hayward. Tentando seduzi-lo, toma-o como guarda-costas. Devido à fé, Demétrius resiste às investidas da devassa, valendo-se dos Dez Mandamentos e do interdito de cobiçar a mulher do próximo. Para Messalina tais regras são "antinaturais”, conforme alega. Convicto, o cristão responde: “Não há lei que proíba a mulher de dizer tolices”. Por causa da resistência e da insolência é devolvido à escola de gladiadores.


Lúcia comete a imprudência de visitá-lo. O gesto provoca o ciúme de Messalina. Demétrius é punido. Desamparada, a jovem é dominada e assediada por Dardanius. Impedido de intervir, o personagem de Mature implora pela ajuda de Deus. Ato contínuo, Diana perde os sentidos. Aparentemente está morta. Transtornado, Demétrius perde a fé. Transforma-se em máquina de matar. Na arena, liquida Dardanius e todos os gladiadores que zombaram de Lúcia. A plateia, atônita, jamais vira algo parecido. Aclamado, ganha a liberdade, o título de tribuno e um posto de comando na guarda pretoriana. Cede aos desejos de Messalina e se entrega à luxúria. Insulta Pedro. Glycon  libertado graças ao prestígio de Demétrius e também incorporado aos pretorianos  recrimina a dissolução moral do companheiro. É igualmente destratado.


Lúcia (Debra Paget) e Demétrius (Victor Mature)


Calígula — enciumado com a popularidade do novo tribuno e frustrado por não estar na posse do manto — enlouquece cada vez mais. Comete imprudências que o levam a perder prestígio junto à guarda pretoriana. Messalina conspira para derrubá-lo, mas também está insatisfeita com o amante. Convence o imperador a utilizá-lo para pressionar Pedro e conseguir o traje.


Ao cumprir a ordem, Demétrius é surpreendido ao reencontrar Lúcia, viva mas em transe. Compreende que Deus a protegeu dessa forma. Arrependido e aos prantos, recupera a fé. Lúcia recobra a consciência. Para evitar a ira de Calígula contra os cristãos, Demétrius leva-lhe o manto com o consentimento de Pedro.


Na arena, Messalina (Susan Hayward) testemunha a provação de Demétrius (Victor Mature)


Como o traje não tem poderes mágicos, Calígula toma-o por falso. Julgando-se enganado, devolve Demétrius à condição de gladiador. Terá que lutar com o temível Macron, mas recusa. Quando estava para ser executado é salvo pela revolta da guarda pretoriana. Calígula é morto. O tolerante Claudius é aclamado César. Consente na liberdade religiosa dos cristãos, desde que não atentem contra o Estado. Messalina se arrepende publicamente da vida largada à devassidão e assume seu lugar ao lado do marido.


Muitos críticos consideram Demétrius, o gladiador superior a O manto sagrado. De certa forma, a realização de Delmer Daves é melhor ritmada, mais dinâmica e bem humorada. Não se perde em cenas e sequências excessivamente contemplativas. Ao contrário do seu antecessor, contém doses adequadas — tendo em vista a época da produção — de sensualidade, mundanidade e vigorosas passagens na arena. A excessiva carolice que travava O manto sagrado ficou de fora. Mas tais qualidades são apenas aparentes. Não salvam o conjunto da mediocridade. Por outro lado, não faz muita diferença afirmar a superioridade de um filme ruim em relação a outro posicionado no mesmo patamar.


Demétrius, o gladiador é barra pesadíssima, duro de suportar. Delmer Daves, provavelmente, estava tentado pelo Diabo quando aceitou a incumbência de realizá-lo. Que pecado cometeu! Arranhou a boa reputação conseguida com Prisioneiro do passado (Dark passage, 1947) e Flechas de fogo (Broken arrow, 1950). Mas Deus é grande. Perdoou-o. Devolveu-o à posição de realizador competente e digno. Depois da suprema provação com Demétrius, o gladiador, dirigiu sólidos westerns como Rajadas de ódio (Drum beat, 1955), Ao despertar da paixão (Jubal, 1956), A última carroça (The last wagon, 1956), Galante e sanguinário (3.10 to Yuma, 1957), Como nasce um bravo (Cowboy, 1958) e A árvore dos enforcados (The hanging three, 1959).


Demétrius (Victor Mature) e Messalina (Susan Hayward)


Quanto às interpretações, ninguém esperava consistência de Victor Mature. Não é sempre que o ator, limitadíssimo, teve a sorte de encontrar alguém capaz de governá-lo, como John Ford em Paixão dos fortes (My darling Clementine, 1946), Henry Hathaway em O beijo da morte (Kiss of death, 1947) e Anthony Mann em O tirano da fronteira (The last frontier, 1955). Sofrível em O manto sagrado, a performance de Mature piora consideravelmente quando é alçado à condição de protagonista em Demétrius, o gladiador.


Mas o que salta aos olhos é o incrível desempenho de Susan Hayward. Diante de Messalina só podemos pedir que “Deus nos livre”, não por causa da má fama da personagem, mas devido à ruindade da atriz na pele da devassa esposa de Claudius. É deprimente vê-la lançando terríveis olhares carregados de lascívia; contorcendo-se na plateia diante de Demétrius na arena; estirada num divã em pretensa pose erótica; fazendo o edificante e ridículo mea culpa do final. Nessa época a atriz estava se especializando em papéis deprimentes. Fez a partner do conquistador mongol vivido por John Wayne no inacreditável Sangue de bárbaros (The conqueror, 1954), de Dick Powell; e a Betsabá de David e Betsabá (David and Bethsheba, 1951), de Henry King. Em Demétrius, o gladiador e nesses filmes, Hayward em nada se parece à atriz cinco vezes indicada ao Oscar[3].


Messalina (Susan Hayward) e Calígula (Jay Robinson)


Desta vez Jay Robinson tem maiores oportunidades para desmunhecar na pele do afetado e megalômano Calígula. Seus achaques são a melhor coisa do filme.


É divertido o comentário de Claudius para Demétrius: “Se sobreviveu aos nossos médicos, sobreviverá a tudo”.





Roteiro: Phillip Dunne, baseado nos personagens criados por Lloyd C. Douglas para o romance The robe. Direção de fotografia (Technicolor, Cinemascope): Milton R. Krasner. Montagem: Dorothy B. Spencer, Robert Fritch. Música: Franz Waxman; temas de Alfred Newman para O manto sagrado (The robe, 1954), de Henry Koster. Direção de coro: Ken Darby. Orquestração: Edward B. Powell. Coreografia: Stephen Papich. Maquiagem: Ben Nye. Som: Arthur L. Kirbach, Roger Heman. Assistente de direção: William Eckhardt. Consultor de Technicolor: Leonard Doss. Direção de arte: George W. Davis, Lyle R. Wheeler. Decoração: Walter M. Scott, Paul S. Fox. Efeitos fotográficos especiais: Ray Kellogg. Direção de guarda-roupa: Charles Le Maire. Gerente de produção (não creditado): Joseph C. Behm. Edição de som (não creditada): Ed Harris, Bert Ross. Dubles (não creditados): George Bruggeman, Fred Carson (para Victor Mature), Fred Graham, Jean Heremans, Nosher Powell, Ray Spiker, Paul Stader. Fotografia de cena (não creditada): Eugene Kornman, James Mitchell. Assistente de montagem (não creditado): Lyman Hallowell. Músico (não creditado): Urban Thielmann (piano). Direção musical (não creditada): Franz Waxman. Direção de diálogos (não creditada): Herschel Daugherty. Consultoria técnica (não creditada): Jean Heremans. Lentes de Cinemascope: Bausch & Lomb. Sistema de mixagem de som: Stereo em 4 canais pela Western Electric Recording. Tempo de exibição: 101 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1976)



[1] Em O manto sagrado Ray Kellogg concebeu os efeitos especiais em parceria com James B. Gordon; Chales Le Maire planejou o guarda-roupa associado a Emile Santiago; Philip Dunne coescreveu o roteiro com Albert Maltz; e, Roger Heman manejou a aparelhagem de som auxiliado por Bernard Freericks.
[2] The robe, vertido no Brasil para O manto sagrado: o manto de Cristo — a odisseia de um legionário romano. São Paulo: Universitária, 1944.
[3] Susan Hayward foi indicada por Desespero: drama de uma mulher (Smash-up: the story of a woman, 1946), de Stuart Heisler; Meu maior amor (My Foolish heart, 1949), de Mark Robson; Meu coração canta (With a song in my heart, 1952), de Walter Lang; Eu chorarei amanhã (I’ll cry tomorrow, 1955), de Daniel Mann; e Quero viver (I want alive, 1958), de Robert Wise, pelo qual ganhou a estatueta. 

2 comentários:

  1. Os filmes em epígrafe foram sucessos na época, mormente pelo novo processo de filmagens, no caso o Cinemascope; sendo certo que O Manto Sagrado foi o primeiro filmado nesse novo processo. Em São Paulo, inaugurou a tela gigantesca do Cine República...
    Como você afirmou também concordo que Daves foi melhor cineasta nos grande WESTERNS citados.

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    1. Mesmo considerando "O manto sagrado" e "Demétrius, o gladiador" com todas as suas limitações, esteja certo de que perderia meu tempo revendo-os, diante de qualquer oportunidade, Eddie Lancaster. Os sabores da infância jamais são apagados, felizmente. No entanto, é uma pena que os grandes westerns de Delmer Daves não sejam reapresentados com mais frequência.

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