domingo, 23 de fevereiro de 2014

UMA CANÇÃO MÍTICA LANÇA O INDIVÍDUO NAS ENGRENAGENS DO PROCESSO HISTÓRICO

Lili Marlene (Lili Marleen, 1981) conquistou de imediato minha adesão entusiasmada quando o vi, há vinte anos. Indo contra a corrente, considerei-o a melhor realização de Rainer Werner Fassbinder. Não sei se a avaliação ainda procede. Mas permanece fascinante esse trabalho por muitos considerado o equivalente alemão de Cabaret (Cabaret, 1972), de Bob Fosse. Fassbinder revê a Alemanha, o Nazismo e a Segunda Guerra Mundial pelo prisma da mítica canção do título e da trajetória de Lale 'Willie' Anderson (Hanna Schygulla), cantora medíocre elevada à condição de preferida do Reich. A composição e a personagem, enquadradas contra o pano de fundo do momento, permitem ao realizador o extravasamento de uma obsessão: expor as limitações do indivíduo diante das engrenagens da História, principalmente nos críticos momentos de mudanças, quando as contradições e a força das estruturas se revelam mais evidentes. 






Lili Marlene
Lili Marleen

Direção:
Rainer Werner Fassbinder
Produção:
Enzo Peri, Luggi Waldleitner
Bayerischer Rundfunk (BR), CIP Filmproduktion GmbH, Rialto Film, Roxy Films
República Federal da Alemanha — 1981
Elenco:
Hanna Schygulla, Giancarlo Giannini, Mel Ferrer, Karl-Heinz von Hasse, Erik Schumann, Hark Bohm, Gottfried John, Karin Baal, Christine Kaufmann, Udo Kier, Roger Fritz, Rainer Will, Raul Gimenez, Barbara Valentin, Helen Vita, Elizabeth Volkmann, Lilo Pempeit, Willy Harlander, Adrian Hoven, Traute Hoess, Brigitte Mira, Herb Andress, Michael McLernon, Jürgen Dräeger, Rudolf Lenz, Toni Netzle, Harry Baer, Daniel Schmid, Peter Chatel, Volker Eckstein, Helmut Petigk, Werner Asam, Dirk Galuba, Sonja Neudorfer, Irm Hermann, Herbert Steinmetz, Alexander Allerson, Christine de Loupe e os não creditados Adam & Eve, Franz Buchrieser, Rainer Werner Fassbinder, Michele Oliveri.



O diretor Rainer Werner Fassbinder



Por meio de uma composição musical, Fassbinder aborda a guerra, a Alemanha sob o Nazismo e a fragilidade do indivíduo frente à História. O ponto de partida é Vivendo com uma canção (Der Himmel hat viele Farben), autobiografia em forma de novela de Lale Anderson (1913-1972) — relato falseado, repleto de autocomiseração, segundo os entendidos. O realizador — em seu jeito muito pessoal de fazer cinema e interpretar os processos históricos — transforma Lili Marlene na versão alemã de Cabaret (Cabaret, 1972), de Bob Fosse. Anderson (Schygulla), também conhecida como Willie, é cantora de segunda categoria que ganha a vida em casas noturnas de idêntica extração. Alemã de origem, é encontrada em Zurich, Suíça, logo que o filme começa, entregue à sua arte e enamorada de Robert Mendelsson (Giannini), músico descendente de abastada família judia. O romance não conta com o beneplácito de David Mendelsson (Ferrer), pai do rapaz. O ano é 1938, antevéspera da Segunda Guerra Mundial.



Giancarlo Giannini no papel de Robert Mendelsson

Lale Anderson (Hanna Schygulla) e Robert Mendelsson (Giancarlo Giannini)


Robert representa o pai em perigosas missões na Alemanha. O velho cuida da evasão de judeus do país, não por sentimento humanitário, mas pelo ouro que consegue em troca. Numa dessas operações Robert se faz acompanhar de Willie. Porém, quando voltavam, a polícia da fronteira — após interferências de David Mendelsson junto ao corpo diplomático — impede a entrada da moça. Obrigada a permanecer na Alemanha e a ganhar a vida, Willie consegue ajuda de Henkel (von Hasse), oficial nazista que conheceu na Suíça. Ela se tornará a cantora do Reich. Enquanto isso, Robert — ciente das tramoias do pai — se entrega a infrutíferas negociações para tê-la de volta. Mas também é manipulado e enquadrado às determinações familiares. Contrairá matrimônio com uma judia de fina estirpe. Por outro lado, as circunstâncias históricas vão se armando à revelia das vontades e racionalidades individuais.


Lale "Willie" Anderson (Hanna Schygulla), cantora medíocre convertida em preferida do Reich

  
Na Alemanha, apesar do apoio oficial, Willie não supera o patamar da mediocridade. Mas tem a sorte de gravar Lili Marlene, antiga canção escrita em 1916 por Hans Leip — cabo do exército alemão apaixonado pelas moças Lili e Marlene — e musicada por Norbert Schultze. A composição se tornou um hit dentro e fora da Alemanha. Foi imortalizada, um pouco mais tarde, pela voz de rouca sensualidade de Marlene Dietrich.


Quando a guerra estoura, Willie está praticamente condenada ao ostracismo. Mas se erguerá de forma consagradora, graças aos custos humanos do conflito. Em Belgrado, sob ocupação alemã, os novos diretores de uma rádio local buscam, no acervo da emissora, canções capazes de levantar o moral dos soldados nas frentes de combate. Descobrem a gravação de Willie para Lili Marlene. Seus versos — carregados de sentimento, sensualidade e lentamente ritmados — tratam de amores deixados para trás. Executada e transmitida para todos os fronts, toca fundo o coração dos combatentes. Apesar da oposição de Goebbels — o Ministro da Propaganda do Reich detestava Lale Anderson e a canção, por ele consideradas símbolos de decadência, mortificação, mediocridade e perversão moral —, Hitler se manifesta favorável. Graças ao Fürher, Willie e Lili Marlene se tornam sucessos de público.


Lale Anderson (Hanna Schygulla) e a canção Lili Marlene expressam as angústias do combatente na solidão e desespero do front

  
A artista incensada cantou para Hitler em pessoa e mereceu apresentações grandiosas encenadas com toda a pompa Nacional-Socialista no Palácio dos Esportes da capital alemã. A mística em torno da canção aumenta — inclusive entre os aliados — desde que passa a ser pontualmente executada, às 9 horas e 57 minutos, pela Rádio de Berlim. Enquanto isso, ainda tentando resgatar Willie, o desinformado Robert atravessa a fronteira com identidade falsa. Descoberto, é aprisionado. Submetido a torturas auditivas, é obrigado a ouvir, indefinidamente, um disco danificado da gravação de Lili Marlene na voz de Willie. Esta, ciente da situação do amado, tenta ajudá-lo. Começa a cair em desgraça. Sua situação piora quando consegue, a pedido dos amigos de Robert, imagens dos campos de concentração, algumas contrabandeadas para a Suíça. É presa. Enquanto isso, David Mendelsson negocia a libertação do filho. Willie, submetida a maus-tratos, é acusada de traição. Uma campanha deflagrada pelos aliados revela aos fãs alemães, civis e militares, sua crítica situação. Temerosos com as reações que poderiam pipocar internamente e nas fileiras, as autoridades promovem publicamente a libertação da cantora. A guerra termina. Com isso, os tempos também mudam, tornando-se implacáveis às recordações de enamorados e nostálgicos.



Lale "Willie" Anderson (Hanna Schygulla)


Fassbinder espantou seus costumeiros admiradores com Lili Marlene. Quem esperava uma história soturna, carregada pelo espírito da trágica inevitabilidade, ficou pasmo com o retrato da Alemanha e do Nazismo, que expunha a tragédia pessoal germânica e evitava, criticamente, a simples vitimização dos judeus. Os críticos, em sua maioria, reagiram desfavoravelmente. Bom, azar deles e daqueles que os endossaram. Parece que só percebem os processos sociais e suas interpretações a partir de um determinado viés, cristalizado como único. Ora, o fato de se ser contra o Nazismo  Fassbinder foi acusado de glamourizá-lo!  não impede ao cineasta o reconhecimento da tragédia que se abateu sobre o povo alemão. Mesmo com os judeus sofrendo de modo incontestável os efeitos do extermínio em massa — indubitável crime contra a humanidade a ser constantemente lembrado e lamentado —, nada justifica que sejam para sempre observados pelos míticos prismas do "judeu bonzinho" e de vítimas passivas e indefesas, qualidades que não podem ser imputadas a coletivo social algum.


O que Fassbinder pretendeu, e poucos se deram ao trabalho de compreender, foi mostrar os indivíduos submetidos a engrenagens que influenciam terminantemente as suas vidas em momentos críticos da História. O que se vê são personalidades ambíguas, ao mesmo tempo culpadas e inocentes, conscientes e inconscientes dos destinos que tomam mas não controlam. Robert amava Willie, mas se submeteu à vontade paterna. Willie amava Robert, mas foi envolvida pelo sucesso que a máquina de promoção nazista soube manipular em proveito próprio. Paparicada pelo poder e adorando os favores e benefícios recebidos, Willie se torna força auxiliar da resistência, mesmo sem saber. Ambiguidade maior, impossível! As éticas, tanto as do coletivo familiar judaico como as do totalitarismo autoritário, aparecem como idênticas. Como se vê, ao contrário do que perceberam críticos obtusos e aqueles que cegamente os endossaram, Fassbinder permaneceu fiel ao seu universo de dissecador de estruturas: família, Alemanha e Nazismo. São instâncias manipuladoras e destruidoras, percebidas em Lili Marlene naquilo que apresentam de humanamente terno e também de cruelmente sórdido.


Lale "Willie" Anderson (Hanna Schygulla) em sua efêmera glória

  
Lili Marlene, ouso dizer, é o melhor filme de Fassbinder. É uma história bela e comovente pelo que apresenta de sentimento e generosidade, mas também de manipulação e cinismo. Sem medir esforços, o diretor empreendeu meticuloso trabalho de reconstituição. São primorosas e arrepiantes as cenas que descortinam o monumental Palácio dos Esportes de Berlim, ornado de símbolos do poder e brilhando na luz da efêmera glória de um império programado para durar mil anos. Milhares de extras foram arregimentados como soldados da infantaria alemã e ouvintes de Lale "Willie" Anderson, a cantora sem talento convertida de um momento para outro em diva das altas patentes alemãs e musa dos soldados entrincheirados, sejam alemães ou aliados. A ambiguidade que perpassa o filme se aplica também à canção. Se ela encanta e vivifica o coração dos infantes do Reich, também tem valor estratégico para os próprios aliados: utilizam-na como chamariz ao combalido combatente germânico, atraindo-o para a morte, o que parece confirmar alguns temores de Goebbles sobre as qualidades da composição.



Lale "Willie" Anderson (Hanna Schygulla) entre os soldados alemães


O poder de encenação de Fassbinder não se preocupa apenas com a simples descrição do período enfocado. O diretor procura também mostrar como essa época percebia a si mesma. Assim, o filme é quase uma paródia do cinema alemão de então. Toma de empréstimo muitos elementos da estética do cinema musical da produtora Universum Film Aktien Gesellschaf (UFA), principalmente nas sequências iniciais do cabaré, em Zurich, e no instante em que um soldado extravasa toda a emoção ao entregar para o apresentador da Rádio de Belgrado a gravação de Lili Marlene. São tocantes os planos dos semblantes dos soldados no front, embevecidos com os versos e acordes da composição.



Robert Mendelsson (Giancarlo Giannini) e Lale Anderson (Hanna Schygulla)


Como acontece em significativa parte da obra de Fassbinder, uma mulher detém o comando do espetáculo. Willie é o centro forte da história, como o foram Petra von Kant (Margit Carstensen) em As lágrimas amargas de Petra von Kant (Die bitteren Tränen der Petra von Kant, 1972); Veronika Voss (Rosel Zech) em O desespero de Veronika Voss (Die sehnsucht der Veronika Voss, 1982), Lola (Barbara Sukowa) em Lola (Lola, 1981) e Maria Braun (Hanna Schygulla) em O casamento de Maria Braun (Die ehe der Maria Braun, 1979). Diante delas os homens parecem revelar toda a sua fragilidade e, mesmo, inutilidade.




Roteiro: Manfred Purzer, associado a Joshua Sinclair e Rainer Werner Fassbinder, baseados na autobiografia Der Himmel hat viele Farben, de Lale Anderson. Diálogos adicionais: Rainer Werner Fassbinder. Diálogos alemães: Werner Uschkurat. Direção de fotografia (Fujicolor): Xaver Schwarzenberger, Michael Ballhaus (não creditado). Desenho de produção: Rolf Zehetbauer. Música e arranjos: Peer Raben. Montagem: Rainer Werner Fassbinder (sob o pseudônimo de Franz Walsch), Juliane Lorenz. Gerente de produção: Konstantin Thoeren. Direção de arte: Herbert Strabel. Figurinos: Barbara Baum. Maquiagem: Edwin Erfmann, Anni Nöbauer, Hedy Polensky, Ingrid Thier. Gerentes de unidade de produção: Franz Achter, Gert Jakubowski, Josef Moosholzer, Michael Zöllner. Assistentes de direção: Karin Viesel, Renate Leiffer (não creditado). Colaboração artística: Harry Baer. Contrarregra: Richard Eglseder, Frank D. Geuer, Hans Stangl. Som: Milan Bor, Karsten Ullrich. Ruídos de sala: Hans-Walter Kramski, Mel Kutbay. Assistente de som: Hans Reinhardt Weiss. Efeitos especiais: Joachim Schulz. Fotografia de cena: Karl Reiter. Assistentes de câmara: Christian Sebaldt, Josef Vavra. Figurinos de Giancarlo Giannini: Max Dietl. Guarda-roupa: Georg Kuhn, Friedl Schröder, Marianne Schulz. Figurinos de Hanna Schygulla: Ralf Rainer Stegemann. Assistente de figurinos: Egon Strasser. Assistente de montagem: Claudia Wutz. Compositores da canção Lili Marleen: Hans Leip, Norbert Schultze. Intérprete da canção: Ursula May (não creditada). Assessoria de imprensa: Hans Baur. Técnicos: Michael Behrens, Klaus Emberger, Helmut Flieger, Heinrich Grob, Siegfried Gundel, Alwin Schuler, Robert Wischert. Coreografia: Dieter Gackstetter. Instrutor de diálogos: Sam McGill, Paul Michael McLernon. Apresentação: Enzo Peri. Assistentes de produção: Carla Thoeren, Michael Waldleitner. Estúdios de filmagem: Bavaria Atelier. Guarda-roupa de Hanna Schygulla: Haute Couture Salon. Equipamentos de câmera: Schmidle & Fitz. Estúdio de gravação musical: Tonstudio Meilhaus. Tempo de exibição: 120 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1994)

4 comentários:

  1. Muito oportuno seus comentários. Concordo com sua crítica de que esse é um grande filme que trata das ambiguidades entre o indivíduo e a sociedade (o sistema, no caso). O tempo de hoje merece esta reflexão para que não se caia na repetição da História. Lembrai dos anos 30 e do pós-guerra vale para ajudar a compreender, iluminar o tempo presente, creio eu. Parabéns pelos comentários seus sobre filmes.

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  2. Obrigado pelo estímulo, professora! Quanto as lembranças, também parto do princípio de que a memória é a substância que nos redime. Infelizmente, entramos num tempo no qual se cultiva tão somente o aqui e agora. Não vejo muito futuro para nós. Por outro lado, não esqueça: sou um pessimista, de nascença.

    Abraços.

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    1. Sou pessimista, também, e amo este filme. Não me lembro de nenhum momento em que Rainer Fassbinder se aproximou tanto da temática predileta de Joseph Conrad - o ser humano comum atirado em circunstâncias extraordinárias - como neste filme.

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    2. Olá, Ricardo!

      Alguns dos melhores filmes tratam dessa temática do Conrad: "O ser humano comum atirado em circunstâncias extraordinárias". No momento, um filme que me vem à memória, acerca desse tema, é QUERIDAS AMIGAS ("Édes Emma, drága Böbe - vázlatok, aktok", 1992), de István Szabó, sobre o desmonte do socialismo na Hungria. Às duas amigas do título, tão habituadas ao status quo, são - como outras pessoas comuns - brutalmente surpreendidas pelo desmonte e ficam totalmente à deriva, sem condições de readequação aos novos tempos. O final é trágico. Se não o viu, VEJA! Outro título, dentre os meus preferidos, é O HOMEM QUE MATOU O FACÍNORA, de John Ford. O Tom Doniphon de John Wayne nesse filme é uma dos mais trágicos que vi. O tempo dele estava chegando ao fim e o personagem não tinha como ter ciência disso. Ficou relegado ao mundo rústico das flores de cactus num Oeste que se transformou a olhos vistos.

      Abraços.

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