domingo, 27 de setembro de 2015

VITTORIO DE SICA NO JARDIM DE GIORGIO BASSANI E DOS FINZI-CONTINI

Originalmente caberia a Valerio Zurlini levar ao cinema a novela de Giorgio Bassani Il giardino dei Finzi-Contini, escrita em 1962. O diretor de A primeira noite de tranquilidade (La prima notte di quiete, 1972) e Dois destinos (Cronaca familiare, 1962) inclusive está entre os roteiristas responsáveis pela adaptação. Não sei como a realização terminou nas mãos de Vittorio De Sica. Em todo caso, menos mal, pois O jardim dos Finzi-Contini (1970) devolveu um dos mais sensíveis e generosos humanistas da sétima arte ao campo do grande cinema do qual esteve afastado durante nove anos, desde que levou às telas o doloroso e intenso Duas mulheres (La ciociara), extraído das páginas de Alberto Moravia. Vencedor do Urso de Ouro no Festival de Berlim e do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, O jardim dos Finzi-Contini é terno e compassado drama intimista encenado contra o pano de fundo de um dos momentos mais perversos da história contemporânea. Provavelmente, é o último momento de brilho de De Sica, que ainda se exercitaria seis vezes na direção antes de falecer aos 73 anos, em novembro de 1974. A apreciação a seguir é de 1986. Passou por revisão e ampliação em 1989.







O jardim dos Finzi-Contini
Il giardino dei Finzi-Contini/Der garten der Finzi-Contini

Direção:
Vittorio De Sica
Produção:
Artur Brauner, Arthur Cohn, Gianni Hecht Lucari
Documento Film (Roma), CCC Filmkunst GmbH (Berlin)
Itália, República Federal da Alemanha — 1970
Elenco:
Lino Capolicchio, Dominique Sanda, Helmut Berger, Romolo Valli, Fabio Testi, Camillo Cesarei, Inna Alexeieff, Katina Morisani, Barbara Leonard Pilavin, Michael Berger, Ettore Geri, Raffaele Curi, Gianpaolo Duregon, Marcella Gentili, Cinzia Bruno, Alessandro D'Alatri, Camillo Angelini-Rota, Katina Viglietti, Franco Nelbia, Eugene Pomeroy, Enzo Nigro, Joshua Sinclair e em imagens de arquivos Martin Bormann, Rudolf Hess, Adolf Hitler, Benito Mussolini, Julius Streicher.



O diretor Vittorio De Sica em Londres



Com O jardim dos Finzi-Contini o cinéfilo tem o grato prazer de reencontrar Vittorio De Sica em sua melhor forma. Após a realização de Duas mulheres (La ciociara, 1961), o cineasta  um dos fundadores do Neorrealismo Italiano  marcou encontro com longo período de indolência e ausência de inspiração. Obras como O juízo universal (Il giudizio universale, 1962), O condenado de Altona (I sequestrati di Altona, 1962), Il boom (1963), Um mundo jovem (Un mundo nuovo, 1965), O fino da vigarice (Caccia alla volpe, 1966), Sete vezes mulher (Woman times seven, 1967), Um lugar para os amantes (Gli amanti, 1968) e Os girassóis da Russia (I girassoli, 1970) se não significam rendição do diretor às realizações de menor nobreza, ao menos nublam a trajetória de um dos mais generosos humanistas que o cinema conheceu. É certo que em meio a essa enxurrada de títulos menores despontam as agradáveis comédias Ontem, hoje e amanhã (Ieri, oggi, domani, 1963) e Matrimônio à italiana (Matrimonio all’italiana, 1964). Mas o De Sica que interessa à história da sétima arte  que sensibilizou meio mundo ao imprimir as agruras dos excluídos em Vítimas da tormenta (Sciuscià, 1946), Ladrões de bicicletas (Ladri di biciclette, 1948), Milagre em Milão (Milagro a Milano, 1950), Umberto D (Umberto D, 1951) e O teto (Il tetto, 1956)  parecia definitivamente perdido. De repente uma negação surpreende o cinéfilo. De Sica está vivo! Para nossa felicidade continua generoso, carinhoso, compreensivo e terno com seus personagens. Trata-os não como partículas isoladas, mas sínteses de parcelas significativas da humanidade.


Os planos finais de O jardim dos Finzi-Contini mostram Micòl (Sanda), Giorgio (Capolicchio), Alberto (Berger) e Bruno Malnate (Testi) movendo-se lentamente, um de cada vez, em direção à câmera. Jogam tênis, o esporte favorito. São rostos jovens, alegres, despreocupados. Mas a imagem algo etérea da fotografia de Ennio Guarnieri comunica: não passam de fantasmagorias de gente esquecida, sacrificada na flor da idade. Todos  exceto Alberto, abatido pela doença  morreram vitimados pela mais vil das intolerâncias. Bruno pereceu na frente de batalha; Micòl e Giorgio desapareceram nos campos de concentração, purgando a estúpida culpa de serem diferentes e, por isso, condenados à proscrição: judeus vivendo em obscuro, tenso e delicado momento da História recente.


Dominique Sanda interpreta Micòl Finzi-Contini


Helmut Berger no papel de Alberto Finzi-Contini

  
O Jardim dos Finzi-Contini é sensível drama intimista ao compasso de missa de réquiem. Com ele, De Sica visita a Itália entre 1938-1943. Nesse lustro, vigoraram as leis antissemitas de Mussolini: proíbem aos judeus o serviço nas forças armadas, acesso às escolas públicas, assinaturas de listas telefônicas, contratação de empregados “brancos” e matrimônio fora do grupo étnico. Tais medidas deram início aos decretos mais duros de expropriação de bens, confinamento em campos de prisioneiros e, por fim, a condenação à morte.


Os Finzi-Contini são família de judeus aristocratas. Formam-na o pai e professor Ermanno (Angelini-Rota), a mãe Olga (Viglietti), os filhos Micòl e Alberto, a avó materna (Alexeieff). Apesar de o caos social e político se avizinhar, tentam se manter ao largo da conjuntura, como se nada estivesse acontecendo. Acreditam-se economicamente imunes. O antissemitismo parece não contar. Adotam a autorreclusão no enfrentamento aos novos e sombrios tempos. Desta maneira — julgam — serão poupados pelo mal. O imenso jardim no entorno da luxuosa e imponente mansão em que residem na cidade de Ferrara limita um mundo à parte: outro Éden cercado pelo pecado. Neste paraíso Micòl e Alberto recebem os amigos e se divertem: jogam, passeiam, conversam, ouvem música, comentam uma etapa da vida acadêmica prestes a concluir. De Sica destaca as imagens da natureza nas vistas do jardim. A vegetação viçosa e a imponência das árvores parecem desafiar o tempo e zombar dos desarranjos conjunturais tramados pela História. Comunicam ao espectador a impressão de que os Finzi-Contini se assumem como representações de uma estrutura essencial, intocável, imortal.


Os irmãos Alberto (Helmut Berger) e Micòl (Dominique Sanda)

  
Em outro contexto a família judia de Giorgio (Capolicchio)  alter ego de Giorgio Bassani, autor da novela homônima que originou o roteiro , economicamente menos afortunada, tenta sobreviver como pode, lançada diretamente no centro das turbulências. O pai (Valli), comerciante, refugia-se no autoengano — a mais vã tentativa de garantir segurança a si e aos seus. Por mais que a situação piore com a escalada drástica da redução de direitos civis, acredita na permanência de condições mínimas e essenciais à continuidade da existência. Assim, acentua para a esposa e os filhos: “Vivemos na Itália, não estamos na Alemanha”.


Giorgio (Lino Capolicchio) e seus pais interpretados por Romolo Valli e Barbara Pilavin

  
Apesar das diferenças sociais, o burguês Giorgio compartilha da amizade de Alberto e Micòl Finzi-Contini. Conheceu-os crianças. Frequenta os jardins da aristocrática família. Está perdidamente apaixonado pela etérea Micòl, mas não é correspondido. Em rompante de lucidez — que se choca com o imobilismo voluntário representado pela clausura e pelo jardim — ela passa a impressão de perceber a impossibilidade de qualquer futuro na relação com o amigo de mesma origem étnica. Entrega-se generosamente ao “não eleito” Bruno Malnati  a quem, a princípio, confessara não nutrir simpatias  na véspera do embarque do personagem rumo ao front soviético, onde sucumbiu.



Giorgio (Lino Capolicchio) e Micòl Finz-Contini (Dominique Sanda)


Muito se sabe da perseguição aos judeus na Alemanha de Hitler; na Itália fascista, nem tanto. Em O jardim dos Finzi-Contini De Sica abre brecha à iluminação do antissemitismo sob Mussolini. Encena o drama pela valorização da delicadeza, do lirismo e da melancolia. Seus personagens parecem dar nova chance aos que, na verdade, tiveram as oportunidades de vida cerceadas pelos desvios históricos. Não é filme de arroubos, mas de muita calma e sensibilidade na exposição. A direção não esquece a conjuntura, porém, preocupa-se mais com os estados d’alma, as sensações de cerceamento, abandono e exclusão. Nisso, envolve o espectador na atmosfera íntima que circunda os personagens. Assim, sente-se a impotência de Giorgio — expulso da biblioteca por ser judeu —; experimenta-se a insegurança da sua família frente ao mudo terrorismo telefônico; respiram-se os ares de desamparo e solidão do personagem interpretado por Capolicchio — aprisionado no cinema —; sofre-se quando Micòl e a avó são bruscamente separadas da família pela truculência policial que as interna na escola onde os herdeiros dos Finzi-Contini estudaram. Sente-se o silencioso drama dos indivíduos diante do imponderável que atualiza o contexto e a conjuntura. A situação e a temperatura do momento são transmitidas em conversas incidentais, na movimentação das ruas, no desabafo do jovem sobrevivente ao campo de concentração alemão, na clausura dos personagens, no fim dos encontros no jardim. As expressões de Micòl sintetizam essa simbiose entre intimidade e História. Seu rosto iluminado extravasa desencanto; a beleza de sua juventude revela a amargura; contradições que se explicitam à medida que os amigos desaparecem, os grupos se esfacelam e as quadras de tênis silenciam. O som das big bands estadunidenses, tão ouvidas na mansão, ilustram a época. Formam um estranho paradoxo: é um ritmo otimista e inocente a ecoar em época extremamente perversa.


Micòl (Dominique Sanda) e Giorgio (Lino Capolicchio)


Os judeus aprisionados, prontos para a deportação e a morte

  
Livremente adaptado da novela homônima de Giorgio Bassani por tarimbadíssimo time de roteiristas  Ugo Pirro, Vittorio Bonicelli e os não creditados Franco Brusati, Alain Katz, Tullio Pinelli, Cesare Zavattini, Vittorio De Sica e Valerio Zurlini , O jardim dos Finzi-Contini conquistou o Urso de Prata no Festival de Berlim em 1971 e, em 1972, o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro (falado em língua não inglesa). É o quarto trabalho de De Sica honrado pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. Vítimas da tormenta recebeu o Oscar Especial como produção de excepcional qualidade concebida sob circunstâncias adversas[1]. Já Ontem, hoje e amanhã e Matrimônio à italiana conquistaram idêntica láurea a de O jardim dos Finzi-Contini[2].



Fantasmagorias de gente esquecida, sacrificada na flor da idade


Depois de assistir a O jardim dos Finzi-Contini é impossível não concordar com a declaração de Orson Welles: “É uma vergonha não amar De Sica”[3], provavelmente, o mais injustiçado dos cineastas".






Direção de fotografia (Eastmancolor): Ennio Guarnieri. Música: Manuel De Sica. Direção musical: Carlo Savina. Canção: Vivere, por Tito Schipa. Adaptação e roteiro: Ugo Pirro, Vittorio Bonicelli e os não creditados Franco Brusati, Vittorio De Sica, Alain Katz, Tullio Pinelli, Cesare Zavattini, Valerio Zurlini, com base em novela homônima de Giorgio Bassani. Montagem: Adriana Novelli. Assistente para o diretor: Luisa Alessandri. Assistente de produção: Giorgio Treves. Camareiro: Franco D'Andria. Decoração: Roberto Granieri. Confecção de figurinos: Antonio Rendaccio. Supervisão de produção: Enzo Nigro. Secretaria de produção: Franca Santi. Engenheiros de som: Massimo Loffredi, Max Galinsky. Mixagem de som: Franco Bassi. Maquiagem: Giulio Natalucci. Penteados: Anna Cristofani. Fotografia fixa: Roma's Press Photo. Efeitos óticos: Sviluppo Pellicole e Stampa (S.P.E.S), Enrico Catalucci. Gerente de produção: Romano Dandi. Desenho de produção: Giancarlo Bartolini Salimbeni, Maurizio Chiari. Produção de elenco: Jose Villaverde. Operador de câmera: Giancarlo Ferrando. Assistentes de câmera: Michele Picciaredda, Giorgio Urbinelli. Assistentes de montagem: Marisa Letti, Carla Zamponi. Continuidade: Mario Milani. Contabilidade: Claudio Saraceni. Gravação musical: RCA Italiana. Produção executiva: Fausto Saraceni. Publicidade: Giulio Einaudi, Susan Jacobs, Lucherini/Rossetti/Spinola/Scalera. Estúdios de combinação de som: Fono Roma, C.V.D. Empresa de confecção de figurinos: S.A.F.A.S. Estúdio de edição musical: RCA. Estúdio de efeitos sonoros e ruídos de sala: Cine Audio Effects. Tempo de exibição: 95 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1986; revisto e ampliado em 1989)



[1] Cf. ALBAGLI, Fernado. Tudo sobre o Oscar. Rio de Janeiro: EBAL, s.d. p. 72.
[2] Seria dirigido por Valério Zurlini. Não se sabe por quais processos terminou com Vittorio De Sica.
[3] Referência perdida.

6 comentários:

  1. Respostas
    1. Muchas gracias, José Valle Valdés! Mas quando a película é boa, a resenha costuma fluir muito melhor.

      Buenas noches e abraços.

      Excluir
  2. Eugenio,

    Conheço muito pouco ou quase nada do trabalho do Sica. O vi ao lado de Hudson em Adeus Às Armas/57 e, sob sua direção, apenas o ótimo Duas Mulheres/61.

    Pelo que leio este me parece um dos seus mais marcantes trabalhos, mas infelizmente não o vi.

    jurandir_lima@bol.com.br

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Sim, Jurandir, como afirmei no texto, é o último momento de brilho de um humanista, uma espécie de cineasta que faz falta ao cinema instrumentalizado de hoje. Caso se interesse, há uma postagem sobre "Duas mulheres" bem mais para baixo. Foi publicada em 2013.

      Abraços.

      Excluir